Os seres humanos são onívoros? 2a ed.
John Coleman, 2008
Título original:
Are humans “omnivores”? 2nd ed.
Tradução Livre de Geraldo M. Meirelles Neto
Uma análise dos fatores biológicos para determinar se as adaptações alimentares humanas estão de acordo com o conceito de “onivorismo”.
Introdução
Não é incomum ouvir a alegação de que os seres humanos são “onívoros”, até textos oficiais de livros e artigos científicos usam esse termo. Infelizmente, apesar de soar científico, o significado desse termo é um pouco vago. Por um lado, o termo onívoro pode ser usado para descrever os animais que simplesmente comem plantas ou outros animais. Por outro lado, pode ser usado para deduzir que um animal é biologicamente adaptado para consumir vegetais e carnes e que, talvez, devesse fazê-lo. Uma definição mais ampla e talvez mais adequada do termo onívoro reporta-se aos animais que podem consumir todos os tipos de alimentos. Isso porque o prefixo “oni” deriva do latim
omnis, que significa todos.
De uso comum, portanto, o termo onívoro pode ser usado para descrever tanto o que um animal faz (acepção a), como o que ele é (acepção b). Claramente os seres humanos podem ser ditos onívoros no sentido de que eles comem vegetais e animais, mas isso é apenas um truísmo. Como exemplo do contraste entre ser e fazer, gados consomem restos animais em práticas agrícolas contemporâneas, mas ainda assim são considerados herbívoros – embora pudessem ser ditos onívoros, posto que podem comer uma dieta onívora.
Este artigo discute o mérito científico da alegação de que os seres humanos são biologicamente onívoros, porque isso é o que as pessoas inferem quando dizem que “os seres humanos são onívoros”.
Termos:
§ Truísmo: alegação tão evidente ou óbvia que quase não vale a pena ser mencionada, por exemplo, constitui um
truísmo dizer que a lei posterior revoga a anterior, no que forem incompatíveis.
Estabelecendo um critério testável para onivorismo
Parece inexistir procedimento científico pelo qual seja possível provar que um animal é biologicamente onívoro, e este é o motivo pelo qual esse debate é possível. Uma proposta razoável é que um onívoro deve ser capaz de fazer parte significativa de sua dieta com base em alimentos de origem vegetal e animal sem sofrer danos à saúde. Para firmar convicção de que um animal é onívoro, gostaríamos de ver nele adaptações biológicas para o consumo de alimentos de origem tanto vegetal como animal. Sem evidências reais testáveis e provas concretas, é impróprio usar o termo onívoro. Mesmo assim, não há evidências biológicas suficientemente claras, como veremos, capazes de confirmar se uma espécie é adaptada a uma dieta de alimentos vegetais e animais.
Este artigo é o resultado de um amplo estudo de evidências científicas para identificar adaptações alimentares humanas, e apresenta dados que juntos sugerem que os seres humanos respeitam os critérios para ser um especialista frugívoro, além de não apresentar nenhuma evidência convincente de que esses mesmos seres humanos respeitam os critérios onívoros acima expostos. Especialistas frugívoros poderiam ser definidos como animais que se adaptaram a uma dieta rica em frutas. Mas essa classificação é geral e não necessariamente exclui o consumo de outros tipos de matéria vegetal, ou mesmo matéria animal, como componentes secundários da dieta. Um especialista frugívoro, portanto, deve ser considerado onívoro.
Um onívoro deve ser capaz de comer grandes quantidades de matéria animal sem sofrer danos e, para tornar a alegação convincente, deveria ter claras adaptações a tal dieta.
Neste artigo, eu assumo que o cão ou o porco sejam arquétipos para onívoro, pois toleram bem plantas e animais como partes significativas de suas dietas, e porque são bem conhecidos por comerem qualquer coisa que seja comestível. No entanto, muitos primatas não-humanos incluem uma quantidade significativa de matéria animal em suas dietas e assim podemos fazer uma comparação melhor. Infelizmente, pouco é conhecido e documentado sobre a forma como os grandes primatas, grupo de animais biologicamente mais assemelhados aos seres humanos, toleram ingestões significativas de matéria animal. Por outro lado, primatas parecem ser muito mais seletivos com suas escolhas de comida do que os onívoros arquétipos sugeridos.
Há algumas controvérsias no estudo dos primatas. Assim como os seres humanos, os primatas não-humanos são capazes de aprender novos comportamentos alimentares, formando culturas alimentares localizadas, de maneira que pode não ser fácil generalizar suas dietas. Portanto, quando vemos um grupo de uma espécie de primatas consumindo uma dieta constituída principalmente a base de plantas, e outro grupo da mesma espécie consumindo uma maior quantidade de produtos de origem animal, disso não se infere que os primatas dessa espécie são onívoros por adaptação biológica. Nós podemos ter um caso de dieta onívora, sem que haja um onívoro biológico. Assim, podemos incorrer exatamente nas mesmas controvérsias que incorremos quando chamamos os humanos de onívoros.
Falha filosófica
Antes de analisar as provas científicas, há problemas graves com a proposição de que os seres humanos são onívoros. Estas questões filosóficas se enquadram em dois campos distintos. Ambos parecem fazer o tópico inadequado ao discurso científico.
1) Falta de uma proposição testável
Alegações de que os seres humanos são onívoros biológicos são prejudicadas pela falta de qualquer conjunto bem definido de regras (ou seja, uma hipótese testável) para estabelecer o que é um onívoro. Alguns autores descrevem um animal onívoro como sendo um animal que não é nem herbívoro nem carnívoro. No entanto, uma definição de que algo não é alguma coisa não possui conteúdo cognitivo e não é uma classificação – nesse caso, onívoros são considerados “não especialistas”, capazes de comer matéria vegetal ou animal. Mas esses tipos de pseudo-definições são fracas e mal construídas, porque em condições de domesticação em que a tecnologia é aplicada aos alimentos, mesmo herbívoros podem consumir restos processados de animais.
