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Bateu fungo
Publicado em 15/05/2013 por BRUNO TORTURRADeixe um comentário
Paul Stamets, Chicago, Illinois (foto Bruno Torturra)
Paul Stamets não é desses hippies utópicos que acham que podem salvar o planeta. Não senhor. Ele é do tipo hippie realista, que está tentando salvar apenas a humanidade, o solo e centenas de espécies de uma extinção iminente. “Me parece algo bom a ser feito”, resume o mais importante micologista em atividade do mundo. “Oi?”, indaga o leitor da revista. “Micologista?” Precisamente, micologista, um especialista em fungos, micélios, cogumelos – o reino fungi. “Oi?”, insiste o leitor. “Micologista na Trip?” Precisamente, micologista. Algo que soa tão mofado que demorou mais tempo para o presente repórter convencer os editores de que Paul merecia nossa atenção do que para convencer Paul a nos dar a sua.
Pode não soar um feito conseguir um dia na agenda de um… micologista, afinal. Mas desde que lançou seu mais recente e mais importante livro, Mycelium Running, Paul Stamets se tornou um dos mais requisitados cientistas, palestrantes e consultores ambientais do mundo. “Não existe palavra no meu idioma para descrever como estou ocupado”, desabafa às sete da manhã, na suíte de um hotel em Chicago. Estava na cidade para uma de suas lotadas palestras. Com a casa sempre cheia ele, em duas horas, joga exemplos e dados bombásticos para provar sua teoria: a de que uma imediata e profunda parceria entre humanos e fungos é a única – e urgente – forma de frear uma aniquilação biológica, a quebra irreversível das tênues redes que conectam todas as formas de vida na Terra.
O livro mais recente, e mais importante, de Stamets
A mensagem de seu livro e de sua apaixonada fala é tão científica quanto espiritual, tão cheia de promessas quanto de resultados reais. E a eloquência com que trata o mundo do micélio – um dos estágios do fungo, em filamentos que se espalham pelo solo, pilar invisível da biosfera – é tão surpreendente que um livro sobre cogumelos transcendeu classificações. Virou leitura recomendada por economistas, ambientalistas, ativistas políticos e um item da prateleira de gente atenta ao estado do planeta.
Enumerar aqui o que Stamets descobriu seria um esforço inútil em poucos parágrafos. Ele detém 25 patentes de produtos e inovações tecnológicas utilizando fungos. De remédios e suplementos para atividade cerebral até kits de micorremediação de solo capazes de tornar férteis solos envenados por óleo, metais pesados e lixo tóxico em poucos meses. Sua coleção de 250 culturas de cogumelos medicinais colhidos nas florestas de Washington está se revelando um poço de esperança para tratamentos de tuberculose, câncer, HIV, sarampo… a lista é tão longa que Paul já trabalha com o departamento de defesa americano na busca de curas eficazes para epidemias.
Também é dele uma recente patente revolucionária que fez, a partir de micélios, um modo tão eficaz e limpo de acabar com cupins e formigas caseiras que é capaz de arruinar o mercado de pesticidas químicos domésticos. Tudo gestado na sua casa e sede de seu negócio, a Fungi Perfecti, uma fazenda perto da fronteira oeste dos EUA com o Canadá onde emprega 23 pessoas e produz, além de tudo citado acima, cogumelos gourmets e kits de cultivos para a venda.
Sua carreira de embaixador do reino fungi começou aos 17 anos de idade, anos 70, quando o jovem de Ohio comeu desavisadamente uma dose altíssima dos chamados cogumelos mágicos. Atracado no alto de uma árvore, no meio de uma tempestade de relâmpagos, foi tomado por um sentimento de glória e terror. Paul descobriu que sua vida deveria ter um propósito maior. E decidiu que iria parar de ser gago ali, entre ondas azuis de psilocibina, componente psicoativo encontrado nos cogumelos do gênero Psilocybe. Em sua primeira experiência psicodélica curou-se de um impedimento de fala que fazia professores o tomarem como deficiente mental. Depois disso, estava alistado.
