- 22/12/2007
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Autor: Daniel Gontijo
Fonte: Montando o Quebra-Cabeça
“Você é uma ilusão” foi a convidativa manchete de uma revista, a Galileu, que eu encontrei por acaso há alguns dias atrás. A edição é antiga, de outubro de 2002, mas o assunto não poderia ser mais atual. A natureza e as dimensões do self, ou de um Eu que funda a mente consciente, é um daqueles tópicos que encontram muita dificuldade em despertar consenso na comunidade — sobretudo quando entrelaçamos ciência, filosofia e religião. Nós existimos enquanto entidades imateriais, independentes do corpo e espectadoras do mundo? Ou, trazendo os pés para o chão, não passamos de uma parte especial deste Universo material? Basicamente, o propósito daquela matéria foi mostrar que algumas ideias budistas sobre o self vêm encontrando respaldo nas ciências da mente. Não que o Eu, como propõe uma tese budista, seja simplesmente uma ilusão; a ideia é a de que esse fenômeno depende da associação de vários fatores agregados e está em contínua transformação (Nogueira, 2002). Assim, o Eu não remeteria a uma entidade unitária, estática e imaterial, mas a processos dinâmicos e físicos que, por sua organização e função, geram o que experienciamos como “o sujeito da mente”. E dizem que isso é evolutivamente adaptativo.
Se não me falha a memória, a matéria de que venho falando foi a ponte que me levou à obra do etologista Richard Dawkins, um dos expoentes do ateísmo moderno. Lá, Dawkins aparece como o criador de uma ideia que parece vir se difundindo por todos os cantos, qual seja, a de que as ideias variam, replicam-se e são selecionadas como os genes. Esses replicadores foram rotulados de memes, que podem ser definidos como unidades culturais — ou de imitação — que competem entre si pelo espaço no cérebro das pessoas (Dawkins, 1976/2007). “Melodias, ideias, slogans, modas no vestuário, as maneiras de fazer potes ou de construir arcos” (p. 330) são exemplos de memes. Levando a metáfora aos extremos, a psicóloga inglesa Susan Blackmore assevera, conforme consta na Galileu, que a “ideia de Eu” seria o maior dos memes, e que sua função seria a de favorecer a transmissão dos demais memes. Nossas crenças e práticas girariam em torno do Eu, e defendê-las não deixaria de ser uma questão de sobrevivência.
Confesso que eu ainda não tenho um posicionamento definitivo sobre a memética. Se a seleção por consequências é um dos modelos causais mais enxutos, elegantes e eficientes — podendo explicar a evolução das espécies, das culturas e dos comportamentos individuais –, não estou seguro quanto à utilidade de centrar a discussão nos replicadores (se é que ideias e comportamentos são replicadores legítimos). De qualquer forma, a ideia de que o Eu é uma espécie de referencial — como um centro de gravidade em torno do qual as ideias giram, ou a partir do qual a subjetividade se organiza — é indubitavelmente atraente.
A partir dessa auto-referência, cuja essência parece variar pouco ao longo do tempo, vivemos as sensações de unicidade e de que somos proprietários de ideias, sensações e objetos. A título de exemplo, “Daniel Gontijo” é o meu nome; alguns livros e roupas me pertencem; eu tenho braços, pernas e registros civis e acadêmicos, e um monte de memórias, que me situam no tempo e no espaço, me têm como referencial. Eu sou o eixo de todas essas coisas, e uma porção de pessoas legitima essas posses e essa unicidade. A cada dia que eu acordo, vivo a nítida sensação de ser a mesma pessoa que, na noite anterior, se pôs a dormir. Se não fosse assim, talvez não existissem a vida privada e a sociedade.
Boa parte de nós pode ter a eventual sensação de experimentar o mundo como um espectador, e a separação convencional entre os mundos real e imaginário pode nos levar à ideia de que o Eu, que transita entre essas dimensões, é uma entidade substancialmente diferenciada. Se, então, concluímos que o Eu não é constituído como o são os objetos materiais, há uma boa chance de sermos levamos a uma postura dualista. Para citar um exemplo, os espíritas acreditam que o Eu é imaterial, e isso implica que a morte do corpo biológico, que é material, não impõe um limite à consciência. Esse tipo de crença, que é reconfortante e central para enumeráveis religiões, já não sobrevive na mente de muitos cientistas.