2) Confusão de semelhanças e equivalências
A tecnologia de processamento alimentar pode ignorar as adaptações biológicas, permitindo aos animais consumirem coisas que naturalmente seriam incapazes de adquirir ou consumir. Na verdade, o uso da tecnologia na preparação de alimentos tende a indicar uma falta de adaptação. Particularmente, a aplicação da tecnologia de processamento alimentar, ou seja, caçar com armas ou armadilhas, cortar, cozinhar e amaciar, para processar a matéria animal comestível, parece contradizer a noção de que os seres humanos estão adaptados para capturar e consumir matéria animal. Há claramente uma enorme diferença entre animais selvagens, que naturalmente capturam e consumem outros animais, e seres humanos civilizados, que consomem carne e processam tecnologicamente a matéria animal. Argumentos semelhantes podem ser tecidos sobre outros alimentos que os seres humanos processam antes de consumir mediante o uso da tecnologia.
Como demonstrado, conquanto haja clara semelhança entre seres humanos e animais não-humanos pelo fato de comerem praticamente qualquer coisa que seja comestível, na verdade os seus comportamentos não são equivalentes. Animais selvagens adquirem e consomem alimentos por meio de sistemas biológicos inatos, enquanto que seres humanos obtêm e consomem uma grande variedade de alimentos como resultado da tecnologia.
Se nós somos forçados a admitir que os seres humanos podem ser chamados onívoros, mesmo que isso resulte do uso da tecnologia, então nós também temos de aceitar que os seres humanos podem ser razoavelmente chamados de aves, como resultado do uso de máquinas voadoras, e de peixes, como resultado do uso de tecnologia subaquática de sobrevivência. Tais colocações são inaceitáveis e, se adotadas, somente nos convence de que a alegação de que os seres humanos são onívoros não se baseia em qualquer forma de equivalência natural.
Classificação confusa
Posto que o termo onívoro é vago, não surpreende o fato de que muitas vezes autores divirjam entre si em suas classificações quanto ao status alimentar dos animais. Pilbeam (9) descreve os grandes primatas como amplamente “herbívoros”, assim como o fazem Yerkes e Yerkes (4), e Maier (2) diz que os primatas devem ser considerados “onívoros”. Opiniões sobre como classificar os primatas em geral e os chimpanzés, nossos parentes mais próximos, parecem ser contraditórias.
Para classificar sistemas digestivos, Chivers tem realizado alguns dos mais amplos estudos da anatomia do sistema digestivo dos mamíferos, embora sua pesquisa sobre os seres humanos seja inconclusiva. Resumidamente, em
Diet and guts (1), ele afirma que a anatomia do intestino humano é característica de quem come carne ou alguns outros alimentos rapidamente digeridos. No entanto, seus gráficos mostram que a anatomia digestiva humana está na margem do grupo dos “carnívoros”. Ainda mais criticamente, no centro do grupo dos “carnívoros” está o
Cebus capucinus (macaco-prego-de-cara-branca). Segundo o
The pictorial guide to the living primazes, o
Cebus capucinus come 95 tipos de frutos que compõem 65% de sua dieta, enquanto folhas compõem até 15%. O restante da dieta consiste de bagas, nozes, sementes, brotos, botões, flores, gomas, cascas e substâncias animais, incluindo insetos, nessa ordem. Os
Cebus capucinus são essencialmente foli-frugívoros, não carnívoros, mas eles também têm sido chamados onívoros, porque consomem uma variedade de matéria animal. Tem-se dito que os
Cebus capucinus têm um sistema digestivo parecido com o dos seres humanos. E o gráfico de Chivers mostra alguma semelhança, mas o seu conjunto de dados carnívoros parece ser enganoso e não objetivamente definido. Nós devemos ser cuidadosos com o uso de conceitos como “semelhanças”, porque eles são formados de maneira subjetiva.
Dos poucos exemplos de outras espécies classificadas como onívoras, nenhuma parece ser muito semelhante aos seres humanos em sua anatomia, a menos que o chimpanzé seja classificado como onívoro. No entanto, o chimpanzé é freqüentemente descrito como frugívoro ou foli-frugívoro, embora alguns o chamem de onívoro. Mas a anatomia humana, como veremos, é distinta da dos chimpanzés. Atualmente, não há nenhum sistema preciso para classificar a dieta de qualquer espécie com base em sua anatomia ou seu comportamento. Observações anatômicas podem ser enganadoras. Milton (7) salienta, por exemplo, que se diz que o urso panda tem um sistema digestivo que se assemelha a de um carnívoro (p.14), ainda que normalmente ele tenha uma dieta herbívora – trata-se de um onívoro? Além disso, dentro da ordem dos carnívoros, há espécies que compartilham entre si das mesmas características anatômicas (por definição) e que têm dietas que variam desde a pura carnivoridade até a frugivoridade, passando pela onivoridade (p.14).
Chimpanzés preferem uma dieta rica em frutas quando o fruto é de temporada, mas diversificam e podem incluir mais folhagem e matéria animal quando a oferta de frutas é escassa. Além disso, os chimpanzés também têm culturas alimentares e adquirem alimentos utilizando “ferramentas” primitivas (não tecnológicas), tal como fazem os seres humanos, de maneira que suas dietas podem não refletir suas adaptações biológicas tanto quanto seu habitat, suas tradições e o comportamento por eles aprendido para lidar com a escassez de alimentos.
Nós poderíamos aceitar isso como um bom exemplo de onívoro, mas até mesmo coelhos participam de canibalismo ameno (eles mordiscam coelhos mortos), e muitos outros “herbívoros” são conhecidos por comerem suas placentas. Espécies herbívoras também comem matéria animal sob condições de cativeiro, e a maioria dos “herbívoros” ingere insetos acessórios junto com folhagens, mas isso não parece nos permitir chamá-los onívoros.