Dedicou a vida à identificação e ao estudo de novas espécies. Publicou os guias fundamentais de cultivo de cogumelos, de identificação de variedades alucinógenas e, agora, sua mais relevante obra, Mycelium Running. Sem hesitar assume que foram os cogumelos psicodélicos seus maiores professores, sem os quais jamais conseguiria pensar nas diagonais entre disciplinas e religiões, entre ciência e metafísica. Em troca, ele passa o recado: os cogumelos pedem uma atenção negada por séculos. Um reino inteiro da natureza com menos de 10% das espécies catalogadas.
Há um ano e meio sem consumir cogumelos mágicos, ele está propositalmente distante do tema em público. Prefere falar de assuntos mais urgentes. Ciente como poucos do tamanho da encrenca planetária, Paul não traz más notícias. Nem precisa. Depois de décadas de uma voluntária miopia, governos e populações parecem ter acordado para a tragédia de uma catástrofe econômica e ambiental inevitável. “Nesse colapso vai chegar o tempo daqueles que, entre todos, são mais sábios em sistemas de rede e interdependência. Essa mensagem será ouvida e trará a mudança”, prevê. “Não resta dúvida de que futuras gerações vão olhar para nosso tempo como um ponto de virada. Quando a natureza teve que se rebelar para ensinar as lições que há tanto tempo tenta nos passar. Que, sim, estamos todos interconectados e que se quebrarmos peças demais o sistema inteiro despenca.”
Para Stamets, o outrora mal-entendido conceito de interdependência ganha agora seu mais nefasto contorno: o de um castelo de cartas. E nós, tão sabidos Homo sapiens, espremidos aos bilhões bem no topo, não sabemos como segurar tudo de pé. Bem… Sorte nossa que Stamets tem um bom palpite. E está exatamente debaixo dos nossos pés.
Você é conhecido como o maior especialista do mundo em fungos e um dos mais influentes ambientalistas dos EUA. Com esse currículo, qual seu diagnóstico do planeta hoje?
Existem ciclos circadianos na natureza e isso é uma verdade incontestável. Ritmos regulares de criação, de destruição, de nascimento e morte. Atualmente nossa economia está em colapso e eu vejo isso como uma metáfora perfeita do que acontece na natureza. À medida que um sistema se decompõe, novos modelos se tornam necessários. Se nossa economia estivesse sólida e robusta como esteve por décadas, novas ideias não estariam subindo à tona. Hoje nós estamos vivendo o início de um colapso ecológico muito grave, a sexta extinção em massa que este planeta vai passar. E pela primeira vez ela será causada por um organismo: nós. E a lei da natureza é a de que quando um organismo ultrapassa a capacidade de um ecossistema há um colapso cataclísmico e rápido naquela população, invariavelmente. Sempre devido à falta de comida e sistemas imunológicos comprometidos.
Já há sinais visíveis disso?
O vírus da gripe suína pode não ser tão fatal quanto se pensava, mas sem dúvida é um ensaio do que está por vir. E não podemos contar com um remédio para nos salvar. Precisamos tratar a fonte do problema: pecuária industrial, rebanhos gigantescos vivendo aprisionados em currais minúsculos, comendo hormônios em condições anormais, cada vez mais distantes do que a evolução determinou em milhões de anos como uma vida saudável… doenças vão proliferar com a mesma desproporcionalidade. E não se trata de uma vingança divina, é apenas como a natureza e a evolução funcionam. Temos um tempo muito curto para desmontar esse sistema e criar uma economia de acordo com essas leis.
E estamos fazendo isso de maneira rápida o suficiente?
Para sustentar 6 bilhões de pessoas? Não. Para mim o colapso ecológico e econômico, nesse ponto, é inevitável. Isso é ruim? Para famílias, países, crianças, indivíduos é muito ruim. Isso é ruim para o planeta? Talvez não. Porque de um ponto de vista evolucionário eu vejo como um grande ciclo de transformação. E nesse colapso vai chegar o tempo daqueles que, entre todos, são mais sábios em sistemas de rede e interdependência. Essa mensagem será ouvida e trará a mudança. Provavelmente não uma mudança voluntária para a maioria.
A impressão é que uma economia dita globalizada acabou justamente ignorando o caráter global dos sistemas naturais.
