- 22/12/2007
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Em um tópico recente, "fui sacrificado numa piramide asteca" (https://teonanacatl.org/threads/fui-sacrificado-numa-piramide-asteca.5246/) discutimos, entre outras ideias, alguns aspectos da sociedade asteca.
Nesse final de semana, ao passar em frente a uma banca de jornais, vi uma chamada na capa da National Geographic Brasil de dezembro de 2010 (http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-129/) para uma matéria sobre os astecas. Comprei a revista. Tem reportagens muito boas, entre as quais essa, que está disponível online e envio abaixo. A revista em papel tem várias outras fotos e ilustrações, muito boas, mas nem todas online, ou disponíveis como link para colocar direto no tópico. Vale a pena comprar.
É um aspecto interessante que um povo conhecedor de vários "enteógenos" exibisse faces tão complexas e mesmo sombrias.
À procura dos astecas
Escavações em uma pirâmide sagrada revelam detalhes dos sangrentos rituais do império. Até agora, no entanto, nenhum sinal de seu mais temido soberano.
Por Robert Draper
Foto de Guido Galvani e María Sánchez Vega
Arqueólogos usaram raios luminosos de laser para compor um mosaico da rocha fraturada onde foi esculpida a imagem de uma deusa asteca. Perto dela estavam localizadas seis oferendas.
Em um canto do Zócalo, a famosa praça do centro histórico da Cidade do México, ao lado das ruínas da pirâmide sagrada dos astecas, o Templo Mayor, foram encontrados despojos de um animal, um cão ou um lobo. Morto há 500 anos, ele jazia em um fosso com 2 metros de profundidade. É como se o animal não tivesse nome ou dono. Porém, era evidente que significava algo para alguém. Ele portava um colar feito de contas de jade e cavilhas de turquesa nas orelhas e em suas canelas pendiam braceletes com sininhos de ouro puro.
Liderado por Leonardo López Luján, um time de arqueólogos desenterrou o chamado "Aristocanídeo" no verão de 2008, após dois anos de escavação, iniciada quando os trabalhos de fundação de um edifício revelaram um objeto surpreendente. Tratava-se de um monólito retangular de 12 toneladas de andesita cor-de-rosa (uma pedra vulcânica), rachado em quatro grandes pedaços, ostentando o que parecia ser a terrível imagem hipnótica da deusa da Terra, Tlaltecuhtli, símbolo asteca do ciclo da vida e da morte. Agachada para dar à luz, ela bebe o próprio sangue ao devorar sua criação. Aquele era o terceiro monólito asteca plano, descoberto por acaso nas vizinhanças do Templo Mayor - antes dele, vieram à tona a pedra do Sol, de basalto negro, de 24 toneladas (escavado em 1790), e o disco de Coyolxauhqui, a deusa da Lua, de 9 toneladas (1978).
Durante os anos de penosas escavações, López Luján e sua equipe descobriram, em um buraco profundo ao lado do monólito, algumas exóticas oferendas astecas. Depois de remover o estuque que recobria um pedaço de chão, toparam com 21 facas sacrificais de sílex branco coloridas de vermelho. Tratava-se de uma representação dos dentes e da gengiva da monstruosa figura asteca da terra, de boca escancarada para acolher os mortos. Mais fundo, acharam um pacote embrulhado em agave, planta de folhas duras e afiadas muito encontrada no México, onde é utilizada na produção de aguardentes, como a tequila. O pacote continha ainda um sortimento de perfuradores sacrificais feitos de osso de onça-pintada, usados pelos sacerdotes astecas para extrair sangue do próprio corpo em louvor aos deuses. Ao lado dos perfuradores havia barras de copal, um incenso litúrgico tido como purificador espiritual. Tudo disposto de maneira cuidadosa dentro do pacote, junto com penas e contas de jade.
Para surpresa de López Luján, alguns metros abaixo desse pacote jazia uma segunda oferenda em uma caixa de pedra. Ela continha os esqueletos de duas águias douradas - símbolos do Sol - com seus corpos voltados para o oeste. Ao redor das águias havia 27 facas sacrificais, 24 delas decoradas com peles e outros atavios, semelhantes a bonecas de pano, de modo a representar divindades associadas ao sol poente. Em janeiro de 2010, a equipe já desenterrara seis oferendas daquele fosso, a última delas 7 metros abaixo do nível da rua, contendo uma urna de cerâmica com 310 contas de pedra verde (como diorito, nefrita e jade), cavilhas de espetar na orelha e estatuetas. A localização de cada objeto escavado parecia orientada por uma lógica caprichosa, uma recriação da cosmologia do Império Asteca.
Foi no fundo da segunda caixa de oferendas que López Luján achou o animal com seus elaborados ornamentos. Ele estava recoberto de conchas marinhas e despojos de mariscos e caracóis - criaturas trazidas até ali do golfo do México e dos oceanos Atlântico e Pacífico. Na cosmologia asteca, como López Luján sabia, aquele quadro sugeria o primeiro nível do mundo subterrâneo, sendo que o canídeo servia de guia para a alma de seu dono atravessar um perigoso rio.
Mas que alma seria aquela? Desde que o espanhol Hernán Cortés conquistou o México, em 1521, não se descobriram restos mortais de nenhum imperador asteca, muito embora registros históricos indiquem que três governantes desse povo foram cremados e tiveram suas cinzas sepultadas ao pé do Templo Mayor. Quando o monólito de Tlaltecuhtli foi localizado, López Luján notou que a figura da deusa segurava em sua garra direita um coelho, encimado por dez pontos pequenos. No sistema de escrita asteca, 10-Coelho representa o ano de 1502. Essa é a data em que, de acordo com os códices (documentos históricos) daquela época, Ahuitzotl, o mais temido governante imperial, foi sepultado em meio a grandes solenidades.
López Luján está convencido de que o sepulcro de Ahuitzotl se encontra perto do local em que foi achado o monólito. Se o pesquisador estiver certo, é sinal de que o Aristocanídeo pode ser um guia subterrâneo a nos conduzir ao mundo místico de um povo conhecido como asteca, que, no entanto, designava a si mesmo como "mexica", e cujo legado histórico e cultural forma o núcleo da identidade mexicana. Se o arqueólogo encontrar o túmulo de Ahuitzotl, será a culminância de uma notável pesquisa sobre um dos mais mitificados e mal compreendidos impérios do hemisfério ocidental. Aliás, até agora existem poucas certezas quando se fala do misterioso Império Asteca, um reino ao mesmo tempo brutal e complexo, de breve duração e relegado aos porões da civilização moderna, embora ainda se manifeste com força na consciência nacional.