Um Eu material
Se Dawkins adubou o meu ceticismo, o neurocientista português Antônio Damásio trouxe mais solidez à minha psicologia. De O Erro de Descartes (1996) ao E o Cérebro Criou o Homem (2011), venho sendo conduzido a uma apaixonante perspectiva materialista do comportamento humano. Mas em que foi que Descartes errou, afinal? Damásio (1996) ressalta que o maior erro do filósofo francês foi o de postular
a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo (p. 280).
Daí em diante, em O Mistério da Consciência (2006) e em E o Cérebro Criou o Homem (2011), Damásio vem trabalhando meticulosamente em uma simples mas poderosa hipótese, a saber, a de que o Eu é essencialmente fundamentado nos estados do corpo. Mesmo que essa hipótese não seja originalmente dele, talvez não haja quem esteja mais empenhado em demonstrar que a consciência — ou o processo de conhecer em que há um sujeito, o Eu — é um fenômeno configurado pelas relações do cérebro com o mundo e, é claro, com o resto do corpo. Alguns filósofos da mente ostentam que é impossível provarmos legitimamente que as demais pessoas — que não nós mesmos — têm experiências subjetivas. Apesar disso, podemos nos contentar com os sinais de que há um Eu pulsando por detrás ou através do que observamos diretamente. Com base nisso, Damásio (2011) propõe quatro distintas mas complementares perspectivas de se estudar a consciência:
1) a perspectiva da testemunha direta da mente consciente individual, que é pessoal, privada e única; 2) a perspectiva comportamental, que nos permite observar as ações indicativas de outros que supostamente também possuem uma mente consciente; 3) a perspectiva do cérebro, que nos permite estudar certos aspectos do funcionamento cerebral em indivíduos cujos estados mentais conscientes presumivelmente estão ou presentes ou ausentes [...] [e 4) a perspectiva evolucionista, em que buscamos] os antecedentes do self e da consciência no passado evolucionário (pp. 29-30).
Assim, e de trás para a frente, os alicerces do Eu podem remontar a organismos simples que passaram, ao longo da evolução, a representar certos estados corporais em algo como um cérebro rudimentar. Para ser mais preciso, o Eu pode ter evoluído como um conjunto de processos simples que, baseados em sinais corporais, passaram a mediar ou a moderar as respostas dos organismos. Se a sobrevivência depende da integridade de tecidos e de níveis ótimos de concentração de certas moléculas (por exemplo, de carboidratos, lipídios e água), o comportamento de um organismo deve ter esses parâmetros como referenciais. Damásio (2011) especula que, na vida ancestral, “os processos do self eram especialmente eficientes para orientar e organizar a mente em função das necessidades homeostáticas de seus organismos, e, com isso, aumentavam as chances de sobrevivência” (p. 226). Em harmonia com essa proposta, o neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, autor de Fantasmas no Cérebro (2002), pontua que o senso de Eu é útil em termos de criar um princípio organizador das ações. Assim, antes de tal ou qual resposta ser emitida, os estados corporais, que gravitam em torno de faixas homeostáticas, deveriam ser naturalmente consultados. Aliás, Damásio (2006, 2011) chega a propor que a consciência é uma espécie de extensão dos processos de regulação que garantem a constância do meio interno, a homeostase –e a experiência de continuidade e unicidade do Eu podem se derivar disso!
Para não dizer que isso é especulação forçada, o neurocientista português vem acumulando dados a respeito da perda de consciência em, por exemplo, pacientes neurológicos, como os acometidos por epilepsia ou coma, e em pessoas que dormem ou são submetidas à anestesia geral. Diante desses casos, vem ficando evidente que a arquitetura do Eu se refere a mecanismos profundamente localizados no encéfalo, e não àqueles de regiões evolutivamente modernas. Assim, se os lobos frontais podem ser concebidos como os “órgãos da civilidade” (Goldberg, 2002), certos núcleos do tronco encefálico (como o parabraquial, o da matéria cinzenta periaquedutal e o do trato solitário) parecem abrigar boa parte dos mapas neurais que sustentam o Eu. Esses circuitos estão envolvidos em processos homeostáticos básicos (como os que regulam a respiração, os batimentos cardíacos e a atividade de glândulas e órgãos viscerais), e comunicam-se reciprocamente com o resto do corpo através de sinalizações químicas, pelo sangue, e eletroquímicas, por meio de neurônios. Por dedução, Damásio quer crer que mamíferos, peixes e insetos têm, em maior ou menor grau, experiências conscientes.
