QUESTÃO: O casamento é uma necessidade ou um luxo?
KRISHNAMURTI: Examinemos o problema, a questão. Porque casamos? Primeiro, obviamente, devido à biológica necessidade, o ímpeto sexual, que a sociedade legalizou com o casamento. A sociedade quer proteger a criança de modo a não serem ilegítimas, porque olha para essas crianças com desdém. Sendo assim, legaliza-se o casamento. Mas certamente essa não é a única razão porque casamos. Devido às exigências psicológicas, por esse motivo, casamos. Eu preciso de um companheiro, alguém que eu possa possuir, dominar, alguém a que possa chamar meu. Posso fazer com a minha mulher aquilo que entender, ela é subordinada do homem – neste país que é a Índia, não na América. Aqui, o sistema do casamento fez da mulher uma escrava, para ser protegida, controlada, dominada, possuída. Não olhem para os outros senhores, todos estão envolvidos nisso. A mulher é uma possessão, assim como possuo uma propriedade, assim possuo a minha esposa. Possuo-a sexualmente e domino-a superficialmente.
Psicologicamente, possuir dá-me conforto, segurança: a minha propriedade, a minha mulher, os meus filhos – o horror disso tudo. Tratamos os seres humanos como se fossem materiais, sem consideração alguma, porque, assim que possuo legalmente, encontram-se debaixo meu domínio.
Então, a sociedade legaliza o casamento com o intuito de perpetuar a
raça, para segurá-la sob determinados limites; mas psicologicamente, internamente, posso fazer aquilo que me apetecer. Vocês conhecem toda essa coisa que acompanha a existência, os horrores, as agonias, as misérias, aqueles que são casados e que não se amam. Como pode haver amor se existe a vontade de possuir? E se não casarem, o que acontece? Tenho visto isso em muitos países; existe aquilo a que se pode chamar casamento por conveniência. Não fiquem chocados. Se não existe amor, o casamento por conveniência revela ser um bom motivo, um escapismo para o apetite sexual e irresponsabilidade.
Então, sem amor, ambos são um horror. Mas a sociedade não quer saber, não quer saber, se existe amor ou não; e como a maior parte de nós está tão concentrada, absorvida com tanto interesse no seu negócio, emprego, seja ele de qualquer natureza, em ganhar dinheiro ou seja lá o que for impiedosa e cruelmente, assim também no mundo, como pode assim haver amor por alguém no lar? Não se pode, por um lado, explorar o vizinho, até ao tutano, sugar tudo dele, para depois ir para casa e ser afectuoso para com a mulher. Não senhores, não se pode fazer ambas as coisas.
Mas é isso mesmo que estão a tentar fazer e é por causa disso que não há amor. É por isso que o casamento em qualquer parte do mundo é uma irresponsabilidade miserável.
O casamento é também uma forma de autoperpetuação. Eu quero continuidade através dos meus filhos. Assim sendo, os filhos revelam-se muito importantes, não por eles mesmos, mas para a minha própria continuidade – o meu nome, a minha classe, a minha casta. Vocês conhecem essa realidade.
E naturalmente, quando se está meramente a usar os filhos para a própria continuidade, não há amor.
Como pode haver amor se estão mais interessados na própria continuidade através deles, do que a amá-los, como eles são?
Assim, a tradição e o nome são mais importantes, porque eles são os meios de se perpetuar através da descendência.
Para compreender este problema, para descobrir o que está envolvido, temos que o estudar, mergulhar no assunto. Ao estudar surge a inteligência, e só a inteligência e o amor podem lidar com este problema, não a mera legislação.
No momento em que possuo uma pessoa, ela torna-se uma prostituta; isto é, a pessoa é mais importante, não por ela, mas porque eu mesmo estou vazio, com fome, feio, sou insuficiente, pobre, então eu uso a outra pessoa – a minha mulher, o meu empregado, o que quer que seja – para esconder o meu vazio interno.
Assim, o possuído, revela-se muito importante como um meio de escapar à minha própria solidão, e naturalmente cresce o ciúme e a inveja quando o outro, que me ajuda a escapar de mim mesmo, olha para outra pessoa.
Para compreender, todo este processo humano, que é extremamente complexo e subtil, tem de haver inteligência. Inteligência é também amor e não meramente o intelecto; e não há amor se por um lado somos impiedosos no nosso emprego e nas relações da vida do dia a dia, e por outro tentarmos ser gentis, carinhosos e misericordiosos.
Não se pode ser ambas as coisas, não se pode ser um rico ambicioso e ser carinhoso e gentil. Não se pode ser o comandante de uma indústria ou um importante político e ser misericordioso. Ambos não se complementam, não se dão um com o outro. E é apenas quando há amor, carinho, misericórdia, tolerância – que é inteligência, a mais alta forma de inteligência – que este problema é resolvido. Somos seres humanos, quer sejamos homem ou mulher, estamos vivos, somos sensíveis, não somos chão para sermos pisados, usados sexualmente ou mentalmente para autogratificação. No momento em que olhamos uns para os outros como seres humanos, como indivíduos, não como algo para ser possuído, então existe uma possibilidade de compreensão e de ir além do conflicto que existe entre duas pessoas no casamento.
J.Krishnamurti - Bombay, 1948