"O passado está presente por toda parte no México", diz López Luján. Isso é ainda mais válido para o Império Asteca, quase todo ele debaixo das pegadas de uma nação moderna. Quando se espalhou a notícia, em 1978, de que o Templo Mayor tinha sido localizado bem no coração da segunda mais populosa cidade do mundo, o espetáculo das celebrações resultou mais apropriado a uma grande estreia teatral na Broadway que a um triunfo arqueológico. Jimmy Carter, François Mitterrand, Gabriel García Márquez, Jacques Cousteau e Jane Fonda contavam-se entre as dúzias de celebridades levadas a visitar o sítio das escavações. Algumas delas tiveram como cicerone o então presidente do México, José López Portillo, cuja controversa decisão de pôr abaixo 13 edifícios tornara o trabalho possível.
O mesmo acontece agora, com a notícia de que um ou mais imperadores podem estar sepultados nas bordas do Zócalo. Hoje, López Luján gasta um tempo desproporcional ao ciceronear vips pelo apinhado e encoberto sítio das escavações, no flanco oeste da pirâmide. A imprensa mexicana costuma despencar em massa no local para conferir as mais recentes revelações. Pessoas comuns batem à porta da área fechada com pedido para dar uma olhada, o que muitas vezes é concedido. O bem-humorado acadêmico de cara redonda e 46 anos compreende esse apelo psíquico. "Neste momento, os mexicanos estão se dando conta de que vivem tempos trágicos", diz, em referência às sangrentas guerras motivadas pelo narcotráfico. "Mas o passado oferece a todos eles uma via de autoafirmação."
Ao contrário dos maias, que representam a outra influente cultura da Mesoamérica na era pré-colombiana, os astecas são identificados exclusivamente com o México, país que não perde nenhuma chance de mitificá-los. No centro da bandeira mexicana vê-se a águia asteca, também incorporada à logomarca das duas principais linhas aéreas do país. Existe o Banco Asteca e a TV Asteca, sendo que o uniforme da seleção mexicana de futebol - que disputa seus jogos domésticos no Estádio Asteca - também exibe a icônica águia. E é claro que a própria Cidade do México - o centro nevrálgico da nação - homenageia de forma implícita a cidade-Estado de Tenochtitlán e o caráter indomável dos astecas.
Todavia, encarar os astecas em termos icônicos não é uma boa maneira de compreendê-los. Para começar, esse povo sustentou seu império - a tríplice aliança de Tenochtitlán, Texcoco e Tlacopan - por menos de um século, antes de vê-lo eviscerado pelos conquistadores europeus. Apesar do medo e do ódio que seus governantes instilaram nas regiões conquistadas, o domínio asteca foi efêmero. Eles não erigiram templos nem disseminaram suas tradições culturais pelo país todo como fizeram romanos e incas. Pelo contrário, os povos conquistados tinham permissão para continuar a governar a si mesmos, à condição de contribuir com bens tributários.
Os astecas preferiram expressar sua engenhosidade no epicentro de Tenochtitlán. Mesmo assim, a grande cidade era, em muitos sentidos, um repositório de costumes, imagens e práticas espirituais, emprestado das civilizações precedentes. Segundo Alfredo López Austin, estudioso da Mesoamérica e pai de López Luján, "o equívoco conceitual mais comum é considerar os astecas uma cultura original. Não era nada disso."
Porém, a caricatura grosseira dos astecas como um povo sedento de sangue é também enviesada. Os conquistadores espanhóis superestimaram a volúpia dos mexicas, argumentando, por exemplo, que 80,4 mil pessoas foram mortas em uma única consagração de um templo - proeza que teria despovoado boa parte do México central. Em razão disso, hoje alguns grupos se sentem autorizados a descartar o sacrifício humano como invencionice europeia. No entanto, exames químicos realizados durante os últimos 15 anos nas superfícies porosas da Cidade do México revelaram "vestígios de sangue por todo lugar", afirma López Luján. "Você tem as pedras e as facas sacrificais e o corpo de 127 vítimas, de modo que não dá para negar o sacrifício humano."
Mas ele não deixa de acrescentar que essa prática era encontrada em toda parte no mundo antigo. Os maias, entre numerosas outras culturas, abraçaram o sacrifício bem antes dos astecas. "Não se trata da violência de um povo, mas de uma época. É a atmosfera belicosa imposta por religiões que demandavam a morte de seres humanos para abastecer os deuses", observa o arqueólogo. Esse imperativo espiritual era acatado pelo povo asteca com uma dose considerável de angústia, de acordo com as análises que David Carrasco, historiador de religiões da Universidade Harvard, faz dos códices. "Eles ficavam perturbados", diz ele. "Penso existirem muitos sinais de que isso os incomodava."
Os códices demonstram que se tratava de um povo dotado de sofisticado grau de consciência acerca das limitações de um império que dependia do sacrifício humano. Mesmo tendo atingido o esplendor de seu poder sob Ahuitzotl, as sementes de sua destruição já tinham sido lançadas. Uma gente que se acredita o centro de um universo altamente precário padecia também do que Carrasco chama de "insegurança cósmica".
O império começou do zero. Os primeiros astecas, ou mexicas, migraram do norte - de Aztlan, como se acreditava, embora esse berço ancestral jamais tenha sido localizado e talvez existisse apenas nas lendas. Eles falavam a língua nahuatl, dos poderosos toltecas cujo domínio sobre o México central havia terminado no século 12. A língua, porém, era a única conexão com tal grandiosidade. Escorraçados de um assentamento depois de outro no vale do México, os mexicas acabaram chegando a uma ilha no lago Texcoco que ninguém mais queria, a qual foi proclamada como Tenochtitlán, em 1325. Pouco mais que um pântano, Tenochtitlán carecia de água potável, pedras e madeira para construção. Mas seus novos habitantes, os toscos mexicas, embora "quase totalmente incultos", na apreciação do renomado estudioso Miguel León-Portilla, compensavam isso com "uma vontade indomável."
Esses povoadores puseram-se a cavar nos terrenos das ruínas das outrora grandes cidades de Teotihuacán e Tula. Tudo o que eles viam incorporavam. Lá por volta de 1430, Tenochtitlán tornara-se maior que ambas as cidades, um prodígio, com aterro sanitário e aquedutos. A cidade era dividida por canais e passadiços elevados em 4 quadrantes, todos orbitando em torno de um marco central, uma pirâmide com dupla escadaria e dois templos no topo. Nenhum de seus elementos arquitetônicos era particularmente original, e essa era a questão. Os mexicas procuraram estabelecer conexões ancestrais com antigos impérios, sobretudo pelas maquinações de Tlacaelel, o conselheiro real que podia se gabar do fato de que "nenhum dos reis anteriores agiu sem a minha opinião ou conselho".