Exatamente. Criamos uma economia que nada tem a ver com a lógica na natureza. Veja nosso sistema de transporte de alimentação. Os EUA importam água de Fiji! Gastamos petróleo para beber água da Ásia. Estamos apenas fazendo dinheiro. Não resta dúvida de que futuras gerações vão olhar para nosso tempo como um ponto de virada. Quando a natureza teve que se rebelar para ensinar as lições que há tanto tempo tenta nos passar. Que, sim, estamos todos interconectados e que se quebrarmos peças demais o sistema inteiro despenca. Nós andamos pela Terra orgulhosos de que dominamos o átomo, mas sem a menor noção dos mecanismos mais básicos que sustentam a vida. Somos neandertais com armas nucleares.
De onde vem todo esse disparate científico?
A humanidade vive uma fase ainda de adolescência. E, como um adolescente, tudo gira em torno de si mesmo, com muito pouca noção de que somos apenas parte de algo muito maior e mais complexo. E a ciência também é vítima disso. Conseguimos encontrar planetas bilhões de anos-luz distantes, entender de que é feita a luz. E ainda somos cegos para ver que no solo sobre o qual pisamos há uma trama de micélios que nos deu a vida no planeta.
O que falta a humanidade entender para evitar uma total hecatombe?
Que 99% das espécies que passaram neste planeta estão extintas. A gente precisa entender que extinção é a regra, e que nós somos uma das bolas da vez. Mas temos, diferentemente de outros animais, conhecimento e ciência para lidar com isso de forma inteligente. Claramente nós estamos impedindo o desenvolvimento ecológico da Terra. O que eu sei, e luto por isso, é que há uma série de soluções usando fungos e micélios para reparar muito do dano que causamos à natureza.
Por que especialmente os fungos?
Fungos são oportunistas, resistentes e rápidos na sua ação. Em todas as extinções por que a Terra passou, em que mais de 95% das espécies desapareceram, os fungos sempre herdaram a Terra. E o curso da evolução sempre selecionou animais e plantas que se aliaram com os fungos para sobreviver em simbiose. Estamos em um período parecido e precisamos usar nosso intelecto para aprender a lição da evolução: que se nós nos aliarmos com os fungos podemos sobreviver, se não… Dos fungos pode sair a cura para os solos, para as doenças, para os vírus. Pode aumentar muito a produção de alimentos, nos livrar de pragas. E quase ninguém percebe isso.
Paul e Dusty, família fungo (foto Bruno T)
Você sempre cita os micélios como a rede fundamental que sustenta a vida na Terra. De que forma?
Fungos em seu estágio de micélio são a rede de alimentação e de transmissão de informação bioquímica na natureza inteira. É uma verdadeira rede neurológica complexa e inteligente que conecta tudo. Ainda estamos descobrindo o quão longe vai a importância deles, mas quando você faz análises microscópicas repara que o micélio tem a mesma estrutura e arquitetura da matéria escura que segura o universo estável, a mesma estrutura complexa dos neurônios, a mesma estrutura conceitual da internet – que se tornou uma espécie de sistema nervoso da humanidade. O micélio é uma amostra direta de profundos princípios que se aplicam em todo o cosmos.
O que você quer dizer quando chama essa rede de neurológica? E como assim essa estrutura é inteligente?
Micélio é uma rede de células que está em constante comunicação com o ambiente onde está inserida. Em uma polegada cúbica de solo, cerca de 10 g, existem 8 milhas de micélio e pelo menos 1 bilhão de organismos entre esse micélio. Como então ele, tão nutritivo, não é consumido pelo bilhão de organismos que estão ali? O motivo é que o micélio tem uma influência decisiva na população microscópica, permitindo o fluxo de informação química e de nutrientes que sustenta esses micróbios e também as plantas que vão permitir o surgimento de ecossistemas maiores onde nós operamos. Nossa espécie e tudo o que está vivo depende fundamentalmente dessa estrutura invisível.
Isso não explica o que você quer dizer com inteligência…
Veja, aqui entramos em um problema de antropomorfizar inteligência. Eu sou um profundo defensor da ideia da evolução darwinista, mas sei que ela não explica tudo. Quando você se dá conta de como esses micélios estão na fundação da estrutura biológica da Terra, é bem óbvio para mim que houve decisões muito inteligentes no caminho da evolução para dar vazão ao tipo de vida que vemos hoje a partir de apenas pedra sólida – que era tudo o que havia no planeta há 1,3 bilhão de anos, até que os fungos começaram a digeri-las. Cinco extinções em massa depois e temos, mais uma vez, essa extraordinária biodiversidade e o advento da consciência humana.