Parece que a oportunidade de comer alimentos nutritivos nunca é desperdiçada por animais selvagens, mesmo quando se trata de um herbívoro consumindo sua própria placenta. Nestes termos, portanto, nós poderíamos concluir que todos os mamíferos são “onívoros” – todavia não há como definir categorias por rótulos e uma categorização tão ampla como essa permitiria que características similares passassem por equivalentes, o que seria impróprio. Obviamente, existem problemas de freqüência, quantidade e tipo de matéria animal consumida. Estes elementos precisam ser quantificados antes que se possa chamar uma espécie de onívora no sentido biológico. Esses esclarecimentos são necessários para separar os animais que comem carne em pequenas quantidades em condições não-naturais devido à domesticação ou a pressões ambientais incomuns, daqueles que comem alimentos de origem animal regularmente e que toleram tal dieta sem sofrer danos. Alguns poderiam sugerir que a prática de variar a dieta sob pressão ambiental é o que aparta os onívoros de carnívoros e herbívoros, e que tal comportamento é prova de onivoridade.
Depois de estudar uma quantidade significativa de literatura, torna-se óbvio que acadêmicos ainda não produziram nem a forma sistemática de quantificar, nem as definições consensuais que se esperam de uma ciência exata. Há incoerências significativas na classificação das dietas dos primatas. Temos o direito de exigir mais conteúdo cognitivo daqueles que afirmam que os seres humanos são onívoros.
Nota: Neste artigo, ‘matéria animal’ geralmente implica vertebrados, mas pode incluir insetos.
Anatomia do sistema digestivo
O sistema digestivo dos seres humanos é caracterizado por apresentar um intestino delgado relativamente maior do que o encontrado em outros primatas, e cólon relativamente menor. Em geral, o sistema digestivo humano é também uma parte menos significativa do corpo quando comparado com outros primatas. Segundo Milton (7), o intestino delgado humano perfaz mais de 56% do total dos intestinos, ao passo que o cólon perfaz apenas de 17 a 23%. No entanto, em todos os outros grandes primatas o cólon perfaz mais de 45% do total, e o intestino delgado de 14 a 29%. Isto confirma as conclusões de Chivers e demonstra que a anatomia digestiva humana está em uma classe distinta daquela em que se encontram os outros grandes primatas. Sendo assim, é racional procurar fora dos grandes primatas uma espécie que melhor coincida com nossa anatomia digestiva, talvez em macacos menores, pássaros ou morcegos.
Em geral, a maioria dos primatas, incluindo todos os grandes primatas, são foli-frugívoros, mas também comem alguma matéria animal, e os macacos menores são geralmente faunívoros (Tarsius sp.), que também podem comer frutas (p.e.
Galagoides demidoff). Entre os primatas, apenas o
Callithrix humeralifer (sagüi-de-santarém)e o
Ateles paniscus (macaco-aranha-preto) comem mais de 80% de suas dietas em frutas (11), com o restante proveniente principalmente de goma ou folhagem, respectivamente, e de um pequeno percentual de matéria animal. O sagüi-de-santarém é quase totalmente frugívoro, posto que as gomas que compõem 17% de sua dieta são quimicamente semelhantes aos frutos e se constituem importante fonte de carboidratos. O restante 0,5% do tempo de alimentação é gasto com a ingestão de pequenos insetos. Forte frugivoridade, portanto, é encontrada em apenas um par de espécies dentre as 234 espécies de primatas conhecidas.
Um estudo da literatura especializada em anatomia funcional revela que a folhagem é digerida principalmente em estômagos saculares ou em cólons convolutos. Estas adaptações aumentam drasticamente o volume dos intestinos até atingir determinado comprimento, tornando a digestão mais lenta para que a fermentação bacteriana possa ocorrer. Os seres humanos também têm cólon convoluto, mas em menor grau do que nos grandes primatas. Os alimentos essencialmente digeridos nos intestinos são matéria animal e frutas, que podem ser decompostas rapidamente em comparação com folhas, devido à ausência das paredes celulares indigestas encontradas nas folhagens.
O trabalho de Chivers omite pássaros e morcegos, então omite também qualquer espécie altamente frugívora. É só entre aves e morcegos que encontramos animais que vivem exclusivamente de frutas, tais como a totalidade dos morcegos-da-fruta frugívoros. É importante notar que frutas são freqüentemente infestadas de insetos, de maneira que frugívoros são comedores acidentais de insetos. Jordano menciona em seu artigo
Fruits and frugivory (5), que um intestino dominado pelo intestino delgado também é uma característica dos fortes frugívoros (p.145). Por exemplo, morcegos frugívoros como o
Wahlberg, espécie de morcego-da-fruta, são relatados como tendo intestino delgado que compõe até 94% do sistema digestivo (16), apesar de os morcegos frugívoros poderem cuspir as fibras das frutas, ingerindo apenas os sucos. Jordano também aponta (p.138) que frugívoros não requerem adaptações especiais nem processos digestivos especiais para o processamento de frutas, a mesma alegação comumente usada para “onívoros”.
Em contraste com os resultados de Chivers (1), Hladik, Chivers e Pasquet (12) plotaram a área da mucosa funcional versus o tamanho do corpo funcional para folívoros, frugívoros e faunívoros, e descobriram que a curva dos seres humanos se ajusta à linha de tendência dos frugivoros. Cada linha de tendência foi completamente separada neste estudo. Esta técnica parece, portanto, ser um pouco mais precisa do que os métodos usados por Chivers, ainda que ambos os pesquisadores basicamente confirmem que a anatomia do intestino humano é eficaz para rapidamente digerir alimentos.
Em resumo, a pesquisa da anatomia digestiva mostra que as características do sistema digestivo humano são consistentes com uma dieta de alimentos digeridos mais rapidamente do que as fibras de plantas resistentes. A área de superfície da mucosa em proporção ao tamanho do corpo funcional é consistente com a de frugívoros. Em termos da proporção do intestino delgado em relação ao cólon, os seres humanos se enquadram entre os valores encontrados para os grandes primatas foli-frugívoros, e a condição extrema dos morcegos comedores de bagas e sucos de frutas (ver tabela abaixo). O sistema digestivo dos seres humanos é dominado pelo intestino delgado, uma característica comum para frugívoros, mas também para faunívoros e onívoros.