O tronco encefálico, no qual a maior parte dos processos do Eu reside, está destacado de verde escuro.
Mas os circuitos e redes neurais que respondem aos estados do corpo não podem, sozinhos, abrigar a consciência. Quando estamos conscientes, estamos conscientes de alguma coisa. O Eu não pode existir na ausência do não-Eu. Daí que, simultaneamente aos padrões de atividade relacionados ao corpo, ou aos mapas corporais, o encéfalo deve conter mapas relacionados a objetos ou eventos do mundo exterior (como os que respondem às variações de calor, de fótons e de partículas que compõem o ar). A percepção de uma cadeira, de uma pedra no sapato ou de uma nota musical, por exemplo, poderia ser neurologicamente descrita como a sincronia — realizada por regiões associativas como o tálamo, os colículos superiores e os córtices posteromediais — de processos cerebrais relacionados ao corpo e ao mundo. Por ter o corpo como um referencial, a consciência de qualquer objeto pode ser entendida como um sentimento de conhecer.
Por falar em sensações, não posso deixar de esclarecer que, ao eleger o corpo como o sustentáculo do Eu, Damásio está trazendo as emoções para o centro do palco. Emoções são programas de ação complexos que acontecem no corpo, “abrangendo desde expressões faciais e posturas até mudanças nas vísceras e no meio interno” (Damásio, 2011, p. 142). Pode-se dizer que o Eu é constituído de sentimentos de emoções, ou é a perspectiva subjetiva dos estados neurais que respondem às variações dos estados corporais. Variações em certos estados corporais são, em primeira pessoa, sentidas como variações em graus de dor e prazer, ou de desconforto e bem-estar. Essas variações estão intimamente relacionadas à forma como lidamos com o mundo — por exemplo, se nos aproximamos ou nos afastamos de certos objetos –, e são automaticamente associadas aos objetos que as acompanham. Essas associações podem ser entendidas como marcações somáticas, que se referem ao fortalecimento de contingências emocionais. Por exemplo, se o meu vizinho gritar “Cruzeeeiro!”, posso me sentir imediatamente entusiasmado. Presume-se que, há dias ou anos atrás, essa palavra e o contexto no qual ela é comumente emitida (em jogos de futebol, principalmente) foram marcados por emoções como diversão, orgulho e entusiasmo (como, por exemplo, quando o Cruzeiro foi campeão). Trazendo essa proposta ao campo da psicologia, a hipótese dos marcadores somáticos é razoavelmente equivalente ao condicionamento respondente, um dos processos extensamente estudados pelos behavioristas.
Antes de finalizar, cabe dizer algo sobre a memória. Damásio postula que o Eu, que é constituído por conjuntos de sensações emocionais — das mais estáveis às mais flutuantes –, transita por diferentes graus de complexidade. Esses graus podem variar não só de acordo com a espécie, mas também conforme a situação em que se encontra um indivíduo. Em uns momentos, sentimo-nos totalmente absortos em uma atividade, como que desconsiderando o que nos entorna, o que nos poderá acontecer ou o que nos aconteceu há algum tempo atrás. Em outros, somos tomados por lembranças que têm alguma relação com a situação atual, e podemos, com base nessas lembranças, vislumbrar o futuro e planejar certas condutas. O primeiro caso refere-se à experiência de um Eu-central, enquanto o segundo, a de um Eu-autobiográfico.(1) Este último, além de abarcar a sensação básica de conhecer — ou a de um sujeito que experiencia o mundo –, conta com elementos mnemônicos que lhe dão uma identidade e uma vivência privada mais complexas. Trata-se, por assim dizer, de uma consciência ampliada, sem a qual perderíamos referências temporais e autobiográficas (lembranças do que já vivemos), e por meio da qual se sustentam as maiores façanhas da humanidade. Ciência, arte, esporte, leis, religião e tecnologia eletrônica não existiriam sem que houvesse, ao mesmo tempo, o processo a que chamamos de consciência e a extraordinária suscetibilidade humana à aprendizagem.