Durante a primeira metade do século 15, Tlacaelel introduziu uma versão nova da história dos mexicas, segundo a qual seu povo descendia dos grandes toltecas e Huitzilopochtli - o deus tutelar do Sol e da Guerra - deveria ser elevado ao panteão das reverenciadas divindades toltecas. Como escreve Miguel León-Portilla: para Tlacaelel, o destino do império era a "conquista de todas as outras nações [...] e capturar vítimas para o sacrifício, pois que a fonte de toda a vida, o Sol, pereceria se não fosse alimentado continuamente com sangue humano."
E foi assim que os detestados novatos do norte ascenderam à nobreza. Subjugaram uma cidade depois da outra no vale do México. Sob Moctezuma I, no fim do anos 1440, os mexicas e seus aliados marcharam mais de 300 quilômetros, estendendo seu império ao sul até os atuais estados de Morelos e Guerrero. Na década de 1450, ele já haviam chegado à costa norte do golfo. E, em 1465, a Confederação do Chalco, último bastião de resistência no vale, foi derrotada. Caberia ao oitavo imperador, Ahuitzotl, esticar os limites do reino até seu ponto de ruptura.
Ahuitzotl não tem cara. O homem cujos despojos Leonardo López Luján espera encontrar perto do Templo Mayor não é representado em nenhuma obra de arte. "As únicas imagens que temos de um governante asteca são de Moctezuma II, e foram feitas depois de sua morte com base nas descrições dos espanhóis", relata López Luján, referindo-se ao último imperador do México às vésperas da conquista espanhola.
Eis o que sabemos sobre Ahuitzotl: esse militar de alto posto assumiu o trono em 1486, depois que seu irmão mais velho, Tizoc, perdeu o controle do império e faleceu, talvez envenenado pelas mãos do próprio Ahuitzotl. Seu nome já conotava violência - em nahuatl, ahuitzotl era um ser com aparência de lontra capaz de estrangular seres humanos com seu rabo musculoso. Suas 45 conquistas, feito marcante de seus 16 anos de reinado, foram todas relembradas em um manuscrito de um vice-rei espanhol, documento conhecido como o Codex Mendoza. Seus exércitos dominaram faixas ao longo da costa do Pacífico até a atual Guatemala, "expandindo o território imperial a limites sem precedentes", segundo o historiador David Carrasco. Algumas dessas batalhas eram meras exibições de supremacia ou punições aplicadas a líderes locais recalcitrantes. A maioria, no entanto, visava satisfazer dois anseios básicos: bens tributários para Tenochtitlán e vítimas sacrificais para os deuses.
A primeira regra do domínio asteca estava bem estabelecida por essa época: pegue o que houver de melhor da região conquistada. "Mercadores e negociantes desempenhavam o papel de espiões", explica Eduardo Matos Moctezuma, o arqueólogo que supervisionou as escavações no Templo Mayor iniciadas em 1978. Depois que descreviam os recursos disponíveis em uma cidade, as forças imperiais partiam para o ataque. "A expansão militar tinha um caráter econômico", afirma Moctezuma. "Os astecas não impunham sua religião. Eles só queriam os produtos."
Nem mesmo o ouro tinha tanta significância entre os povos mesoamericanos quanto o jade, símbolo de fertilidade. Na América Central, o mineral só podia ser encontrado nas minas da Guatemala. Não era de surpreender, já que Ahuitzotl havia estabelecido rotas comerciais com aquelas terras, amealhando não apenas as pedras verdes metamórficas como também, segundo López Luján, "penas do pássaro quetzal, ouro, peles de onça e o cacau, na época dinheiro que dava em árvores". Com essa abundância de riquezas, Tenochtitlán tornou-se "o maior centro artístico da época, como Paris e Nova York viriam a ser mais tarde", compara López Luján.
A carnavalesca joalheria tornou-se parte da espiritualidade ornamental da capital asteca. O Templo Mayor não era apenas uma pirâmide funerária, como as erguidas pelos antigos egípcios, mas, antes, o símbolo da montanha sagrada de Coatepec. Essa montanha servia de locação para uma espécie de telenovela mexicana cosmológica: o recém-nascido deus do Sol, Huitzilopochtli, trucidou sua irmã guerreira, Coyolxauhqui, a deusa da Lua, e a seguir jogou-a do alto da montanha. Assim, os mexicas acreditavam que levas constantes de tais guerreiros sacrificados saciariam os deuses, assegurando a continuação do ciclo da vida. Sem esses sacrifícios, os deuses pereceriam e o mundo chegaria ao fim. "A montanha sagrada é tão importante quanto a cruz na cristandade", salienta Carrasco.
Prestar homenagem à montanha sagrada significava conduzir soldados cativos e paramentados com exuberância pelos degraus da pirâmide até o topo, forçando-os a tomar parte nas danças cerimoniais para, em seguida, extrair o coração de cada um e fazer rolar os corpos escadaria abaixo. Arrebanhar os prisioneiros requisitados para o sacrifício era uma tarefa constante das campanhas militares. Batalhas rituais eram encenadas em dias específicos, em território neutro, com o propósito explícito de capturar os guerreiros, não a terra. Para os mexicas, combate e religião eram questões inseparáveis.
Tendo instilado o medo, Ahuitzotl iria, em seguida, aplicar mão mais leve. Em seu palácio, os nobres visitantes eram regalados com flores e presentes como o tabaco. O imperador gostava de entreter seus convivas - "em sua casa, a música nunca cessava, dia e noite", de acordo com um texto da época -, mas sua gana por faustosas cerimônias, ao lado de suas muitas mulheres e seus filhos, acabou pesando no orçamento de Tenochtitlán. A lista de bens tributáveis supridos pelas províncias conquistadas, enumerados por frei Diego Durán, cronista do século 16, faz lembrar um anúncio da joalheria Tiffany: "Ouro, joias, finas plumas, pedras preciosas [...], incontáveis artigos de vestuário e muitos adereços".
Os banquetes devem ter sido suntuosos, com "uma incrível quantidade de cacau, pimentas, sementes de abóbora, todo tipo de fruta, aves e caça". Mas nunca era o bastante. Mais conquistas seriam ordenadas, juntamente com medidas destinadas a demonstrar o poder do império - a exemplo da vingança de Ahuitzotl pelo assassinato de diversos mercadores em 1497. Ele enviou seus guerreiros às aldeias onde os crimes haviam sido cometidos com a ordem de eliminarem 2 mil pessoas para cada mercador morto.