Proporção do intestino delgado e cólon em grandes primatas, seres humanos e morcegos frugívoros
Grandes primatas Seres humanos Morcegos frugívoros
Intestino delgado 14% – 29% 56% 94%
Cólon 45% 17% – 23% 4%
Dieta Foli-frugívora Intermediária? Bagas e sucos de frutas
Frutas ~ 64%* ? ~ 100
Fibras ~ 27%* ? ~ 0 (cuspido)
Matéria animal ~ 4%* ? ~ 0
* para chimpanzés (
The feeding ecology of apes, Nancy L. Conklin-Brittain, 1 Cheryl d. Knott, 1 and Richard W. Wrangham)
Reduzir um sistema digestivo altamente complexo em algumas formas simples de medida sem levar em conta a química e a fisiologia é super-reduzir. A análise da anatomia do sistema digestivo tende a refletir as propriedades físicas dos alimentos, mas não as suas fontes, de maneira que pode ser incapaz de determinar os detalhes finos de uma dieta, ou pode ser enganosa e é certamente inconclusiva. Mesmo assim, não há razão para excluir os seres humanos da classificação de altamente frugívoros com base na anatomia de seu sistema digestivo.
Recursos orais
A boca de um animal é a primeira parte do sistema digestivo que processa alimentos e, portanto, tem de lidar com os alimentos em seu estado natural não transformado. Por conseguinte, a anatomia da boca tem muito a dizer sobre a dieta de um animal.
Assim como a anatomia digestiva humana não reflete a tendência encontrada nos grandes primatas, da mesma forma os seres humanos têm anatomia oral e dentária que os difere de todos os outros primatas. Nos grandes primatas, proeminentes dentes caninos são a regra, e eles desempenham papel de defesa e de alimentação. Os dentes remanescentes, no entanto, são surpreendentemente semelhantes aos dentes humanos. Por exemplo, dentes de bonobo e dentes humanos se mostram quase idênticos, como revelam as imagens no livro
Bonobo: the forgotten ape (10). Isto sugere uma dieta ou estratégia alimentar muito semelhante e, portanto, evolução. Em contraste com os outros grandes primatas, o dente canino humano é menos proeminente e se parece com o tamanho e a forma dos incisivos. Devido a essa semelhança, caninos humanos são conhecidos como
incisiform caninos e, como tem sido sugerido (8), funcionam como extensões dos incisivos e, por analogia, desempenham a mesma função.
Incisiform caninos grandes e espatulados são encontrados em herbívoros. O macaco
Dusky titi, cuja dieta é constituída 54% de frutas, 28% de folhas e 17% de insetos (11), também tem
incisiform caninos (27). De acordo com Pilbeam (8), “absoluta e relativamente, grandes incisivos estão correlacionados com tarefas de obtenção de alimentos (o que precisa ser feito para se obter pequenas porções), como abrir grandes frutos com cascas duras”.
Em
Dental functional morphology de Peter W. Lucas (p.130), uma ilustração mostra o funcionamento dos incisivos em primatas ao retirar a polpa de frutas ou remover folhas de ramos. Além disso, os seres humanos têm em comum com animais que regularmente se alimentam por sucção: uma boca pequena; um palato liso e abobadado; uma língua lisa e redonda que pode ser moldada para ajustar-se firmemente contra o palato; uma linha parabólica de dentes superiores fechados sem longos caninos e diastemas; e a laringe baixa (27). A boca humana é soberbamente adaptada para abrir e triturar frutos suculentos.
A anatomia dental e oral dos seres humanos é inteiramente consistente com a de um grande primata frugívoro, com a adição de dentes caninos ainda mais adaptados para morder e sugar uma dieta de frutas. Até hoje os dentes caninos se desenvolveram a partir de uma estrutura pontuda, mas frutos suculentos provavelmente têm desempenhado um importante papel na evolução humana, de maneira que a seleção em favor do esmalte dos dentes tem dado lugar a espessas protuberâncias, a ponto de elas terem evoluído para formar um incisivo como um “canino”.
Termos:
§ Faunívoros: animais que comem matéria de origem animal composta de vertebrados ou invertebrados
§ Sacular: em forma de sáculo
§ Convoluto: enrolado em si ou em volta de algo
§ Espatulado: feição anatômica em forma de espátula
§ Diastemas: lacunas entre os dentes
Trânsito digestivo
Qualquer pessoa que observe a velocidade com que as espécies carnívoras e herbívoras mastigam, não pode deixar de notar o quão lento os herbívoros mastigam – de fato, muitos carnívoros dificilmente mastigam tudo antes de engolir. De acordo com Lucas (ibid., p.148), seres humanos mastigam a uma taxa de 1,3 vezes por segundo. Por outro lado, porcos e cães (arquétipos onívoros) mastigam a uma taxa de 3,03 a 3,16 vezes por segundo, respectivamente, enquanto que cabras montanhesas mastigam a uma taxa de 1,28 vezes por segundo – taxa consistente com uma vasta gama de herbívoros de dimensões semelhantes a dos seres humanos. Os seres humanos parecem comer muito lentamente quando comparados aos arquétipos onívoros.
De acordo com Jordano (5), para receber proteínas suficientes de uma dieta rica em frutas, fortes frugívoros devem consumir grandes quantidades de frutas, que eles digerem e eliminam rapidamente. Chivers conclui que o sistema digestivo humano está adaptado para digerir rapidamente os alimentos (1). Os testos de Milton (7) declaram que o sistema digestivo humano está ainda em seu estado ancestral de digestão herbívora mais lenta. Se os seres humanos estão realmente adaptados ao consumo de carne, e, como alegado por Chivers, a carne é rapidamente digerida, então por que todos os animais estudados no trabalho de Milton só digerem lentamente como os herbívoros?
