Certa vez, quando o Bhagavat residia no país dos Kurus, num burgo chamado Kammassadhama, dirigiu-se aos discípulos como se segue:
- Ó discípulos!
- Senhor! responderam eles.
E o Sublime falou:
- Só há um caminho, ó discípulos, que conduz à purificação dos seres, à
extinção do sofrimento e da tristeza, à destruição dos males físicos e morais, à
aquisição da conduta reta, à realização do Nirvana. Este caminho é o dos Quatro
Fundamentos do Estabelecimento da Atenção (Vigilância).
- E quais são esses Quatro Fundamentos?
- Ei-los aí, ó discípulos. Primeiro, observando o corpo, o discípulo permanece
enérgico, claramente consciente, compreensivo, atento, vencendo os desejos e as
contrariedades do mundo; segundo, observando as sensações; terceiro, observando a
mente; quarto, observando os diferentes assuntos da Doutrina, ele se torna enérgico,
compreensivo, atento, afastando os desejos e as contrariedades deste mundo.
1. Vigilância em relação ao corpo (Kaya)
E como, ó discípulos, um discípulo permanece observando a corpo?
Aqui, ó discípulos, indo à floresta, ao pé de uma árvore, ou num lugar isolado,
o discípulo se senta com as pemas cruzadas, o corpo ereto, permanece atento e fixa a
atenção em frente a si. Então, atentamente ele inspira, atentamente ele expira. Ao
inspirar lentamente, observa: "Lentamente inspiro." Ao expirar lentamente, observa:
"Lentamente expiro." Inspirando rapidamente, observa: "Rapidamente inspiro."
Expirando rapidamente observa: "Rapidamente expiro."
"Sentindo todo o corpo, inspiro", assim se exercita.
"Sentindo todo o corpo, expiro", assim ele se exercita.
"Acalmando as atividades do corpo, inspiro", assim se exercita.
"Acalmando as atividades do corpo, expiro", assim ele se exercita.
Do mesmo modo, ó discípulos, que um hábil oleiro, ou um aprendiz de oleiro, torneando
lentamente um vaso, observa: "Faço girar lentamente", e torneando rapidamente, observa:
"Rapidamente faço girar." Da mesma maneira, ó monges, um monge inspirando lentamente,
observa: "Lentamente inspiro... Acalmando as atividades do corpo, expiro", Assim ele se
exercita. Desta maneira, permanece o discípulo observando o corpo interiormente e exteriormente.
Permanece observando a dissolução do corpo (sensação de não sentir a presença do corpo);
permanece observando o surgimento do corpo (sensação de sentir a presença do corpo);
permanece observando o surgimento e a dissolução do corpo. "Eis aí o corpo" - diz, e esta
introspeção está presente nele, somente para o necessário conhecimento e reflexão, ficando
liberto e não se apegando a nada neste mundo.
É assim, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
Ainda mais, ó monges, um discípulo quando caminha, observa: "Caminho"; quando está em
pé, observa: "Estou em pé"; e quando está sentado, observa: "Estou sentado"; quando está
deitado, observa: "Estou deitado"; estando o corpo nesta ou naquela posição, o discípulo tem
consciência de estar nesta ou naquela posição.
Deste modo, permanece o discípulo observando o corpo, interior e exteriormente...(aqui se
repete a mesma fórmula acima).
É assim também, ó monges, que o discípulo permanece observando o corpo.
Ainda mais, quando o discípulo vai ou vem, tem plena consciência disto; olhando em frente
ou ao redor, estendendo ou encolhendo os membros, tem plena consciência disto; levando a
cuia de mendicância e usando vestes monásticas, ele tem plena consciência disto; comendo,
bebendo, mastigando, saboreando, evacuando, urinando, ele está perfeitamente consciente
disto; andando, estando em pé, sentando, adormecendo, levantando, falando, ou guardando
silêncio, ele está perfeitamente consciente disto.
Do mesmo modo que permanece observando o corpo interiormente, permanece observando o
corpo exteriormente.