Mais que qualquer governante antes dele, Ahuitzotl expandiu o império na direção sul, assegurou o comércio com o povo Tarascan, a oeste, e encurtou as rédeas sob todos os territórios subjugados. "Ele era mais prepotente, mais brutal", diz o arqueólogo Raúl Arana. "Quando as pessoas não queriam pagar os tributos, ele enviava os soldados. Com Ahuitzotl, os astecas chegaram à expressão máxima. Talvez tenha sido demais. Todos os impérios têm um limite."
O povo mexica perdeu o grande construtor de seu império no auge de seu domínio. Em 1502, Ahuitzotl faleceu, supostamente de uma pancada na cabeça ao fugir de seu palácio durante uma inundação. O cataclismo foi causado por um projeto de aqueduto iniciado às pressas por ordem do próprio imperador que visava se apropriar das nascentes que jorravam na vizinha Coyoacan, um altepetl (espécie de distrito independente) e importante centro comercial situado na margem sul do lago Texcoco.
O administrador de Coyoacan avisara Ahuitzotl sobre o fluxo irregular das nascentes. Como resposta, o imperador condenou o homem à morte. No funeral de Ahuitzotl foram selecionados 200 de seus escravos como acompanhantes ao outro mundo. Com ricas vestes e carregados de provisões para a viagem, os escravos foram conduzidos ao Templo Mayor, onde tiveram o coração arrancado e o corpo lançado à pira fúnebre. Seus restos, e os de seu amo, estariam enterrados diante do Templo Mayor.
Foi nesse mesmo lugar que o monólito de Tlaltecuhtli e o Aristocanídeo foram descobertos. A equipe de López Luján desencavou outras oferendas na vizinhança imediata. Uma delas foi encontrada debaixo de uma mansão em estilo toscano construída para um dos soldados de Cortés. Outra estava vários metros abaixo de uma grande laje de pedra. Em ambos os casos, para saber onde procurar, o arqueólogo traçava uma complicada série de eixos leste-oeste, ou "linhas imaginárias", em um mapa do sítio. "Há sempre essa simetria repetitiva", diz ele. "Era como uma obsessão para eles."
O trabalho da equipe é vagaroso e sem glamour. Parte disso deve-se aos desafios de qualquer escavação urbana: obter licenças e circunavegar por entre redes de esgoto, linhas de metrô, fiação telefônica subterrânea, fibras óticas e cabos elétricos - além de manter a segurança da área arqueológica situada em uma das zonas que mais atraem pedestres em todo o mundo.
Ao bordejar um fosso de onde, em maio de 2007, sua equipe desenterrou uma caixa de oferendas do tamanho de um baú, López Luján conta: "Levamos 15 meses para dar conta de tudo aquilo. Em um espaço tão reduzido, a caixa continha dez camadas e mais de 5 mil objetos. A concentração e a riqueza são incríveis. Parece algo aleatório, mas não é. Tudo tem significado cósmico". O desafio é descobrir a lógica e os padrões de distribuição espacial. "Quando Leopoldo Batres trabalhou aqui [na virada do século 19 para o 20], ele estava interessado nos objetos em si mesmos. Eram como troféus arqueológicos. Nesses 32 anos de atuação, no entanto, descobrimos que as peças não são tão importantes quanto a conexão entre elas no espaço", completa.
Cada descoberta é uma dádiva para o México, uma vez que tantos artefatos foram capturados pelos conquistadores e levados à Europa. Para além de seu valor estético, os achados sublinham a atenção dos astecas aos detalhes. Para eles, satisfazer os deuses dependia do crescimento constante do império e de suas demandas, algo insustentável nos últimos tempos. Como aponta Carrasco, "a ironia do império é que, ao expandir-se para a periferia e ampliar seus limites, acaba se tornando a periferia. Se vê tão longe de casa que não consegue mais prover seus guerreiros de comida e transporte nem proteger seus mercadores. O império torna-se caro demais".
Ao que parece, dez anos antes da chegada dos espanhóis, o sucessor de Ahuitzotl, Moctezuma II, era assolado por visões e premonições. Apesar de ter dado prosseguimento ao estilo expansionista de seu predecessor, e a despeito de seu grande poder, de todo ouro e diademas de turquesa, dos 19 filhos e de seu zoológico apinhado de animais exóticos e "anões, albinos e corcundas" - a despeito de tudo isso, o nono governante asteca vivia perseguido por uma insegurança cósmica. Em 1509, de acordo com um códice, "um mau presságio surgiu no firmamento. Era como uma flamejante espiga de milho [...], parecia sangrar fogo, pingava como uma ferida no céu".
Os temores de Moctezuma eram justificados. "Havia mais de 50 mil guerreiros indígenas revoltados, querendo manter seus bens e exigindo que cessassem os ataques dos astecas a suas comunidades", argumenta Carrasco. Não fosse por esse anseio insurrecional, os 500 espanhóis que aportaram em Veracruz na primavera de 1519, mesmo com seus arcabuzes, canhões e cavalos, não teriam sido páreo para os exércitos astecas.
Ao contrário, o contingente de Cortés chegou a Tenochtitlán em 8 de novembro, escoltado por milhares de tlaxcalans e outros guerreiros aliados. Mesmo impressionados com o espetáculo de tão deslumbrante cidade assentada em um lago - "alguns soldados chegaram a perguntar se as coisas que víamos não seriam um sonho", anotou uma testemunha ocular -, os espanhóis não se deixaram desencorajar pela exuberância dos anfitriões. De fato, era Moctezuma que parecia inseguro de si. De acordo com a lenda mesoamericana, Quetzalcoatl, a grande divindade emplumada - banida depois de cometer incesto com a irmã -, retornaria em algum momento pela água para restaurar seu domínio. Tal crença não tinha se esvaído do espírito de Moctezuma, que presenteou Cortés com o "tesouro de Quetzalcoatl", uma veste que ia da cabeça aos pés, encimada por uma "máscara de serpente cravejada de turquesas".
Mas será que o imperador estaria mesmo interpretando os espanhóis como a segunda vinda da divina serpente emplumada, como há muito tempo se acreditava? Ou estaria ele espertamente paramentando Cortés com as vestes divinas que se punham nas vítimas a ser logo sacrificadas? Tal gesto foi uma derradeira ambiguidade asteca. Daí por diante, os fatos são incontestáveis. As ruas de Tenochtitlán tingiram-se de vermelho-sangue e, em 1521, o império estava enterrado.
"Estamos persuadidos de que cedo ou tarde encontraremos a tumba de Ahuitzotl", diz López Luján. "Estamos cavando cada vez mais." Não importa quão fundo ele cave, jamais irá desenterrar o âmago da mística asteca. Isso continuará a ocupar a psique do México moderno, e que é ao mesmo tempo primitiva e majestática, capaz de instigar no mais comum dos mortais a força de transformar pântanos em impérios.