Em suma, o despertar e o adormecer da consciência dependem de interações que o encéfalo estabelece com o corpo e com o mundo. A experiência de unicidade e continuidade do Eu parece ser um reflexo de parâmetros pouco variáveis do corpo, e variações nessa experiência são presumivelmente acompanhadas por variações nos mapas neurais do tronco encefálico. O Eu pode ser entendido como uma coleção dinâmica e organizada de sensações emocionais, e o processo pessoal de conhecer algo, a consciência, parece ser viável apenas na presença de sentimentos. Assim, e se a percepção de qualquer objeto requer, em paralelo, a presença de sensações emocionais, seria um equívoco pensar que as operações intelectuais mais complexas não dependem das emoções. Como foi exposto em O Erro de Descartes (Damásio, 1996), não há razão que sobreviva sem um bocado de emoção. As emoções mais flutuantes, como a alegria, a raiva e o medo, complementam o senso de Eu e influenciam decisivamente a forma como interagimos com o mundo — quer seja no trabalho e na escola, quer seja com as pessoas com quem convivemos.
O Eu é uma ilusão?
Os processos que sustentam o Eu parecem estar predominantemente dispostos em núcleos do tronco encefálico (mesmo que o funcionamento da ínsula e do hipotálamo seja contribuinte), e a atividade neural, ainda que oscilatória e dinâmica, é tão real quanto o são as nuvens, uma melodia ou o aroma de um bom café. A natureza processual de certos fenômenos não os torna menos reais. O que parece acontecer é que, como vivemos a sensação de unicidade, inferimos que deve haver uma entidade indivisível e estritamente dimensionada, material ou imaterial, que corresponde ao Eu. Mas “o maestro inegavelmente existe em nossa mente, e nada ganharíamos se o descartássemos como uma ilusão” (Damásio, 2011, p. 40). A novidade, que pode ser ultrajante para os dualistas, é que o Eu está enraizado nos eventos do corpo e não é menos material que o fogo, a chuva e o vento.
Nota
(1) Em sua obra, Damásio prefere chamar o Eu de self, e o Eu-central e o Eu-autobiográfico são então descritos como self-central e self-autobiográfico.
Referências
Fonte: Montando o Quebra-Cabeça
“Você é uma ilusão” foi a convidativa manchete de uma revista, a Galileu, que eu encontrei por acaso há alguns dias atrás. A edição é antiga, de outubro de 2002, mas o assunto não poderia ser mais atual. A natureza e as dimensões do self, ou de um Eu que funda a mente consciente, é um daqueles tópicos que encontram muita dificuldade em despertar consenso na comunidade — sobretudo quando entrelaçamos ciência, filosofia e religião. Nós existimos enquanto entidades imateriais, independentes do corpo e espectadoras do mundo? Ou, trazendo os pés para o chão, não passamos de uma parte especial deste Universo material? Basicamente, o propósito daquela matéria foi mostrar que algumas ideias budistas sobre o self vêm encontrando respaldo nas ciências da mente. Não que o Eu, como propõe uma tese budista, seja simplesmente uma ilusão; a ideia é a de que esse fenômeno depende da associação de vários fatores agregados e está em contínua transformação (Nogueira, 2002). Assim, o Eu não remeteria a uma entidade unitária, estática e imaterial, mas a processos dinâmicos e físicos que, por sua organização e função, geram o que experienciamos como “o sujeito da mente”. E dizem que isso é evolutivamente adaptativo.

Se não me falha a memória, a matéria de que venho falando foi a ponte que me levou à obra do etologista Richard Dawkins, um dos expoentes do ateísmo moderno. Lá, Dawkins aparece como o criador de uma ideia que parece vir se difundindo por todos os cantos, qual seja, a de que as ideias variam, replicam-se e são selecionadas como os genes. Esses replicadores foram rotulados de memes, que podem ser definidos como unidades culturais — ou de imitação — que competem entre si pelo espaço no cérebro das pessoas (Dawkins, 1976/2007). “Melodias, ideias, slogans, modas no vestuário, as maneiras de fazer potes ou de construir arcos” (p. 330) são exemplos de memes. Levando a metáfora aos extremos, a psicóloga inglesa Susan Blackmore assevera, conforme consta na Galileu, que a “ideia de Eu” seria o maior dos memes, e que sua função seria a de favorecer a transmissão dos demais memes. Nossas crenças e práticas girariam em torno do Eu, e defendê-las não deixaria de ser uma questão de sobrevivência.