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
Ainda mais, o discípulo observando o corpo da planta dos pés ao alto da cabeça, coberto de
pele e cheio de diversas impurezas, ele pensa: "Há neste corpo: cabelos, pelos, unhas, dentes,
pele, músculos, tendões, ossos, medula, rins, coração, fígado, pleura, baço, pulmões,
intestinos, mesentérios, estômago, excrementos, biles, pus, sangue, suor, gordura, lágrimas,
saliva, mucos, urina."
Do mesmo também, ó discípulos, que num saco com duas aberturas, contendo diferentes
grãos, tais como arroz, feijão, ervilha, grão-de-bico, gergelim, então um homem que vê com
clareza, tendo-o aberto, examina os grãos dizendo: isto é arroz, isto é feijão, isto é ervilha,
isto é grão-de-bico, isto é gergelim; assim, também, um discípulo que observa o corpo da
planta dos pés ao alto da cabeça, percebe-o coberto de pele e cheio de diversas impurezas,
sabe: "Há neste corpo: cabelos, pelos, unhas, gordura, lágrimas, saliva, mucos, sinóvia,
urina."
Deste modo o discípulo permanece observando o corpo interiormente e exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
Ainda mais, ó monges, o discípulo examina o corpo tal como é composto pelos elementos:
“Há neste corpo o elemento terra, o elemento água, o elemento fogo, o elemento ar.
Do mesmo modo também, ó discípulos, um hái1 açougueiro ou um aprendiz de açougueiro,
um homem que trabalha para sustentar-se, que tivesse abatido uma vaca e, tendo-a
esquartejado, senta-se numa encruzilhada (para vender a carne). Assim também, o discípulo
examina este corpo tal como é, composto de elementos: "Há neste corpo o elemento terra, o
elemento água, o elemento fogo, o elemento ar."
E ainda mais, quando um discípulo vê um corpo morto há um dia ou mais, inchado, azulado,
putrefato, refletirá sobre seu próprio corpo, observando: "Meu corpo tem a mesma natureza
deste, ele se tornará também assim, não posso evitá-lo."10
Deste modo, permanece observando o corpo interiormente, permanece observando o corpo
exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
E mais ainda, quando um discípulo vê um cadáver despedaçado pelos abutres, roído pelos
vermes, refletirá sobre seu próprio corpo: "Este corpo tem a mesma natureza, ele se tornará
também assim, não posso evitá-lo."
Assim permanece observando o corpo interiormente; permanece observando o corpo
exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
E mais ainda, quando um discípulo vê um cadáver com o arcabouço ainda unido por tendões,
tendo ainda restos de carne e manchas de sangue, refletirá sobre seu próprio corpo: "Este
corpo tem a mesma natureza, ele se tornará também assim, não posso evitá-lo."
Assim permanece observando o corpo interiormente, permanece observando o corpo
exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
E mais ainda, quando um discípulo vê um cadáver com o arcabouço ósseo ainda ligado por
tendões, sem nenhuma carne, porém com manchas de sangue, refletirá sobre seu próprio
corpo: "Este corpo tem a mesma natureza, ele se tornará também assim, não posso evitá-lo."
Assim permanece observando o corpo interiormente, permanece observando o corpo
exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
E mais ainda, quando um discípulo vê um cadáver com o arcabouço ósseo ainda ligado por
tendões, sem nenhuma carne ou manchas de sangue, ele refletirá sobre seu próprio corpo:
"Este corpo tem a mesma natureza, ele se tornará também assim, não posso evitá-lo."
Assim permanece observando o corpo interiormente e exteriormente...
É assim também, ó discípulos, que um discípulo permanece observando o corpo.
E ainda mais, quando o discípulo vê um cadáver, os ossos dispersos separados dos tendões,
aqui um osso da mão, lá um osso do pé, aqui uma tíbia, lá um fêmur; aqui uma bacia, lá
vértebras, adiante um crânio, ele refletirá sobre seu próprio corpo: "Este corpo tem a mesma
natureza, ele se tornará também assim, não posso evitá-lo."