Fotos: http://viajeaqui.abril.com.br/natio...29/fotos/rituais-astecas-610892.shtml?foto=0p
Link da versão online:
http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-129/rituais-astecas-610607.shtml?page=0
Nesse final de semana, ao passar em frente a uma banca de jornais, vi uma chamada na capa da National Geographic Brasil de dezembro de 2010 (http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-129/) para uma matéria sobre os astecas. Comprei a revista. Tem reportagens muito boas, entre as quais essa, que está disponível online e envio abaixo. A revista em papel tem várias outras fotos e ilustrações, muito boas, mas nem todas online, ou disponíveis como link para colocar direto no tópico. Vale a pena comprar.
É um aspecto interessante que um povo conhecedor de vários "enteógenos" exibisse faces tão complexas e mesmo sombrias.
À procura dos astecas
Escavações em uma pirâmide sagrada revelam detalhes dos sangrentos rituais do império. Até agora, no entanto, nenhum sinal de seu mais temido soberano.
Por Robert Draper
Foto de Guido Galvani e María Sánchez Vega
Arqueólogos usaram raios luminosos de laser para compor um mosaico da rocha fraturada onde foi esculpida a imagem de uma deusa asteca. Perto dela estavam localizadas seis oferendas.
Em um canto do Zócalo, a famosa praça do centro histórico da Cidade do México, ao lado das ruínas da pirâmide sagrada dos astecas, o Templo Mayor, foram encontrados despojos de um animal, um cão ou um lobo. Morto há 500 anos, ele jazia em um fosso com 2 metros de profundidade. É como se o animal não tivesse nome ou dono. Porém, era evidente que significava algo para alguém. Ele portava um colar feito de contas de jade e cavilhas de turquesa nas orelhas e em suas canelas pendiam braceletes com sininhos de ouro puro.
Liderado por Leonardo López Luján, um time de arqueólogos desenterrou o chamado "Aristocanídeo" no verão de 2008, após dois anos de escavação, iniciada quando os trabalhos de fundação de um edifício revelaram um objeto surpreendente. Tratava-se de um monólito retangular de 12 toneladas de andesita cor-de-rosa (uma pedra vulcânica), rachado em quatro grandes pedaços, ostentando o que parecia ser a terrível imagem hipnótica da deusa da Terra, Tlaltecuhtli, símbolo asteca do ciclo da vida e da morte. Agachada para dar à luz, ela bebe o próprio sangue ao devorar sua criação. Aquele era o terceiro monólito asteca plano, descoberto por acaso nas vizinhanças do Templo Mayor - antes dele, vieram à tona a pedra do Sol, de basalto negro, de 24 toneladas (escavado em 1790), e o disco de Coyolxauhqui, a deusa da Lua, de 9 toneladas (1978).
Durante os anos de penosas escavações, López Luján e sua equipe descobriram, em um buraco profundo ao lado do monólito, algumas exóticas oferendas astecas. Depois de remover o estuque que recobria um pedaço de chão, toparam com 21 facas sacrificais de sílex branco coloridas de vermelho. Tratava-se de uma representação dos dentes e da gengiva da monstruosa figura asteca da terra, de boca escancarada para acolher os mortos. Mais fundo, acharam um pacote embrulhado em agave, planta de folhas duras e afiadas muito encontrada no México, onde é utilizada na produção de aguardentes, como a tequila. O pacote continha ainda um sortimento de perfuradores sacrificais feitos de osso de onça-pintada, usados pelos sacerdotes astecas para extrair sangue do próprio corpo em louvor aos deuses. Ao lado dos perfuradores havia barras de copal, um incenso litúrgico tido como purificador espiritual. Tudo disposto de maneira cuidadosa dentro do pacote, junto com penas e contas de jade.
Para surpresa de López Luján, alguns metros abaixo desse pacote jazia uma segunda oferenda em uma caixa de pedra. Ela continha os esqueletos de duas águias douradas - símbolos do Sol - com seus corpos voltados para o oeste. Ao redor das águias havia 27 facas sacrificais, 24 delas decoradas com peles e outros atavios, semelhantes a bonecas de pano, de modo a representar divindades associadas ao sol poente. Em janeiro de 2010, a equipe já desenterrara seis oferendas daquele fosso, a última delas 7 metros abaixo do nível da rua, contendo uma urna de cerâmica com 310 contas de pedra verde (como diorito, nefrita e jade), cavilhas de espetar na orelha e estatuetas. A localização de cada objeto escavado parecia orientada por uma lógica caprichosa, uma recriação da cosmologia do Império Asteca.
Foi no fundo da segunda caixa de oferendas que López Luján achou o animal com seus elaborados ornamentos. Ele estava recoberto de conchas marinhas e despojos de mariscos e caracóis - criaturas trazidas até ali do golfo do México e dos oceanos Atlântico e Pacífico. Na cosmologia asteca, como López Luján sabia, aquele quadro sugeria o primeiro nível do mundo subterrâneo, sendo que o canídeo servia de guia para a alma de seu dono atravessar um perigoso rio.
Mas que alma seria aquela? Desde que o espanhol Hernán Cortés conquistou o México, em 1521, não se descobriram restos mortais de nenhum imperador asteca, muito embora registros históricos indiquem que três governantes desse povo foram cremados e tiveram suas cinzas sepultadas ao pé do Templo Mayor. Quando o monólito de Tlaltecuhtli foi localizado, López Luján notou que a figura da deusa segurava em sua garra direita um coelho, encimado por dez pontos pequenos. No sistema de escrita asteca, 10-Coelho representa o ano de 1502. Essa é a data em que, de acordo com os códices (documentos históricos) daquela época, Ahuitzotl, o mais temido governante imperial, foi sepultado em meio a grandes solenidades.
López Luján está convencido de que o sepulcro de Ahuitzotl se encontra perto do local em que foi achado o monólito. Se o pesquisador estiver certo, é sinal de que o Aristocanídeo pode ser um guia subterrâneo a nos conduzir ao mundo místico de um povo conhecido como asteca, que, no entanto, designava a si mesmo como "mexica", e cujo legado histórico e cultural forma o núcleo da identidade mexicana. Se o arqueólogo encontrar o túmulo de Ahuitzotl, será a culminância de uma notável pesquisa sobre um dos mais mitificados e mal compreendidos impérios do hemisfério ocidental. Aliás, até agora existem poucas certezas quando se fala do misterioso Império Asteca, um reino ao mesmo tempo brutal e complexo, de breve duração e relegado aos porões da civilização moderna, embora ainda se manifeste com força na consciência nacional.