Segundo Milton, o tempo médio de trânsito de marcadores líquidos em chimpanzés alimentados com dietas de elevado teor de fibra (um cenário mais natural) é de 35,1±2,3 horas, enquanto que em seres humanos esse valor varia de 38,9 a 61,6 horas, para, respectivamente, dietas ricas e pobres em fibras (resultados obtidos com marcadores de partículas são semelhantes). Evidentemente, apesar de o cólon humano ser relativamente pouco convoluto, o ser humano não digere a dieta de “onívoros” culturais mais rápido do que o faz um chimpanzé, que tem de decompor a dura matéria de folhagem por um dia e meio. Segundo Burkitts (13), apenas os moradores rurais com uma dieta rica em fibras têm tempos de trânsito comparáveis àqueles encontrados nos chimpanzés. Em contraste, indivíduos que comem dietas ocidentais mais processadas têm tempos de trânsito que variam de 42,4 horas, para vegetarianos do Reino Unido, a 83,4-144 horas, para
naval persons.
É bom lembrar que humanos contemporâneos “onívoros” sofrem de apendicite, diverticulite e câncer de cólon. Com efeito, cerca de 40% da população do Reino Unido sofre de constipação (14), enquanto que as hemorróidas afetam cerca de um terço da população e cerca de dois terços da população mais velha. Não está claro como essas questões médicas afetam estudos comparativos digestivos que incluem seres humanos.
No estudo de Milton, todos os grandes primatas estudados e os seres humanos tiveram um tempo de primeira aparição de marcadores digestivos de aproximadamente 24 horas. No arquétipo “onívoro” cão, tempos médios de trânsito foram reduzidos de 37,4 para 28,7 horas quando mais fibras foram adicionadas às suas dietas (15) – no entanto, o tempo de primeira aparição pode ser bem menor. Milton dá números para alguns carnívoros, que mostram que eles digerem e eliminam mais rápido do que os seres humanos conseguem com dietas com alto teor de fibra.
A investigação sobre os tempos de trânsito digestivo parece ajustar-se desconfortavelmente às conclusões sobre a anatomia digestiva. Cães domésticos não parecem digerir dietas baseadas em carne de maneira mais rápida do que chimpanzés ou seres humanos alimentados com dietas ricas em fibras, embora eles o façam quando mais fibras são adicionadas às suas dietas. Pode ser que os tempos médios de trânsito sejam mais reflexivos da dieta e do tamanho do corpo do que da anatomia digestiva. Pesquisas em seres humanos também descobriram que a adição de carne à dieta correlaciona-se com tempos de trânsito reduzidos (17), um fator de risco para câncer (17, 18). A investigação sobre tempos de trânsito parece limitada a poucas espécies e observações. No entanto, o estudo de Milton não é consistente com seres humanos sendo eficientes comedores de carne. Além disso, tempos de trânsito digestivo para a carne em seres humanos podem ser artificialmente menores devido à extração artificial do sangue, da qual o alto teor de ferro promove a constipação.
Fatores bioquímicos
Seguindo a tendência de que os seres humanos são estranhos à anatomia digestiva dos grandes primatas, talvez não seja surpreendente descobrir que nossas necessidades nutricionais também são incomuns. A composição nutricional (19) do leite materno humano é mostrada na tabela abaixo, junto com a dos grandes primatas.
Primatas Sólidos totais
(%)
Proteína
(%)
Gordura
(%)
Açúcar
(%)
Cinzas
(%)
Seres humanos (*1) 12,5 1,0 4,4 6,9 0,2
Grandes primatas (*2) 11,5 2,8 3,0 5,5 0,2
A composição do leite de primatas.
(*1) Homo sapiens, Packard, 1982; (*2) Pongo pygmaeus, Pan troglodytes, Ben Shaul, 1962; Gorilla gorilla, Tailor & Tomkinson, 1975.
Os grandes primatas produzem leite que contém quase três vezes mais proteínas do que o leite humano, e um pouco menos açúcar e gordura. Isso não é surpreendente porque bebês humanos nascem em um estado de desenvolvimento comparativamente imaturo, posto que suas cabeças relativamente grandes devem passar através da abertura limitada do colo do útero, enquanto o corpo ainda não está maduro. A falta de desenvolvimento do corpo dos bebês humanos e a sua relativa imobilidade são coerentes com o consumo freqüente de um leite pobre em proteínas e de baixo valor energético.
A característica falta de desenvolvimento do corpo humano versus o desenvolvimento da cabeça é chamada
desomatisation e é uma característica de primatas em geral, como Terrance Deacon explica em seu livro
The symbolic species (20).
De acordo com
Harper’s biochemistry, 24th ed., o corpo humano masculino é constituído em média de 17% de proteína (p.6), das quais a maioria é músculo. O músculo humano é constituído de 18 a 20% de proteína, enquanto que o tecido cerebral é constituído de apenas 8% de proteína (21), mas tem o dobro da gordura dos músculos. As proteínas do tecido cerebral também são mais longevas do que as dos músculos. Comparado aos músculos, portanto, o tecido cerebral tem menor custo em termos de exigências protéicas.
Números aproximados obtidos do trabalho de Nancy Lou Conklin Brittaine outros (22) mostram que os frutos silvestres consumidos por chimpanzés são compostos em média por 0,9% de proteínas, 4% de carboidratos (1% de açúcar e 3% de fibras) e por cerca de 0,4% de gordura. Como na fase adulta as exigências por nutrientes são inferiores às requeridas para o crescimento e desenvolvimento, é fácil perceber porque os chimpanzés são capazes de viver à custa de frutas como maior parte de sua dieta. Por analogia, uma situação semelhante deve suceder para seres humanos, com uma menor exigência por proteínas, e talvez uma maior exigência por açúcares para alimentar o cérebro, posto que a glicose é o metabólito primário do tecido cerebral.