Assim permanece observando o corpo interiormente e exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
Além disso, quando o discípulo vê um esqueleto com os ossos embranquecidos como
conchas ao sol, ele refletirá sobre seu próprio corpo observando: "Meu corpo tem a mesma
natureza que este, ele se tornará também assim, não posso evitá-lo."
Deste modo permanece um discípulo observando o corpo interiormente e exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
E ainda mais, quando o discípulo vê um esqueleto após um ano, que não é mais do que um
rnontículo de ossos empilhados, ele refletirá sobre seu próprio corpo dizendo: "Meu corpo
tem a mesma natureza que este, ele se tornará também assim, não posso evitá-lo."
Do mesmo modo permanece um discípulo observando o corpo interiormente e
exteriormente...
É assim também, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
E ainda mais, quando um discípulo vê um esqueleto, os ossos desintegrados e reduzidos a
pó, ele refletirá sobre seu próprio corpo: "Meu corpo tem a mesma natureza que este e se
tornará igual, não posso evitá-lo."
É assim que um discípulo permanece observando o corpo interiormente e exteriormente... Ele
permanece observando o surgimento do corpo; permanece observando a dissolução do corpo;
permanece observando o surgimento e a dissolução do corpo.
"Eis aí o corpo" - esta introspeção está presente nele, somente para o necessário
conhecimento e reflexão, e ele se torna liberto, não se apegando a nada neste mundo.
É assim, ó monges, que um discípulo permanece observando o corpo.
2. Vigilância em Relação as Sensações (Vedana)
E como, ó discípulos, um discípulo permanece observando as sensações?
Eis aí: um discípulo sentindo uma sensação agradável, observa: "Esta é uma sensação
agradável"; sentindo uma sensação desagradável, observa: "Esta é uma sensação
desagradável"; sentindo uma sensação indiferente, observa: "Esta é uma sensação
indiferente."
Sentindo uma sensação física agradável, observa: "Esta é uma sensação física agradável";
sentindo uma sensação sutil agradável, observa: "Esta é uma sensação sutil agradável";
sentindo uma sensação física desagradável, observa: "Esta é uma sensação física
desagradável"; sentindo uma sensação sutil desagradável, observa: "Esta é uma sensação sutil
desagradável"; sentindo uma sensação física indiferente, observa: "Esta é uma sensação
carnal indiferente"; sentindo uma sensação sutil, nem agradável, nem desagradável, observa:
"Esta é uma sensação sutil nem agradável, nem desagradável."
Assim, ele permanece contemplando as sensações nas sensações internamente, permanece
contemplando as sensações nas sensações externamente, permanece contemplando as
sensações nas sensações interna e externamente.
Ele permanece contemplando a originação das sensações, permanece contemplando a
dissolução das sensações, ou contempla a originação e dissolução das sensações. Sua plena
atenção está estabelecida com o pensamento: "Sensações existem" até o ponto necessário
para o conhecimento e reflexão, e vive independente sem se apegar a nada deste mundo.
Assim, ó discípulos, o discípulo permanece contemplando as sensações nas sensações.
3. Vigilância em Relação à Mente (Citta) - Estados de Consciência
E como um discípulo permanece observando os estados de consciência nos estados de
consciência da mente?
Aqui, um discípulo, tendo um estado mental com luxúria, observa: "Este é um estado mental
com luxúria"; tendo uma mente livre de luxúria observa: "Esta é uma mente livre de luxúria."
Quando há ódio em sua mente, observa: "Há ódio na mente"; quando a mente está livre do
ódio, ele observa: "Esta é uma mente livre de ódio"; quando sua mente está perturbada,
observa: "Esta é uma mente perturbada"; quando sua mente está livre de perturbações, ele
observa: "Esta é uma mente livre de perturbações"; quando sua mente está concentrada,
observa: "Esta é uma mente concentrada"; quando sua mente está distraída, sabe: "Esta é uma
mente distraída"; quando em sua mente há nobreza, observa: "Esta é uma mente nobre";
quando há vileza em sua mente, ele observa: "Esta é uma mente vil"; tendo em sua mente
estados, ele observa que estes estão presentes nela; tendo uma mente livre, ele observa: "Esta
é uma mente livre"; tendo uma mente pouco livre, observa: "Esta é uma mente pouco livre."