Bem, aí chegamos ao dilema teológico. Se antes dos fungos não havia nada vivo, de onde vieram os fungos?
Eu tenho verdadeira crença de que matéria gera vida. Vida gera células simples, que viram cordas, que viram redes, que se desdobram de muitas formas. O caminho da evolução é explorar todas as possibilidades. Eu penso que quando explorarmos o cosmos vamos entender que é da matéria que a vida emerge. Ninguém ainda sabe do que chamar isso, alguns chamam de Deus. Mas eu acho que qualquer ideia que se faça de Deus é inadequada ao conceito. E a gente luta com a linguagem, tentando criar nomes para falar sobre coisas que não entendemos. Me faltam as palavras para dizer o que quero, que há uma consciência de Gaia, um ser universal, e que precisamos nos dar conta da sabedoria que existe à nossa volta.
Qual é para você a função evolutiva da relação humana com os cogumelos mágicos?
Você deve conhecer as ideias do [cientista americano] Terrence McKenna. Com uma delas eu concordo e respeito muito. A de que cogumelos mágicos representaram um ponto crucial na hora de os primatas se tornarem humanos. Nossos ancestrais, quando estavam deixando a savana em busca de comida, seguiam a trilha das fezes dos animais para caçar. É lógico supor que esses macacos iriam provar os cogumelos que topavam crescendo nessas fezes. Um grupo de primatas sentado ao redor do fogo é uma coisa, e outro na mesma circunstância com cogumelos mágicos é algo completamente diferente. A quantidade de informação, de sentimentos espirituais e desejo de articular e vocalizar pensamentos é de uma diferença colossal. Se isso realmente aconteceu, e eu acho muito, mas muito provável, pode ter sido o despertar espiritual e o da linguagem que definiram o ser humano.
Por que a antropologia não reconhece isso?
Cientistas não querem ser motivo de chacota. Têm medo de estigma porque não sabem nada sobre cogumelo ou sobre experiências psicodélicas. Triste. Qualquer um que não tenha passado por uma experiência psicodélica verdadeira não tem a menor ideia do que se trata. Isso para mim só demonstra a distância enorme entre a universidade e os sistemas naturais. Temos uma falta enorme de generalistas, de gente que é capaz de ler e interpretar sistemas complexos através de várias disciplinas. E isso não se ensina. É como tentar dizer como a água é para alguém que nunca a tocou.
Seu livro Mycelium Running é um compêndio de informações e experimentos que parecem revolucionários. Como está sendo recebido por essa ciência acadêmica?
Esse livro, e sou muito grato, está recebendo excelentes resenhas no mundo todo, inclusive nas universidades e entre cientistas renomados. Acho, sinceramente, que é um livro que abre muitas portas para pesquisas e ideias. Muita gente tem despertado para o que são de fato os fungos e transformado pedaços enormes de terra. Ele é minha arma secreta para criar uma ponte de onde eu vim, de uma cultura psicodélica, para uma cultura não psicodélica. Por isso que eu dei vários passos para me distanciar do estigma do cogumelo mágico, propositalmente.
Por quê?
Nós precisamos aprender a disseminar as ideias importantes sem nos prender aos psicodélicos para difundi-las. Eu acredito que a ingestão de cogumelos mágicos, assim como a de outros psicodélicos, aumenta a inteligência imensamente. Com essas novas experiências e eventos neurológicos, criam-se novos caminhos neuroquímicos por definição. Sofistica a consciência. Mas eu preciso ser ouvido por todos, porque não há muita gente falando em nome das possibilidades dos fungos como grandes aliados. Veja, no fundo todos estamos no mesmo barco e todos queremos a mesma coisa: saúde, amor ao universo, gentileza, beleza e um mundo melhor para nossos filhos. Quem discorda disso?! O único jeito de sobrevivermos é assim: abrir os conceitos e criar uma forma mais adulta de lidar com a natureza que, infelizmente, ainda não existe.
* Matéria publicada na Revista Trip em junho de 2009
* Matéria Publicada na Revista Trip em junho de 2009 http://cascadebesouro.com/2013/05/15/coguman/
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