"O passado está presente por toda parte no México", diz López Luján. Isso é ainda mais válido para o Império Asteca, quase todo ele debaixo das pegadas de uma nação moderna. Quando se espalhou a notícia, em 1978, de que o Templo Mayor tinha sido localizado bem no coração da segunda mais populosa cidade do mundo, o espetáculo das celebrações resultou mais apropriado a uma grande estreia teatral na Broadway que a um triunfo arqueológico. Jimmy Carter, François Mitterrand, Gabriel García Márquez, Jacques Cousteau e Jane Fonda contavam-se entre as dúzias de celebridades levadas a visitar o sítio das escavações. Algumas delas tiveram como cicerone o então presidente do México, José López Portillo, cuja controversa decisão de pôr abaixo 13 edifícios tornara o trabalho possível.
O mesmo acontece agora, com a notícia de que um ou mais imperadores podem estar sepultados nas bordas do Zócalo. Hoje, López Luján gasta um tempo desproporcional ao ciceronear vips pelo apinhado e encoberto sítio das escavações, no flanco oeste da pirâmide. A imprensa mexicana costuma despencar em massa no local para conferir as mais recentes revelações. Pessoas comuns batem à porta da área fechada com pedido para dar uma olhada, o que muitas vezes é concedido. O bem-humorado acadêmico de cara redonda e 46 anos compreende esse apelo psíquico. "Neste momento, os mexicanos estão se dando conta de que vivem tempos trágicos", diz, em referência às sangrentas guerras motivadas pelo narcotráfico. "Mas o passado oferece a todos eles uma via de autoafirmação."
Ao contrário dos maias, que representam a outra influente cultura da Mesoamérica na era pré-colombiana, os astecas são identificados exclusivamente com o México, país que não perde nenhuma chance de mitificá-los. No centro da bandeira mexicana vê-se a águia asteca, também incorporada à logomarca das duas principais linhas aéreas do país. Existe o Banco Asteca e a TV Asteca, sendo que o uniforme da seleção mexicana de futebol - que disputa seus jogos domésticos no Estádio Asteca - também exibe a icônica águia. E é claro que a própria Cidade do México - o centro nevrálgico da nação - homenageia de forma implícita a cidade-Estado de Tenochtitlán e o caráter indomável dos astecas.
Todavia, encarar os astecas em termos icônicos não é uma boa maneira de compreendê-los. Para começar, esse povo sustentou seu império - a tríplice aliança de Tenochtitlán, Texcoco e Tlacopan - por menos de um século, antes de vê-lo eviscerado pelos conquistadores europeus. Apesar do medo e do ódio que seus governantes instilaram nas regiões conquistadas, o domínio asteca foi efêmero. Eles não erigiram templos nem disseminaram suas tradições culturais pelo país todo como fizeram romanos e incas. Pelo contrário, os povos conquistados tinham permissão para continuar a governar a si mesmos, à condição de contribuir com bens tributários.
Os astecas preferiram expressar sua engenhosidade no epicentro de Tenochtitlán. Mesmo assim, a grande cidade era, em muitos sentidos, um repositório de costumes, imagens e práticas espirituais, emprestado das civilizações precedentes. Segundo Alfredo López Austin, estudioso da Mesoamérica e pai de López Luján, "o equívoco conceitual mais comum é considerar os astecas uma cultura original. Não era nada disso."
Porém, a caricatura grosseira dos astecas como um povo sedento de sangue é também enviesada. Os conquistadores espanhóis superestimaram a volúpia dos mexicas, argumentando, por exemplo, que 80,4 mil pessoas foram mortas em uma única consagração de um templo - proeza que teria despovoado boa parte do México central. Em razão disso, hoje alguns grupos se sentem autorizados a descartar o sacrifício humano como invencionice europeia. No entanto, exames químicos realizados durante os últimos 15 anos nas superfícies porosas da Cidade do México revelaram "vestígios de sangue por todo lugar", afirma López Luján. "Você tem as pedras e as facas sacrificais e o corpo de 127 vítimas, de modo que não dá para negar o sacrifício humano."
Mas ele não deixa de acrescentar que essa prática era encontrada em toda parte no mundo antigo. Os maias, entre numerosas outras culturas, abraçaram o sacrifício bem antes dos astecas. "Não se trata da violência de um povo, mas de uma época. É a atmosfera belicosa imposta por religiões que demandavam a morte de seres humanos para abastecer os deuses", observa o arqueólogo. Esse imperativo espiritual era acatado pelo povo asteca com uma dose considerável de angústia, de acordo com as análises que David Carrasco, historiador de religiões da Universidade Harvard, faz dos códices. "Eles ficavam perturbados", diz ele. "Penso existirem muitos sinais de que isso os incomodava."
Os códices demonstram que se tratava de um povo dotado de sofisticado grau de consciência acerca das limitações de um império que dependia do sacrifício humano. Mesmo tendo atingido o esplendor de seu poder sob Ahuitzotl, as sementes de sua destruição já tinham sido lançadas. Uma gente que se acredita o centro de um universo altamente precário padecia também do que Carrasco chama de "insegurança cósmica".
O império começou do zero. Os primeiros astecas, ou mexicas, migraram do norte - de Aztlan, como se acreditava, embora esse berço ancestral jamais tenha sido localizado e talvez existisse apenas nas lendas. Eles falavam a língua nahuatl, dos poderosos toltecas cujo domínio sobre o México central havia terminado no século 12. A língua, porém, era a única conexão com tal grandiosidade. Escorraçados de um assentamento depois de outro no vale do México, os mexicas acabaram chegando a uma ilha no lago Texcoco que ninguém mais queria, a qual foi proclamada como Tenochtitlán, em 1325. Pouco mais que um pântano, Tenochtitlán carecia de água potável, pedras e madeira para construção. Mas seus novos habitantes, os toscos mexicas, embora "quase totalmente incultos", na apreciação do renomado estudioso Miguel León-Portilla, compensavam isso com "uma vontade indomável."
Esses povoadores puseram-se a cavar nos terrenos das ruínas das outrora grandes cidades de Teotihuacán e Tula. Tudo o que eles viam incorporavam. Lá por volta de 1430, Tenochtitlán tornara-se maior que ambas as cidades, um prodígio, com aterro sanitário e aquedutos. A cidade era dividida por canais e passadiços elevados em 4 quadrantes, todos orbitando em torno de um marco central, uma pirâmide com dupla escadaria e dois templos no topo. Nenhum de seus elementos arquitetônicos era particularmente original, e essa era a questão. Os mexicas procuraram estabelecer conexões ancestrais com antigos impérios, sobretudo pelas maquinações de Tlacaelel, o conselheiro real que podia se gabar do fato de que "nenhum dos reis anteriores agiu sem a minha opinião ou conselho".
