Folha de São Paulo - 03/03/2013
Na catedral da física
O bóson de Higgs é mais uma entidade onipresente do que uma sombra; está por toda parte, como o ar
Passei esta semana no Cern, o laboratório europeu de física de partículas onde, em julho do ano passado, foi descoberto o famoso bóson de Higgs, infelizmente também conhecido como "partícula de Deus".
Já havia estado lá antes, como pesquisador visitante, por três meses. Isso foi bem antes da grande descoberta do ano passado, mas, para nós, físicos, o Cern já era famoso. Foi lá, em 1983, que foram descobertos outros bósons muito importantes, com os nomes menos sugestivos de W+, W-, e Z0.
Esse trio de partículas confirmou a previsão feita por teóricos, ainda na década de 1960, de que as forças eletromagnéticas e fracas (estas responsáveis pelo decaimento radioativo) comportam-se da mesma forma a altas energias. Nesta outra realidade, as duas podem ser vistas como facetas distintas da mesma força unificada, a força "eletrofraca".
Na busca por explicações cada vez mais abrangentes dos fenômenos naturais, nada mais atrativo do que teorias que unificam entidades distintas dentro de uma mesma explicação.
A descoberta do bóson de Higgs marca o início de um novo capítulo da física de partículas. Os dados ainda não são suficientes para que se confirmem muitas das propriedades da partícula. É como se soubéssemos que a sombra que vimos projetada na parede é de um ser humano, mas ainda não sabemos se é homem ou mulher, jovem ou velho, a cor dos olhos etc. Para os detalhes, serão necessários mais dados, ou seja, mais colisões e estudos.
Como aceleradores de partículas podem ser vistos como uma espécie de supermicroscópio, quanto maior a energia da colisão (equivalente ao poder de magnificação), mais podemos decifrar das intricadas propriedades das partículas elementares de matéria.
Infelizmente, o acelerador foi fechado semana retrasada, e permanecerá assim por dois anos. O objetivo é atingir o dobro da energia atual quando reabrir em 2015. Com isso, poderemos entender melhor que sombra é essa que vimos.
O bóson de Higgs é mais uma entidade onipresente do que uma sombra; está por toda parte, como o ar que respiramos em nossa atmosfera. Aparentemente imaterial, tem substância e interage com todas as outras partículas de matéria, incluindo as que transmitem as forças entre elas, como os bósons acima mencionados. A exceção é o fóton, a partícula de luz, que parece ser imune ao charme do Higgs. Essa imunidade explica por que o fóton é única partícula sem massa. (Talvez exista outra, o gráviton, a suposta partícula responsável pela gravidade. Mas, por enquanto, o gráviton permanece uma especulação.)
Como um espírito arredio, o bóson de Higgs é muito difícil de encontrar. Quando surge, desaparece quase que imediatamente, em menos de um trilionésimo de segundo. Ao pensar que, para encontrá-lo, foi necessária a maior máquina já construída na história da humanidade, alojada dentro de estruturas gigantescas, fica difícil não pensar nas antigas catedrais, também imensas, também dedicadas à busca de entidades um tanto etéreas.
As diferenças são muitas, mas a analogia é tentadora. A busca da ciência não deixa de ser uma forma de peregrinação.
Folha de São Paulo - 10/03/2013
Matemática e futebol
A beleza de uma jogada vem do uso inusitado da criatividade sob regras predeterminadas
Certos resultados da matemática têm a força de verdades absolutas, independentemente de qualquer interpretação ou contexto.
Quando afirmamos que 2+2=4 sabemos que isso sempre será correto, ao menos para entidades inteligentes capazes de contar. Saindo da aritmética para a álgebra, dada uma equação, por exemplo, x + 3 = 4, sabemos que só existe uma solução para x, x = 1.
O mesmo se dá com a geometria euclidiana, que aprendemos na escola. Armados de certos axiomas (asserções tomadas como verdadeiras que servem como ponto de partida para a elaboração de resultados), podemos provar uma série de resultados que são únicos.
Por exemplo, que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus ou que a circunferência de um círculo de raio R é 2piR.
Esse tipo de aplicação cristalina da razão traz uma profunda sensação de controle: dadas certas regras, sabemos construir resultados verdadeiros. A tentação de extrapolar a matemática como sinônimo de verdade torna-se enorme: se a natureza obedece a leis matemáticas, devemos poder entendê-la de forma absoluta. Mas será que podemos afirmar que a matemática é critério de verdade no mundo natural?
O poder da matemática vem da sua independência de contexto. Mesmo que os conceitos tenham sido derivados da necessidade de medir distâncias e intervalos de tempo ou de contar cabeças de gado e calcular o seu valor, uma vez criados podem ser usados em qualquer situação adequada: um triângulo é um triângulo aqui ou em Marte.
O exercício da matemática é um jogo que segue regras predeterminadas. A inovação vem da liberdade controlada propiciada pelas regras, aliada à criatividade humana. O mesmo ocorre num jogo de xadrez: as regras são rígidas, mas duas partidas jamais são iguais.
O mesmo ocorre no futebol. O que torna esportes empolgantes é a variabilidade que existe a partir das mesmas regras. Se jogos se repetissem, esportes perderiam a graça. A diversão vem da surpresa.
Na matemática e nos esportes, o novo vem de uma estrutura rígida. Ambos são expressão de uma criatividade controlada. A beleza numa jogada vem do uso inusitado dessa criatividade dentro dos padrões permitidos pelas regras. Gol de mão não vale, mas um gol de bicicleta bem no ângulo é sensacional.
Na matemática, pode-se inventar mundos estranhos, geometrias em mais de três dimensões e noções diferentes de infinito ou conceitos como pontos e linhas, objetos sem volume que determinam as propriedades do espaço.
Essas regras e abstrações são criações da mente humana, ferramentas que usamos para ordenar a realidade que percebemos.
Da mesma forma que um partida de futebol só pode ser jogada se as regras forem seguidas, as "verdades" da matemática só fazem sentido dentro da estrutura em que foram criadas. Como nós criamos estas estruturas, a matemática é criação nossa, do nosso jeito de pensar o mundo. Outras inteligências podem inventar a matemática delas, e dicionários podem ser criados traduzindo as "verdades" de cada um.
A diferença entre a matemática e a natureza é que esta segue apenas as suas regras.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de "Criação Imperfeita". Facebook: goo.gl/93dHI