A bioquímica humana é má dotada para lidar com altas ingestões de proteínas, como seria de se esperar de uma espécie adaptada a uma dieta rica em frutas. Quando uma dieta excede a ingestão de cerca de 100 a 150 gramas de proteínas por dia, o peso infantil resta reduzido (23). A ingestão de níveis mais elevados de proteínas induz o indivíduo a uma condição letal chamada
rabbit starvation (24), embora os números da ingestão diária de calorias variem de 35% (24) a 50% (23). Nenhuma condição semelhante fora relatada em faunivoros ou onívoros. Por outro lado, cães alimentados com ração para animais são conhecidos por desenvolverem doenças de pele e pêlo.
Nota de tradução:
Rabbit starvation (fome de coelho), também conhecido como envenenamento de proteínas ou
mal de caribou, é uma forma aguda de desnutrição causada por excesso de consumo de qualquer carne magra (por exemplo, coelho) conjugado com uma falta de outras fontes de nutrientes geralmente em combinação com outros agentes, tais como o ambiente frio ou árido severo. Adaptado de
https://en.wikipedia.org/wiki/Rabbit_starvation
Uma idéia de muitos antropólogos é que o consumo de matéria animal possibilitou aos seres humanos se proverem de calorias adicionais por unidade de massa de alimento sobre sua dieta original a base de vegetais, em quantidades suficientes para lhes conferir a evolução de cérebros maiores. Mas como Deacon (20) salientou, seres humanos nascem com corpos menores, não com cabeças maiores. Além disso, esse firme impulso pelo consumo de alimentos de alto teor calórico é acusado de fazer parte de uma estratégia dietética maternal (2). No entanto, de acordo com Speth (23), durante este período as mulheres experimentam comumente aversão à carne e aos odores da carne, e os seus desejos são, na maior parte, pelo consumo de carboidratos. Speth também especula que níveis elevados de carne durante a gravidez podem ser prejudiciais ao feto.
Os seres humanos também são incapazes de sintetizar a vitamina C, uma característica exclusiva dos herbívoros, incluindo os grandes primatas. Isso e as diferenças fundamentais de anatomia e fisiologia acima descritas deverão excluir os seres humanos de serem agrupados a outros onívoros, o que reforça a teoria de que os seres humanos são altamente frugívoros. No plasma sangüíneo, a vitamina C tem meia-vida de apenas 30 minutos. Portanto, os seres humanos devem ingerir alimentos frescos regularmente para manter uma reserva significativa desse nutriente (31). Tendo em conta esse fato, não é nenhuma surpresa que as frutas tenham sido declaradas eficazes remédios contra o escorbuto.
Uma das mais comuns doenças associadas ao consumo humano de produtos de origem animal é a doença cardiovascular. A aterosclerose é a mais prevalente das doenças degenerativas letais. Segundo
Harpers biochemcistry, 4th ed., “os coelhos, porcos, macacos menores e seres humanos são espécies em que a aterosclerose pode ser induzida por ingestão de colesterol. Os ratos, os cães e os gatos são resistentes”, além de que “dietas ricas em palmitato inibem a conversão do colesterol em ácidos biliares”. A carne é uma rica fonte de palmitato. Na página 281, afirma-se ainda que grandes refeições pouco freqüentes (prática coerente com uma dieta carnívora) contra alimentação mais contínua (prática coerente com uma dieta vegetariana) afeta negativamente o status de colesterol.
Outro efeito perigoso de se comer uma dieta rica em carnes (ou outros compostos sulfurados) contra dietas baseadas em vegetais é a produção de
ácido sulfúrico no cólon. Bactérias no intestino irão converter o enxofre não digerido e os aminoácidos em ácido sulfídrico (o cheiro do ovo podre), que por sua vez se combina com a água e forma o ácido sulfúrico. Isso tem sido objeto de estudo por promover uma série de doenças, como relatado na revista
New scientist (26). Parece que o cólon humano é, afinal de contas, melhor adaptado para alimentos vegetais do que para a carne.
Termos:
§ Estranho: fora do resto da população; não pertencente a uma população
A herbivoridade está nos genes
Hiperoxalúria primária tipo 1 (PH1) é uma doença recessiva em que a enzima AGT (alanina glioxalato aminotransferase) é redirecionada dos peroxissomas, onde ela atua sobre o glioxalato, para a mitocôndria (28), onde ela é ineficiente. Esse transtorno pode ser causado pela deficiência de pelo menos duas enzimas metabolizadoras de glioxalato, elevando a síntese e excreção renal excessivas do oxalato, resultando cálculos renais e/ou calcificação dos rins, que podem ocorrer na infância ou na adolescência. Pacientes costumam morrer acometidos de insuficiência renal terminal com idade média de 36 anos (29). No entanto, terapias com vitamina B12 e mudanças de hábitos alimentares podem aumentar a longevidade em certas formas do transtorno.
Notas de tradução:
§ A hiperoxalúria compromete o metabolismo do glioxalato. Fonte: Sociedade Brasileira de Nefrologia
§ A enzima AGT catalisa a conversão de glioxalato para glicina.When AGT activity is absent, glyoxylate is converted to oxalate, which forms insoluble calcium salts that accumulate in the kidney and other organs. Quando a atividade AGT está ausente, glioxalato é convertido em oxalato, que forma sais insolúveis de cálcio que se acumulam nos rins e em outros órgãosIndividuals with PH1 are at risk for recurrent nephrolithiasis (deposition of calcium oxalate in the renal pelvis/urinary tract), nephrocalcinosis (deposition of calcium oxalate in the renal parenchyma), or end-stage renal disease (ESRD) with a history of renal stones or calcinosis.
Segundo Birdsey e outros, “uma adaptação molecular dietética largamente disseminada entre os mamíferos é o diferencial intracelular que orienta o metabolismo intermediário da enzima AGT, que tende a ser mitocondrial em carnívoros, peroxissomal em herbívoros e ambos, mitocondrial e peroxissomal, em onívoros” (30).