Durante a primeira metade do século 15, Tlacaelel introduziu uma versão nova da história dos mexicas, segundo a qual seu povo descendia dos grandes toltecas e Huitzilopochtli - o deus tutelar do Sol e da Guerra - deveria ser elevado ao panteão das reverenciadas divindades toltecas. Como escreve Miguel León-Portilla: para Tlacaelel, o destino do império era a "conquista de todas as outras nações [...] e capturar vítimas para o sacrifício, pois que a fonte de toda a vida, o Sol, pereceria se não fosse alimentado continuamente com sangue humano."
E foi assim que os detestados novatos do norte ascenderam à nobreza. Subjugaram uma cidade depois da outra no vale do México. Sob Moctezuma I, no fim do anos 1440, os mexicas e seus aliados marcharam mais de 300 quilômetros, estendendo seu império ao sul até os atuais estados de Morelos e Guerrero. Na década de 1450, ele já haviam chegado à costa norte do golfo. E, em 1465, a Confederação do Chalco, último bastião de resistência no vale, foi derrotada. Caberia ao oitavo imperador, Ahuitzotl, esticar os limites do reino até seu ponto de ruptura.
Ahuitzotl não tem cara. O homem cujos despojos Leonardo López Luján espera encontrar perto do Templo Mayor não é representado em nenhuma obra de arte. "As únicas imagens que temos de um governante asteca são de Moctezuma II, e foram feitas depois de sua morte com base nas descrições dos espanhóis", relata López Luján, referindo-se ao último imperador do México às vésperas da conquista espanhola.
Eis o que sabemos sobre Ahuitzotl: esse militar de alto posto assumiu o trono em 1486, depois que seu irmão mais velho, Tizoc, perdeu o controle do império e faleceu, talvez envenenado pelas mãos do próprio Ahuitzotl. Seu nome já conotava violência - em nahuatl, ahuitzotl era um ser com aparência de lontra capaz de estrangular seres humanos com seu rabo musculoso. Suas 45 conquistas, feito marcante de seus 16 anos de reinado, foram todas relembradas em um manuscrito de um vice-rei espanhol, documento conhecido como o Codex Mendoza. Seus exércitos dominaram faixas ao longo da costa do Pacífico até a atual Guatemala, "expandindo o território imperial a limites sem precedentes", segundo o historiador David Carrasco. Algumas dessas batalhas eram meras exibições de supremacia ou punições aplicadas a líderes locais recalcitrantes. A maioria, no entanto, visava satisfazer dois anseios básicos: bens tributários para Tenochtitlán e vítimas sacrificais para os deuses.
A primeira regra do domínio asteca estava bem estabelecida por essa época: pegue o que houver de melhor da região conquistada. "Mercadores e negociantes desempenhavam o papel de espiões", explica Eduardo Matos Moctezuma, o arqueólogo que supervisionou as escavações no Templo Mayor iniciadas em 1978. Depois que descreviam os recursos disponíveis em uma cidade, as forças imperiais partiam para o ataque. "A expansão militar tinha um caráter econômico", afirma Moctezuma. "Os astecas não impunham sua religião. Eles só queriam os produtos."
Nem mesmo o ouro tinha tanta significância entre os povos mesoamericanos quanto o jade, símbolo de fertilidade. Na América Central, o mineral só podia ser encontrado nas minas da Guatemala. Não era de surpreender, já que Ahuitzotl havia estabelecido rotas comerciais com aquelas terras, amealhando não apenas as pedras verdes metamórficas como também, segundo López Luján, "penas do pássaro quetzal, ouro, peles de onça e o cacau, na época dinheiro que dava em árvores". Com essa abundância de riquezas, Tenochtitlán tornou-se "o maior centro artístico da época, como Paris e Nova York viriam a ser mais tarde", compara López Luján.
A carnavalesca joalheria tornou-se parte da espiritualidade ornamental da capital asteca. O Templo Mayor não era apenas uma pirâmide funerária, como as erguidas pelos antigos egípcios, mas, antes, o símbolo da montanha sagrada de Coatepec. Essa montanha servia de locação para uma espécie de telenovela mexicana cosmológica: o recém-nascido deus do Sol, Huitzilopochtli, trucidou sua irmã guerreira, Coyolxauhqui, a deusa da Lua, e a seguir jogou-a do alto da montanha. Assim, os mexicas acreditavam que levas constantes de tais guerreiros sacrificados saciariam os deuses, assegurando a continuação do ciclo da vida. Sem esses sacrifícios, os deuses pereceriam e o mundo chegaria ao fim. "A montanha sagrada é tão importante quanto a cruz na cristandade", salienta Carrasco.
Prestar homenagem à montanha sagrada significava conduzir soldados cativos e paramentados com exuberância pelos degraus da pirâmide até o topo, forçando-os a tomar parte nas danças cerimoniais para, em seguida, extrair o coração de cada um e fazer rolar os corpos escadaria abaixo. Arrebanhar os prisioneiros requisitados para o sacrifício era uma tarefa constante das campanhas militares. Batalhas rituais eram encenadas em dias específicos, em território neutro, com o propósito explícito de capturar os guerreiros, não a terra. Para os mexicas, combate e religião eram questões inseparáveis.
Tendo instilado o medo, Ahuitzotl iria, em seguida, aplicar mão mais leve. Em seu palácio, os nobres visitantes eram regalados com flores e presentes como o tabaco. O imperador gostava de entreter seus convivas - "em sua casa, a música nunca cessava, dia e noite", de acordo com um texto da época -, mas sua gana por faustosas cerimônias, ao lado de suas muitas mulheres e seus filhos, acabou pesando no orçamento de Tenochtitlán. A lista de bens tributáveis supridos pelas províncias conquistadas, enumerados por frei Diego Durán, cronista do século 16, faz lembrar um anúncio da joalheria Tiffany: "Ouro, joias, finas plumas, pedras preciosas [...], incontáveis artigos de vestuário e muitos adereços".
Os banquetes devem ter sido suntuosos, com "uma incrível quantidade de cacau, pimentas, sementes de abóbora, todo tipo de fruta, aves e caça". Mas nunca era o bastante. Mais conquistas seriam ordenadas, juntamente com medidas destinadas a demonstrar o poder do império - a exemplo da vingança de Ahuitzotl pelo assassinato de diversos mercadores em 1497. Ele enviou seus guerreiros às aldeias onde os crimes haviam sido cometidos com a ordem de eliminarem 2 mil pessoas para cada mercador morto.
Mais que qualquer governante antes dele, Ahuitzotl expandiu o império na direção sul, assegurou o comércio com o povo Tarascan, a oeste, e encurtou as rédeas sob todos os territórios subjugados. "Ele era mais prepotente, mais brutal", diz o arqueólogo Raúl Arana. "Quando as pessoas não queriam pagar os tributos, ele enviava os soldados. Com Ahuitzotl, os astecas chegaram à expressão máxima. Talvez tenha sido demais. Todos os impérios têm um limite."
