06/03/2008
Bananas
A última crise sul-americana mostra como o continente, apesar de avanços na sua governança econômica, ainda está contaminado por forças políticas anacrônicas, da época em que os países da região eram pejorativamente chamados de República das Bananas, governados por ditadores populistas e/ou militares burlescos que combatiam guerrilhas comunistas pouco sérias, todos muito bem esculhambados por Woody Allen em "Bananas" (1971).
As Farc (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas) foram criadas em 1964 como braço armado do Partido Comunista, pregando melhor distribuição de renda e menor interferência estrangeira nos assuntos colombianos.
44 anos depois, elas seguem com as mesmas bandeiras retrolucionárias, embrenhadas pelas matas profundas da Colômbia e países vizinhos com suas barbas, uniformes e metralhadoras lembrando séculos e lutas passadas.
Mas seu combustível não é mais a ideologia mofada e decrépita do comunismo guerrilheiro, e sim o dinheiro do narcotráfico e da extorsão via seqüestros, sem mencionar as acusações de ajuda logística e financeira de governos vizinhos simpatizantes.
As Farc (Narc?) seqüestram, torturam e atacam populações civis além de cobrar sua gorda parte dos traficantes de coca. Que tenham apoio de parte da esquerda que se diz humanista é uma contradição chocante. Já o apoio explícito de Hugo Chávez, o petrocaudilho venezuelano, é coerente.
As Farc são muito úteis ao projeto chavista. Ele aposta no confronto, na divisão do continente, um projeto oposto ao do Brasil, com quem compete pela liderança regional. Enquanto Brasília quer liderar a América do Sul via união política e econômica fincada na democracia, Chávez busca a liderança via divisão e beligerância.
Com o cofre cheio de petrodólares, o coronel venezuelano saiu comprando apoio pelo continente para propagar sua Revolução Bolivariana, com exatamente as mesmas bandeiras das Narc: redistribuir riquezas e reduzir a influência estrangeira (americana) na região. Seus argumento$ financiaram campanhas políticas e conquistaram aliados em países disfuncionais e carentes de capital, como a Bolívia de Evo Morales, o Equador de Rafael Correa, a Argentina dos Kirchner, a Nicarágua de Daniel Ortega e o moribundo regime cubano da famiglia Castro.
Mas estatísticas do próprio governo da Venezuela mostram que as desigualdades econômicas no país aumentaram entre 2000 e 2005 (Chávez assumiu em 1999), sem falar na explosão da criminalidade e de carências econômicas indisfarçáveis apesar da bonança do maior boom petroleiro em décadas.
Seu populismo econômico repete a fórmula do fracasso já testada inúmeras vezes na região: políticas fiscais expansionistas, inflação, tentativa de controle de preços seguidas de desabastecimento de produtos básicos.
A politização da PDVSA, a estatal petroleira responsável por grande parte do PIB do país, e ações que afugentam investidores reduziram a produção venezuelana de 3,51 milhões de barris de óleo/dia em 1998 para 2,39 milhões em 2007, numa época em que o barril atinge preços recordes.
A turbulência econômica, a violência urbana e a realização por camadas cada vez maiores de venezuelanos das intenções autoritárias do petrocaudilho deram a Chávez sua primeira grande derrota eleitoral em 2007, no referendo que ampliaria ainda mais seus poderes.
Com sua "revolução" ameaçada, Chávez acentua a cartada externa. Primeiro, usa sua relação privilegiada com a narcoguerrilha para obter a libertação de reféns. Depois, aproveita-se da invasão do Equador pela Colômbia para eliminar o número dois das Farc para rufar os tambores da guerra, ameaçando usar seu novo arsenal de armas russas.
Sintomático, enquanto a Organização dos Estados Americanos finalizava uma posição conciliadora para a crise, Chávez bradava o envio de mais tropas à fronteira colombiana.
A invasão do Equador pelas tropas colombianas deve ser condenada, como o foi pela OEA. Os colombianos inclusive pediram desculpas ao Equador. Chávez não pede desculpas a ninguém. Quanto mais se sentir ameaçado internamente, mais buscará o confronto, conturbando o entendimento sul-americano.
A Colômbia, fiel aliada dos EUA e com quem a Venezuela guarda rivalidade histórica, será seu alvo de preferência, com as Farc servindo de agente provocador.
O Brasil precisa agir para conter esse movimento e manter o continente no rumo compensador da democracia e do entendimento pacífico.
A política externa brasileira tem princípio histórico de defender ao extremo a soberania das nações. Dentro dessa visão, as Farc são questão interna da Colômbia. Mas a guerrilha circula com impunidade ao longo de milhares de quilômetros quadrados de matas e fronteiras desguarnecidas, inclusive no Brasil, onde faz negócios com nosso crime organizado.
A crise atual mostra que é preciso esforço dos países vizinhos para resolver de vez esse entulho guerrilheiro. A existência das Farc é injustificável numa América do Sul democrática.
Sérgio Malbergier é editor do caderno Dinheiro da
Folha de S. Paulo. Foi editor do caderno Mundo (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros. Dirigiu dois curta-metragens, "A Árvore" (1986) e "Carô no Inferno" (1987). Escreve para a
Folha Online às quintas.
E-mail: smalberg@uol.com.br
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