Como vimos, os seres humanos normais manifestam o gene da enzima AGT eficazmente em seus peroxissomas, mas quando a enzima AGT é direcionada para a mitocôndria, como ocorre na mutação PH1, ela pode não funcionar eficazmente. Assim, pode-se concluir que os seres humanos evoluíram através de uma linhagem herbívora, tendo peroxissomas adaptados ao metabolismo eficaz do glioxilato, mas não mitocôndrias adaptadas ao metabolismo eficaz desse mesmo elemento.
Termos:
§ Hiperoxalúria: excesso de oxalato na urina
§ Peroxissomas: partes da célula que ajudam a metabolizar ácidos glicólicos e outros metabólitos
§ Mitocôndrias: partes da célula responsáveis pela produção de energia
Comportamento
Os Yerkes passaram grande parte de suas vidas trabalhando com primatas e estudando literatura especializada em primatas. Segundo Tuttle (4), os Yerkes evitavam o uso corriqueiro do termo ‘instinto’ ao longo de seu livro porque concluíram que a maioria dos grandes primatas, especialmente os bebês, facilmente se acomodava a uma ampla gama de alimentos humanos (p.55). Esta é provavelmente a mesma situação em que podemos encontrar seres humanos, sem nenhum instinto particularmente forte para comer alimentos específicos em seu estado natural. Na verdade, alguns dos poucos impulsos genuinamente encontrados nos seres humanos e que, portanto, talvez sejam ‘instintos’, são a gula, a repulsa por substâncias amargas e o fenômeno da ‘perversão do apetite’. Os seres humanos certamente não comeriam as folhas amargas e os frutos de mau gosto que fazem parte da dieta dos chimpanzés.
Uma atração instintiva ao cheiro das presas também não é um traço que podemos encontrar em seres humanos e que seria de se esperar de um típico carnívoro ou onívoro. Espécies que comem frutas localizam visualmente seus alimentos. Onívoros arquetípicos, como porcos, cães ou ursos têm olfato agudo e podem localizar alimentos enterrados. Naturalmente, presas podem ser localizadas visualmente, que é um bom método para a obtenção de alguns tipos de insetos.
De acordo com Chivers (3), os seres humanos apenas se tornaram onívoros porque passaram a usar tecnologias de processamento alimentar (p.4), que permitem aos seres humanos processar plantas resistentes e matérias animais comestíveis. Ele ainda vai mais longe ao afirmar que o onivorismo é impraticável devido à incapacidade de qualquer anatomia digestiva em lidar com uma quantidade significativa de matéria vegetal resistente, frutas e matéria animal. Animais tendem a se concentrar em um ou dois tipos diferentes de alimentos como sustentáculo de sua dieta.
Sem o emprego do fogo e o uso de instrumentos de caça, o que teriam comido os antigos ancestrais humanos? Algumas literaturas paleoantropológicas sugerem que os ancestrais humanos eram frugívoros, embora muitas vezes seja sugerido que matérias animais fizessem parte de suas dietas, quer como carcaças envelhecidas, quer como invertebrados. Qualquer que seja a verdade, nós sabemos que os seres humanos modernos não são atraídos pelo cheiro de animais mortos. Não é um comportamento típico dos seres humanos caçar outros animais e consumir os seus restos em seu estado bruto e sangrento, ou no estado de decomposição em que, por vezes, os animais consumidos por onívoros são encontrados na natureza selvagem. Alguém poderia sugerir que isso se deve principalmente ao condicionamento cultural, mas o fato é que há uma série de riscos desagradáveis para quem se dispõe a comer matéria animal não cozida, incluindo vários tipos de parasitas e toxinas encontradas no tecido necrótico, bem como a natureza geralmente intragável da carniça. Talvez seja por isso que tanto esforço seja feito por seres humanos para disfarçar, com ervas e outros temperos derivados de plantas, o sabor genuíno e o aspecto natural dos alimentos derivados dos animais; uma situação não condizente com um carnívoro ou um onívoro. Por outro lado, os seres humanos são atraídos pelos sabores doces e pelo cheiro de frutas e flores.
Questões confusas
Segundo Milton (7), em uma publicação de 1904, os fisiologistas Elliot e Barclay-Smith haviam declarado que o intestino humano estava mais próximo do intestino de um herbívoro do que do intestino de um onívoro. Eles estavam desacreditados, esquecidos ou talvez as pessoas julgassem que suas conclusões fossem imprecisas? No século seguinte muito mais biologia comparativa foi produzida e, apesar de (ou por causa de) milhares de dissecações, a busca ainda parece ser inconclusiva.
Há questões axiomáticas enfrentadas por biólogos comparativos que os impossibilitam de produzir resultados úteis e precisos. Quanto mais um pesquisador mergulha na lacuna existente entre a espécie do animal objeto da comparação e o homem, menores as chances de ele encontrar um espécime suficientemente semelhante ao homem para que possa ser aproveitado. O chimpanzé parece ter se tornado o foco de muitos antropólogos, mas o exame de seus dentes, de suas fezes e do sabor dos alimentos que come deve ser suficiente para convencer qualquer pessoa de que nós não partilhamos de sua dieta. Os chimpanzés não são meros antepassados humanos e seguiram seu próprio caminho evolucionário, muito diferente do nosso, por milhões de anos. De qualquer maneira, os chimpanzés têm suas próprias culturas alimentares e seus próprios desafios ambientais, e eles podem aprender novos comportamentos, observando os seres humanos, o que pode confundir as comparações.
Talvez devido ao abismo que há entre os grandes primatas, outros pesquisadores optaram por se focarem nos antepassados mais recentes dos homens, examinando achados fósseis ou observando caçadores-coletores contemporâneos. Infelizmente, como Lewin advertiu (25), não há maneira de saber se os fósseis encontrados são nossos ancestrais, ou simplesmente nossos primos (p.59). Como cada novo achado fóssil é incorporado à árvore evolutiva, a árvore se torna cada vez mais complexa, de maneira que aquela visão linear simples de nossa alegada ancestralidade tem de ser freqüentemente ajustada. Lewontin diz que “a maioria dos fósseis de idades diferentes não podem ser conectados em uma seqüência linear, mas representam uma pequena amostra de várias linhas paralelas”.