Confesso que eu ainda não tenho um posicionamento definitivo sobre a memética. Se a seleção por consequências é um dos modelos causais mais enxutos, elegantes e eficientes — podendo explicar a evolução das espécies, das culturas e dos comportamentos individuais –, não estou seguro quanto à utilidade de centrar a discussão nos replicadores (se é que ideias e comportamentos são replicadores legítimos). De qualquer forma, a ideia de que o Eu é uma espécie de referencial — como um centro de gravidade em torno do qual as ideias giram, ou a partir do qual a subjetividade se organiza — é indubitavelmente atraente.
A partir dessa auto-referência, cuja essência parece variar pouco ao longo do tempo, vivemos as sensações de unicidade e de que somos proprietários de ideias, sensações e objetos. A título de exemplo, “Daniel Gontijo” é o meu nome; alguns livros e roupas me pertencem; eu tenho braços, pernas e registros civis e acadêmicos, e um monte de memórias, que me situam no tempo e no espaço, me têm como referencial. Eu sou o eixo de todas essas coisas, e uma porção de pessoas legitima essas posses e essa unicidade. A cada dia que eu acordo, vivo a nítida sensação de ser a mesma pessoa que, na noite anterior, se pôs a dormir. Se não fosse assim, talvez não existissem a vida privada e a sociedade.
Boa parte de nós pode ter a eventual sensação de experimentar o mundo como um espectador, e a separação convencional entre os mundos real e imaginário pode nos levar à ideia de que o Eu, que transita entre essas dimensões, é uma entidade substancialmente diferenciada. Se, então, concluímos que o Eu não é constituído como o são os objetos materiais, há uma boa chance de sermos levamos a uma postura dualista. Para citar um exemplo, os espíritas acreditam que o Eu é imaterial, e isso implica que a morte do corpo biológico, que é material, não impõe um limite à consciência. Esse tipo de crença, que é reconfortante e central para enumeráveis religiões, já não sobrevive na mente de muitos cientistas.
Um Eu material
Se Dawkins adubou o meu ceticismo, o neurocientista português Antônio Damásio trouxe mais solidez à minha psicologia. De O Erro de Descartes (1996) ao E o Cérebro Criou o Homem (2011), venho sendo conduzido a uma apaixonante perspectiva materialista do comportamento humano. Mas em que foi que Descartes errou, afinal? Damásio (1996) ressalta que o maior erro do filósofo francês foi o de postular
a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo (p. 280).
Daí em diante, em O Mistério da Consciência (2006) e em E o Cérebro Criou o Homem (2011), Damásio vem trabalhando meticulosamente em uma simples mas poderosa hipótese, a saber, a de que o Eu é essencialmente fundamentado nos estados do corpo. Mesmo que essa hipótese não seja originalmente dele, talvez não haja quem esteja mais empenhado em demonstrar que a consciência — ou o processo de conhecer em que há um sujeito, o Eu — é um fenômeno configurado pelas relações do cérebro com o mundo e, é claro, com o resto do corpo. Alguns filósofos da mente ostentam que é impossível provarmos legitimamente que as demais pessoas — que não nós mesmos — têm experiências subjetivas. Apesar disso, podemos nos contentar com os sinais de que há um Eu pulsando por detrás ou através do que observamos diretamente. Com base nisso, Damásio (2011) propõe quatro distintas mas complementares perspectivas de se estudar a consciência:
1) a perspectiva da testemunha direta da mente consciente individual, que é pessoal, privada e única; 2) a perspectiva comportamental, que nos permite observar as ações indicativas de outros que supostamente também possuem uma mente consciente; 3) a perspectiva do cérebro, que nos permite estudar certos aspectos do funcionamento cerebral em indivíduos cujos estados mentais conscientes presumivelmente estão ou presentes ou ausentes [...] [e 4) a perspectiva evolucionista, em que buscamos] os antecedentes do self e da consciência no passado evolucionário (pp. 29-30).