O povo mexica perdeu o grande construtor de seu império no auge de seu domínio. Em 1502, Ahuitzotl faleceu, supostamente de uma pancada na cabeça ao fugir de seu palácio durante uma inundação. O cataclismo foi causado por um projeto de aqueduto iniciado às pressas por ordem do próprio imperador que visava se apropriar das nascentes que jorravam na vizinha Coyoacan, um altepetl (espécie de distrito independente) e importante centro comercial situado na margem sul do lago Texcoco.
O administrador de Coyoacan avisara Ahuitzotl sobre o fluxo irregular das nascentes. Como resposta, o imperador condenou o homem à morte. No funeral de Ahuitzotl foram selecionados 200 de seus escravos como acompanhantes ao outro mundo. Com ricas vestes e carregados de provisões para a viagem, os escravos foram conduzidos ao Templo Mayor, onde tiveram o coração arrancado e o corpo lançado à pira fúnebre. Seus restos, e os de seu amo, estariam enterrados diante do Templo Mayor.
Foi nesse mesmo lugar que o monólito de Tlaltecuhtli e o Aristocanídeo foram descobertos. A equipe de López Luján desencavou outras oferendas na vizinhança imediata. Uma delas foi encontrada debaixo de uma mansão em estilo toscano construída para um dos soldados de Cortés. Outra estava vários metros abaixo de uma grande laje de pedra. Em ambos os casos, para saber onde procurar, o arqueólogo traçava uma complicada série de eixos leste-oeste, ou "linhas imaginárias", em um mapa do sítio. "Há sempre essa simetria repetitiva", diz ele. "Era como uma obsessão para eles."
O trabalho da equipe é vagaroso e sem glamour. Parte disso deve-se aos desafios de qualquer escavação urbana: obter licenças e circunavegar por entre redes de esgoto, linhas de metrô, fiação telefônica subterrânea, fibras óticas e cabos elétricos - além de manter a segurança da área arqueológica situada em uma das zonas que mais atraem pedestres em todo o mundo.
Ao bordejar um fosso de onde, em maio de 2007, sua equipe desenterrou uma caixa de oferendas do tamanho de um baú, López Luján conta: "Levamos 15 meses para dar conta de tudo aquilo. Em um espaço tão reduzido, a caixa continha dez camadas e mais de 5 mil objetos. A concentração e a riqueza são incríveis. Parece algo aleatório, mas não é. Tudo tem significado cósmico". O desafio é descobrir a lógica e os padrões de distribuição espacial. "Quando Leopoldo Batres trabalhou aqui [na virada do século 19 para o 20], ele estava interessado nos objetos em si mesmos. Eram como troféus arqueológicos. Nesses 32 anos de atuação, no entanto, descobrimos que as peças não são tão importantes quanto a conexão entre elas no espaço", completa.
Cada descoberta é uma dádiva para o México, uma vez que tantos artefatos foram capturados pelos conquistadores e levados à Europa. Para além de seu valor estético, os achados sublinham a atenção dos astecas aos detalhes. Para eles, satisfazer os deuses dependia do crescimento constante do império e de suas demandas, algo insustentável nos últimos tempos. Como aponta Carrasco, "a ironia do império é que, ao expandir-se para a periferia e ampliar seus limites, acaba se tornando a periferia. Se vê tão longe de casa que não consegue mais prover seus guerreiros de comida e transporte nem proteger seus mercadores. O império torna-se caro demais".
Ao que parece, dez anos antes da chegada dos espanhóis, o sucessor de Ahuitzotl, Moctezuma II, era assolado por visões e premonições. Apesar de ter dado prosseguimento ao estilo expansionista de seu predecessor, e a despeito de seu grande poder, de todo ouro e diademas de turquesa, dos 19 filhos e de seu zoológico apinhado de animais exóticos e "anões, albinos e corcundas" - a despeito de tudo isso, o nono governante asteca vivia perseguido por uma insegurança cósmica. Em 1509, de acordo com um códice, "um mau presságio surgiu no firmamento. Era como uma flamejante espiga de milho [...], parecia sangrar fogo, pingava como uma ferida no céu".
Os temores de Moctezuma eram justificados. "Havia mais de 50 mil guerreiros indígenas revoltados, querendo manter seus bens e exigindo que cessassem os ataques dos astecas a suas comunidades", argumenta Carrasco. Não fosse por esse anseio insurrecional, os 500 espanhóis que aportaram em Veracruz na primavera de 1519, mesmo com seus arcabuzes, canhões e cavalos, não teriam sido páreo para os exércitos astecas.
Ao contrário, o contingente de Cortés chegou a Tenochtitlán em 8 de novembro, escoltado por milhares de tlaxcalans e outros guerreiros aliados. Mesmo impressionados com o espetáculo de tão deslumbrante cidade assentada em um lago - "alguns soldados chegaram a perguntar se as coisas que víamos não seriam um sonho", anotou uma testemunha ocular -, os espanhóis não se deixaram desencorajar pela exuberância dos anfitriões. De fato, era Moctezuma que parecia inseguro de si. De acordo com a lenda mesoamericana, Quetzalcoatl, a grande divindade emplumada - banida depois de cometer incesto com a irmã -, retornaria em algum momento pela água para restaurar seu domínio. Tal crença não tinha se esvaído do espírito de Moctezuma, que presenteou Cortés com o "tesouro de Quetzalcoatl", uma veste que ia da cabeça aos pés, encimada por uma "máscara de serpente cravejada de turquesas".
Mas será que o imperador estaria mesmo interpretando os espanhóis como a segunda vinda da divina serpente emplumada, como há muito tempo se acreditava? Ou estaria ele espertamente paramentando Cortés com as vestes divinas que se punham nas vítimas a ser logo sacrificadas? Tal gesto foi uma derradeira ambiguidade asteca. Daí por diante, os fatos são incontestáveis. As ruas de Tenochtitlán tingiram-se de vermelho-sangue e, em 1521, o império estava enterrado.
"Estamos persuadidos de que cedo ou tarde encontraremos a tumba de Ahuitzotl", diz López Luján. "Estamos cavando cada vez mais." Não importa quão fundo ele cave, jamais irá desenterrar o âmago da mística asteca. Isso continuará a ocupar a psique do México moderno, e que é ao mesmo tempo primitiva e majestática, capaz de instigar no mais comum dos mortais a força de transformar pântanos em impérios.
Fotos: http://viajeaqui.abril.com.br/natio...29/fotos/rituais-astecas-610892.shtml?foto=0p
Link da versão online:
http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-129/rituais-astecas-610607.shtml?page=0
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