Budismo, religião ou filosofia?
Walpola Rahula (Sri Lanka, 1907 ~ 1997):
Uma pergunta é feita com frequência: o budismo é uma religião ou uma filosofia? Não importa como você o chama. O budismo permanece o que é independente do rótulo que você pode colocar. O rótulo não tem materialidade. Mesmo o rótulo “budismo” que colocamos no ensinamento de Buda tem pouca importância. O nome que alguém usa não é essencial.
O que há em um nome? Aquilo que chamamos de rosa,
Com outro nome, teria o mesmo doce perfume.
Do mesmo modo, a Verdade não precisa de nenhum rótulo: não é nem budista, cristã, hindu ou muçulmana. Não é monopólio de ninguém. Rótulos sectários são um obstáculo para compreender de modo independente a Verdade, e eles produzem preconceitos prejudiciais nas mentes das pessoas.
Isso é verdade não apenas em questões intelectuais e espirituais, mas também em relações humanas. Quando, por exemplo, encontramos alguém, não o vemos como um ser humano, mas colocamos um rótulo como inglês, francês, alemão, americano ou judeu, e o encaramos com todos os preconceitos associados a esse rótulo em nossa mente. E ainda assim ele pode estar completamente livre dos atributos que colocamos nele.
As pessoas gostam tanto de rótulos discriminativos que chegam ao ponto de aplicá-los em qualidades humanas e emoções comuns a todos. Então, elas falam de diferentes “marcas” de caridade, por exemplo, de caridade budista ou caridade cristã e rebaixam outras “marcas” de caridade. Mas a caridade não pode ser sectária; ela não é nem cristã, nem budista, hindu ou islâmica. O amor que uma mãe tem por sua criança não é budista ou cristão: é amor materno. Qualidades humanas e emoções como amor, caridade, compaixão, tolerância, paciência, amizade, desejo, ódio, inimizade, ignorância, arrogância etc, não precisam de rótulos sectários; elas não pertecem a nenhuma religião particular.
Para o buscador da Verdade, o lugar de onde vem uma ideia não tem materialidade. A origem e desenvolvimento de uma ideia é trabalho para o acadêmico. Na verdade, para compreender a Verdade, não é necessário nem saber que o ensinamento vem de Buda, ou de qualquer outro. O que é essencial é ver a coisa, compreendê-la. Há uma história importante no Majjhima-nikaya (sutta nº 140) que ilustra isso.
O Buda uma vez passou uma noite no barracão de um oleiro. No mesmo lugar, havia um jovem renunciante que tinha chegado antes. Eles não se conheciam. O Buda observou o renunciante e pensou consigo: “Agradáveis sãos as maneiras desse jovem. Seria bom eu perguntar sobre ele”. Então o Buda perguntou: “Ó monge, em nome de quem você abandonou o lar? Ou quem é seu mestre? Ou que doutrina você segue?”
“Ó amigo”, respondeu o jovem, “há o renunciante Gautama, descendente Sakya, que deixou o clã Sakya para se tornar um renunciante. Há muitos testemunhos valiosos dizendo que ele é um Arhat, um Completo Iluminado. Em nome desse Abençoado, tornei-me um renunciante. Ele é meu mestre, e gosto de sua doutrina”.
“Onde o Abençoado, o Arhat, o Completamente Iluminado vive hoje?”
“Nos reinos ao norte, amigo, há uma cidade chamada Savatthi. É ali que o Abençoado, o Arahat, o Completamente iluminado, vive hoje”.
“Você já viu esse Abençoado? Você reconheceria se o visse?”
“Nunca vi o Abençoado, nem reconheceria se o visse”.
O Buda compreendeu que foi em seu nome que esse jovem deixou o lar e se tornou um renunciante. Mas sem divulgar sua identidade, ele disse: “Ó monge, vou lhe ensinar a doutrina. Ouça e preste atenção, vou falar.”
“Muito bem, amigo”, disse o jovem concordando.
Então, o Buda deu ao jovem uma explicação das mais memoráveis sobre a Verdade.
Foi só ao final do ensinamento que esse jovem renunciante, cujo nome era Pukkusati, compreendeu que a pessoa que lhe falou era o próprio Buda. Então, se levantou, foi até ele, se prostrou aos pés do Mestre e pediu perdão por tê-lo chamado de “amigo” sem saber. Então, implorou ao Buda para ordená-lo e admití-lo na ordem da Sangha.
O Buda perguntou se ele tinha a tigela e os mantos prontos (um monge precisa ter três mantos e a tigela para mendigar comida). Quando Pukkusati respondeu que não, o Buda disse que os Tathagatas não ordenariam uma pessoa a menos que a tigela e os mantos estivessem prontos. Então Pukkusati saiu para procurá-los, mas infelizmente foi atacado por um animal e morreu.
Mais tarde, quando essa triste notícia chegou ao Buda, ele anunciou que Pukkusati era um homem sábio, que tinha visto a Verdade e alcançado o penúltimo estágio na realização do Nirvana, e que havia renascido em um reino onde se tornaria um Arhat e, finalmente, faleceria, para jamais retornar a este mundo.
Com essa história, fica bem claro que, quando Pukkusati, ouviu o Buda e compreendeu seu ensinamento, ele não sabia quem estava falando com ele, ou que ensinamento era esse. Ele viu a Verdade. Se o medicamento é bom, a doença será curada. Não é necessário saber quem a preparou, ou de onde veio.
“What the Buddha Taught”, cap. 1
http://darma.info/trechos/2012/06/budismo-religiao-ou-filosofia/