Assim, e de trás para a frente, os alicerces do Eu podem remontar a organismos simples que passaram, ao longo da evolução, a representar certos estados corporais em algo como um cérebro rudimentar. Para ser mais preciso, o Eu pode ter evoluído como um conjunto de processos simples que, baseados em sinais corporais, passaram a mediar ou a moderar as respostas dos organismos. Se a sobrevivência depende da integridade de tecidos e de níveis ótimos de concentração de certas moléculas (por exemplo, de carboidratos, lipídios e água), o comportamento de um organismo deve ter esses parâmetros como referenciais. Damásio (2011) especula que, na vida ancestral, “os processos do self eram especialmente eficientes para orientar e organizar a mente em função das necessidades homeostáticas de seus organismos, e, com isso, aumentavam as chances de sobrevivência” (p. 226). Em harmonia com essa proposta, o neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, autor de Fantasmas no Cérebro (2002), pontua que o senso de Eu é útil em termos de criar um princípio organizador das ações. Assim, antes de tal ou qual resposta ser emitida, os estados corporais, que gravitam em torno de faixas homeostáticas, deveriam ser naturalmente consultados. Aliás, Damásio (2006, 2011) chega a propor que a consciência é uma espécie de extensão dos processos de regulação que garantem a constância do meio interno, a homeostase –e a experiência de continuidade e unicidade do Eu podem se derivar disso!
Para não dizer que isso é especulação forçada, o neurocientista português vem acumulando dados a respeito da perda de consciência em, por exemplo, pacientes neurológicos, como os acometidos por epilepsia ou coma, e em pessoas que dormem ou são submetidas à anestesia geral. Diante desses casos, vem ficando evidente que a arquitetura do Eu se refere a mecanismos profundamente localizados no encéfalo, e não àqueles de regiões evolutivamente modernas. Assim, se os lobos frontais podem ser concebidos como os “órgãos da civilidade” (Goldberg, 2002), certos núcleos do tronco encefálico (como o parabraquial, o da matéria cinzenta periaquedutal e o do trato solitário) parecem abrigar boa parte dos mapas neurais que sustentam o Eu. Esses circuitos estão envolvidos em processos homeostáticos básicos (como os que regulam a respiração, os batimentos cardíacos e a atividade de glândulas e órgãos viscerais), e comunicam-se reciprocamente com o resto do corpo através de sinalizações químicas, pelo sangue, e eletroquímicas, por meio de neurônios. Por dedução, Damásio quer crer que mamíferos, peixes e insetos têm, em maior ou menor grau, experiências conscientes.

O tronco encefálico, no qual a maior parte dos processos do Eu reside, está destacado de verde escuro.
Mas os circuitos e redes neurais que respondem aos estados do corpo não podem, sozinhos, abrigar a consciência. Quando estamos conscientes, estamos conscientes de alguma coisa. O Eu não pode existir na ausência do não-Eu. Daí que, simultaneamente aos padrões de atividade relacionados ao corpo, ou aos mapas corporais, o encéfalo deve conter mapas relacionados a objetos ou eventos do mundo exterior (como os que respondem às variações de calor, de fótons e de partículas que compõem o ar). A percepção de uma cadeira, de uma pedra no sapato ou de uma nota musical, por exemplo, poderia ser neurologicamente descrita como a sincronia — realizada por regiões associativas como o tálamo, os colículos superiores e os córtices posteromediais — de processos cerebrais relacionados ao corpo e ao mundo. Por ter o corpo como um referencial, a consciência de qualquer objeto pode ser entendida como um sentimento de conhecer.
Por falar em sensações, não posso deixar de esclarecer que, ao eleger o corpo como o sustentáculo do Eu, Damásio está trazendo as emoções para o centro do palco. Emoções são programas de ação complexos que acontecem no corpo, “abrangendo desde expressões faciais e posturas até mudanças nas vísceras e no meio interno” (Damásio, 2011, p. 142). Pode-se dizer que o Eu é constituído de sentimentos de emoções, ou é a perspectiva subjetiva dos estados neurais que respondem às variações dos estados corporais. Variações em certos estados corporais são, em primeira pessoa, sentidas como variações em graus de dor e prazer, ou de desconforto e bem-estar. Essas variações estão intimamente relacionadas à forma como lidamos com o mundo — por exemplo, se nos aproximamos ou nos afastamos de certos objetos –, e são automaticamente associadas aos objetos que as acompanham. Essas associações podem ser entendidas como marcações somáticas, que se referem ao fortalecimento de contingências emocionais. Por exemplo, se o meu vizinho gritar “Cruzeeeiro!”, posso me sentir imediatamente entusiasmado. Presume-se que, há dias ou anos atrás, essa palavra e o contexto no qual ela é comumente emitida (em jogos de futebol, principalmente) foram marcados por emoções como diversão, orgulho e entusiasmo (como, por exemplo, quando o Cruzeiro foi campeão). Trazendo essa proposta ao campo da psicologia, a hipótese dos marcadores somáticos é razoavelmente equivalente ao condicionamento respondente, um dos processos extensamente estudados pelos behavioristas.