Além disso, posto que a enculturação e a disparidade de habitat são influências confusas mesmo no chimpanzé, que chance nós temos de encontrar uma dieta naturalista entre hominídeos antigos? Além disso, mesmo que pudéssemos, como convenceríamos as pessoas de que as dietas desses indivíduos eram realmente saudáveis, sem registros médicos ou amostras de tecidos moles para analisar? Indagação semelhante se aplica aos estudos de caçadores-coletores contemporâneos – eles são realmente saudáveis? Certamente há lições a tirar, mas a riqueza de uma pesquisa empírica nutricional, por vezes, é ignorada na esperança de se encontrar uma dieta ideal em caçadores-coletores ou em grandes primatas.
Antes de embarcar em uma missão para criar uma classificação de dieta, é essencial definir rígidas categorias quantificadas e mutuamente exclusivas, bem como algum tipo de método sistemático. A ausência de um sistema preciso que tal inevitavelmente nos levou a uma confusa e generalizada nomenclatura. O termo onívoro parece se aplicar a uma ampla variedade de dietas, que variam desde pequenas quantidades de matéria orgânica a base de insetos até refeições regulares e completas de carniça. Devido a esta imprecisão, cientistas fariam bem em se abster de usar o termo onívoro, como Chivers (e outros) têm apontado.
Onde é que isso deixa o ser humano? Podemos mostrar que somos vasta e substancialmente adaptados a dietas baseadas em plantas e, em particular, em frutas suculentas. Podemos também mostrar que compartilhamos algumas semelhanças anatômicas não muito próximas com primatas menores que fazem uma parte significativa de suas dietas de matéria animal. No entanto, não parece haver nenhuma evidência convincente de que os seres humanos sejam biologicamente adaptados ao consumo de alimentos derivados de animais, mas sim evidência de plena falta de adaptação. Esse parece ser um triste caso de seres humanos sendo agrupados a porcos, cães, ursos e outros “onívoros” irrefutáveis.
A evidência comportamental é talvez a menor evidência científica e, ainda assim, em muitos aspectos parece ser bastante convincente. Em conjunto, as evidências parecem sugerir uma dieta foli-frugívora como natural para seres humanos, com um sistema digestivo que provavelmente pode tolerar pequenas quantidades de matéria animal. Assim, é impreciso, mas não necessariamente errado de maneira absoluta, chamar os seres humanos onívoros.
No início desse artigo, para testar a hipótese de que os seres humanos são onívoros, propôs-se, como critério, ponderar os impactos de saúde causados pelo consumo regular de uma quantidade significativa de produtos de origem animal. Dentre as populações do mundo, são as ocidentais que geralmente consomem produtos animais em maior quantidade. A epidemiologia dessas populações tem provado claramente que dietas ricas em produtos de origem animal estão diretamente associadas a epidemias de doenças degenerativas, como as doenças cardiovasculares e o câncer.
O problema é que a epidemiologia se baseia em associações estatísticas que não revelam os fatores causadores. Até o momento, comparar comedores de carne com vegetarianos ainda não conseguiu produzir uma prova conclusiva (32). Mesmo assim, evidências parecem sugerir que a redução da ingestão de carne está associada a resultados mais saudáveis. Estudos que comparam comedores de carne e vegetarianos são inconclusivos pelo fato de que os vegetarianos têm estilos de vida de muitas formas mais saudáveis do que o praticado pelo comedor de carne médio – seja como for, os vegetarianos ainda podem comer porções significativas de produtos de origem animal. Um resultado melhor seria esperado de um estudo que objetivasse uma população cujo nível de consumo de alimentos derivados de animais fosse variável, enquanto outros fatores de estilo de vida permanecessem comparáveis. No entanto, isso ainda não superaria os problemas inerentes ao uso de associações estatísticas.
Ainda que fosse possível superar o problema da utilização de estatísticas, pode-se sugerir que métodos contemporâneos de criação de animais produzem alimentos não saudáveis de origem animal. Com efeito, existe hoje um movimento popular em favor de uma criação mais “natural” de animais, na crença de que esses animais venham a ter uma alimentação saudável. Essa reivindicação parece fazer pouco sentido. As populações tradicionais que consomem grandes quantidades de produtos de origem animal, oriundos de animais que vagam livremente, têm sido acometidas de extensa gama de doenças cardiovasculares (33). Se esse quadro é sugestivo de que as ingestões são excessivas, então isso leva à questão de qual o nível de ingestão de alimentos de origem animal que, acredita-se, seja livre de efeitos adversos. Então, isso leva à questão do por que os seres humanos devem ser negativamente afetados por uma maior ingestão de alimentos de origem animal se eles supostamente estão adaptados a tal dieta.
Tendo em conta todas as informações acima, as provas de que os seres humanos são onívoros não são convincentes. Os seres humanos não têm nenhuma clara adaptação para consumir alimentos de origem animal, e o consumo regular desse tipo de alimento está associado a resultados pouco saudáveis. Em contraste, as evidências apresentadas são totalmente coerentes com a alegação de que os seres humanos são frugívoros especializados.
Termos:
§ Enculturação: processo pelo qual uma cultura estabelecida ensina um indivíduo pela repetição de normas aceitas
Nota de tradução: processo de condicionamento e/ou de aprendizagem, consciente ou inconsciente, formal ou informal, mediante o qual um indivíduo, no decorrer da vida, apreende os padrões gerais de sua cultura; socialização (
www.achando.info/index.php).
fonte:
http://sementeviva.net/alimentacao-viva-um-estilo-de-vida/os-seres-humanos-sao-onivoros/