Tendo um estado mental com medo, ele observa: "Este é um estado mental com medo"; tendo
uma mente livre do medo, ele observa: "Esta é uma mente livre do medo."
Assim ele compreende e observa o estado mental com desejo e o estado mental sem desejo, o
estado mental com ressentimento e o estado mental sem ressentimento.
Assim ele permanece contemplando os estados de consciência nos estados de consciência
internamente, ou permanece contemplando os estados de consciência externamente, ou
permanece contemplando os estados de consciência interna e externamente. Sua atenção está
estabelecida com o pensamento: "Eis aí os estados de consciência da mente"; esta
introspecção está presente nele, somente para o necessário conhecimento e reflexão e ele
permanece livre, sem se apegar a nada neste mundo.
É assim, ó discípulos, que um discípulo permanece observando os estados de consciência da
mente.
4. Vigilância Relacionada aos Assuntos da Doutrina (Dhamma)
Observação dos Cinco Impedimentos
E como um discípulo permanece observando os diferentes assuntos?
Aqui, o discípulo permanece observando os Cinco Impedimentos.
E como um discípulo permanece observando os Cinco Impedimentos?
Aqui, ó discípulos, um discípulo, quando sente o desejo sensual, observa: "Em mim está o
desejo sensual"; quando o desejo sensual não está presente nele, observa: "Em mim não está
presente o desejo sensual"; ele observa como o desejo sensual não-aparecido, aparece. Ele
observa como o desejo sensual aparecido é desenraizado. Ele sabe como o desejo sensual
desenraizado não surgirá mais.
Quando a maldade está presente nele, observa: "Há maldade em mim." Quando a maldade
não está presente, ele observa: "Em mim não há maldade." Ele sabe como a maldade não
aparecida, surge; ele sabe como a maldade que surgiu é desenraizada. Ele sabe como a
maldade desenraizada não surgirá mais.
Quando a inércia e o torpor estão presentes nele, ele observa: "Em mim estão presentes a
inércia e o torpor." Quando a inércia e o torpor não estão presentes nele, ele observa: "Em
mim não estão presentes a inércia e o torpor." Ele sabe como a inércia e o torpor
aparecidos são desenraizados. Ele sabe como a inércia e o torpor desenraizados não surgirão
mais.
Quando a agitação e o remorso estão presentes nele, ele observa: "Em mim estão presentes a
agitação e o remorso." Quando a agitação e o remorso não estão presentes nele, ele observa:
"Em mim não estão presentes, nem agitação, nem remorso." Ele sabe como a agitação e o
remorso não-surgidos, aparecem; ele sabe como a agitação e o remorso surgidos, são
desenraizados; ele sabe como a agitação e o remorso desenraizados não surgirão mais.
Quando a dúvida está presente nele, ele observa: "Em mim está presente a dúvida." Quando a
dúvida não está presente nele, ele observa: "Em mim não está presente a dúvida." Ele sabe
como a dúvida não-surgida, aparece; ele sabe como a dúvida que surgiu é desenraizada; ele
sabe como a dúvida desenraizada não surgirá mais.
Deste modo ele permanece observando os diferentes assuntos interiormente; ele permanece
observando os diferentes assuntos exteriormente; ele permanece observando os diferentes
assuntos interiormente e exteriormente.12 Ele permanece observando o aparecimento dos
diferentes assuntos e permanece observando o desaparecimento dos diferentes assuntos. Ele
permanece observando a originação e a dissolução dos diferentes assuntos.
"Eis aí os diferentes assuntos" - esta introspecção está presente nele, somente para o
necessário conhecimento e reflexão; e assim ele permanece livre e não se apega a nada deste
mundo.
É assim, ó discípulos, que um discípulo permanece observando os Cinco Impedimentos.
Budismo - Psicologia do Auto Conhecimento