Antes de finalizar, cabe dizer algo sobre a memória. Damásio postula que o Eu, que é constituído por conjuntos de sensações emocionais — das mais estáveis às mais flutuantes –, transita por diferentes graus de complexidade. Esses graus podem variar não só de acordo com a espécie, mas também conforme a situação em que se encontra um indivíduo. Em uns momentos, sentimo-nos totalmente absortos em uma atividade, como que desconsiderando o que nos entorna, o que nos poderá acontecer ou o que nos aconteceu há algum tempo atrás. Em outros, somos tomados por lembranças que têm alguma relação com a situação atual, e podemos, com base nessas lembranças, vislumbrar o futuro e planejar certas condutas. O primeiro caso refere-se à experiência de um Eu-central, enquanto o segundo, a de um Eu-autobiográfico.(1) Este último, além de abarcar a sensação básica de conhecer — ou a de um sujeito que experiencia o mundo –, conta com elementos mnemônicos que lhe dão uma identidade e uma vivência privada mais complexas. Trata-se, por assim dizer, de uma consciência ampliada, sem a qual perderíamos referências temporais e autobiográficas (lembranças do que já vivemos), e por meio da qual se sustentam as maiores façanhas da humanidade. Ciência, arte, esporte, leis, religião e tecnologia eletrônica não existiriam sem que houvesse, ao mesmo tempo, o processo a que chamamos de consciência e a extraordinária suscetibilidade humana à aprendizagem.
Em suma, o despertar e o adormecer da consciência dependem de interações que o encéfalo estabelece com o corpo e com o mundo. A experiência de unicidade e continuidade do Eu parece ser um reflexo de parâmetros pouco variáveis do corpo, e variações nessa experiência são presumivelmente acompanhadas por variações nos mapas neurais do tronco encefálico. O Eu pode ser entendido como uma coleção dinâmica e organizada de sensações emocionais, e o processo pessoal de conhecer algo, a consciência, parece ser viável apenas na presença de sentimentos. Assim, e se a percepção de qualquer objeto requer, em paralelo, a presença de sensações emocionais, seria um equívoco pensar que as operações intelectuais mais complexas não dependem das emoções. Como foi exposto em O Erro de Descartes (Damásio, 1996), não há razão que sobreviva sem um bocado de emoção. As emoções mais flutuantes, como a alegria, a raiva e o medo, complementam o senso de Eu e influenciam decisivamente a forma como interagimos com o mundo — quer seja no trabalho e na escola, quer seja com as pessoas com quem convivemos.
O Eu é uma ilusão?
Os processos que sustentam o Eu parecem estar predominantemente dispostos em núcleos do tronco encefálico (mesmo que o funcionamento da ínsula e do hipotálamo seja contribuinte), e a atividade neural, ainda que oscilatória e dinâmica, é tão real quanto o são as nuvens, uma melodia ou o aroma de um bom café. A natureza processual de certos fenômenos não os torna menos reais. O que parece acontecer é que, como vivemos a sensação de unicidade, inferimos que deve haver uma entidade indivisível e estritamente dimensionada, material ou imaterial, que corresponde ao Eu. Mas “o maestro inegavelmente existe em nossa mente, e nada ganharíamos se o descartássemos como uma ilusão” (Damásio, 2011, p. 40). A novidade, que pode ser ultrajante para os dualistas, é que o Eu está enraizado nos eventos do corpo e não é menos material que o fogo, a chuva e o vento.
Nota
(1) Em sua obra, Damásio prefere chamar o Eu de self, e o Eu-central e o Eu-autobiográfico são então descritos como self-central e self-autobiográfico.
Referências
- Damásio, A. (1996). O Erro de Descartes: razão, emoção e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras.
- Damásio, A. (2000). O Mistério da Consciência. São Paulo: Companhia das Letras.
- Damásio, A. (2011). E o Cérebro Criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras.
- Dawkins, R. (1976/2007). O Gene Egoísta. São Paulo: Companhia das Letras.
- Goldberg, E. (2002). O Cérebro Executivo. Rio de Janeiro: Imago.
- Nogueira, P. (2002). Penso, logo não Existo, Galileu. São Paulo, 135, outubro de 2002.
- Ramachandran, V. (2002). Fantasmas no Cérebro. São Paulo: Companhia das Letras.