Viva Zapata, viva Sandino, viva Zumbi, todos os Panteras Negras, Lampião sua imagem e semelhança, eu tenho certeza, eles tomaram chá de cogumelo um dia.
E Viva Chico Science!
MANGUE BEAT – Breve Histórico do seu Nascimento
Renato L
Um resumo das primeiras aventuras do Mangue.
“Cada boca é uma sentença”, diz o ditado. Cada um interpreta os fatos de maneira diferente, cada memória remixa o que ficou para trás de um jeito todo seu. Assim, parece impossível determinar exatamente como o Mangue nasceu, ainda mais depois da morte de Chico Science, ele que foi buscar o rótulo em algum momento (no ônibus? em casa ouvindo música? na praia?) daquele início dos noventa e que generosamente o presenteou a seus amigos.
No entanto, descobrir o minuto mágico onde Chico teve sua grande sacada talvez não seja tão importante. Afinal, o Mangue foi produto de um longo processo, algo que se estendeu por anos a fio, com milhares de experiências espalhadas pela vida dos integrantes de uma rede envolvendo estudantes, funcionários públicos, músicos, jornalistas, designers e trabalhadores da aviação civil. Seu começo pode ser datado da noite em que Zero Quatro subiu ao palco de um barzinho e tocou guitarra pela primeira vez. Ou da tarde em que Chico e Jorge Du Peixe ensaiaram seus primeiros passos de break. Ou quando Renato L leu os artigos de Bia Abramo, Alex Antunes e Pepe Escobar na antiga Showbizz. Ou quando Mabuse ganhou seu codinome, ou Lúcio Maia ouviu Hendrix ou o futuro DJ Dolores partiu de Aracaju para o Recife.
Cada estilhaço dessas vidas foi marcado por uma paixão pela música e uma insatisfação com o que era produzido no Brasil em termos de cultura pop, especialmente em Pernambuco, onde a decadência econômica acentuava o negror do quadro. Ninguém agüentava as cópias deslavadas do rock anglo-saxão e a MPB há muito parecia mergulhada na auto-complacência. E Recife, coitada, aparecia como “a quarta pior cidade do mundo” em termos de qualidade de vida, segundo uma pesquisa da época.
Esses dois pontos (amor pela música e insatisfação) eram comuns a toda aquela fauna diversificada que passou a conviver numa “base” situada nas Graças, quase no centro do Recife, bem no finalzinho da década de oitenta. A sala cheia de minúsculas baratas do “apartamento de Zé Roberto”, como ficou conhecido o local, virou parada obrigatória antes da volta para os distantes lares ou da saída noturna até um dos bares do bairro, na época o principal destino boêmio da cidade. Sua funcionalidade parecia absoluta: não haviam pais por lá, o sofá da sala estava sempre disponível para uma dormida, o toca-discos funcionava, o consumo de substâncias alteradoras da percepção era livre e o Zé Roberto tinha uma paciência de Jó!
Entre uma cerveja e outra, as coleções de discos e as idéias daquela turma começaram a se mesclar, gerando encontros surpreendentes. De repente, James Brown encontrou Johnn Rotten. Jorge Ben foi apresentado a Afrika Bambaataa. O The Who descobriu o Fellini. O cavaquinho e o sampler passaram a flertar. Até que um dia...
“Eu estava no Cantinho das Graças, um bar sem qualquer atrativo frequentado pela galera. Na mesa acho que bebiam Mabuse, Fred, Vinícius Enter e outros. De repente, Chico apareceu e sem nem sentar foi anunciando “olha, fiz uma jam session com o pessoal do Lamento Negro e mesclei uma batida disso com uma batida daquilo e um baixo assim...Vou chamar esse groove de Mangue!”. Na hora, ficamos sem saber o que era mais interessante, o som ou a palavra usada para sintetizá-lo. Aquele era o rótulo! Como todo mundo tinha um sonho em mente e um esboço de trabalho em conjunto havia se delineado em algumas festas, a tentação de ampliar o conceito surgiu de imediato.
A gente havia se apaixonado por música via movimentos que enfatizavam o coletivo e o faça-você-mesmo, coisas comuns ao Punk e ao Hip Hop. E ainda se lia sobre a acid-house, outra trip envolvendo esforço em conjunto. Daí veio a idéia de criar uma “cena”, uma palavra que permitia a integração orgânica entre nossas diferentes atividades e gostos e que era pouco usada no Brasil. Acho que numa despretensiosa meia-hora surgiram os esboços de quase todos os conceitos básicos do Mangue.Aquela noite, na minha (de Renato L) memória, sem que ninguém percebesse, foi um momento-chave”.
Quando Zero Quatro, mais tarde, começou a trabalhar num vídeo sobre os manguezais para uma produtora independente de tv e trouxe a informação de que aquele era o ecossistema biologicamente mais rico do planeta, o último elo que faltava para a montagem do conceito chegou. Com ele, veio a metáfora básica para a agitação que se seguiu: “queremos construir uma cena tão rica e diversificada como os Manguezais!”. Algo capaz de tirar o Recife do coma e conectar sua criatividade com os circuitos mundiais.
Na verdade, a primeira vez que a palavra despontou na imprensa foi como uma batida, um novo ritmo que seria apresentado por um grupo chamado Chico Science e Lamento Negro. É assim que informa a matéria publicada no Jornal do Comércio sobre uma festa que aconteceria no “Espaço Oásis”, em Olinda. Black Planet era o nome do evento, que traria, também, discotecagens de Renato L e Mabuse. A partir daí, o Mangue só apareceu como sinônimo de algo coletivo.
As primeiras festas e shows aconteceram nos antigos bordéis da área portuária, ainda não revitalizada naqueles tempos. Todo mundo trabalhava em cooperativa, uns fazendo os cartazes, outros discotecando e/ou trabalhando na bilheteria. Ninguém do núcleo-base gostava de chamar a coisa de “movimento”, palavra tida como pretensiosa. Foi a mídia que começou a usar o termo, principalmente a partir da chegada às redações, em 92, daquilo que era apenas um release escrito por Zero Quatro – de forma brilhante, diga-se de passagem - mas que acabou encarado como um manifesto tipo “semana de 22”.
Movimento ou não, o fato é que o som e as idéias doMangue rapidamente conquistaram os formadores de opinião, com exceção dos armoriais e de um Alceu Valença morto de ciúmes e inveja. O poder e a repercussão das composições de CSNZ e do Mundo Livre incentivaram outros músicos a formarem suas próprias bandas e deu novo gás a cenas que já existiam, como a do Alto José do Pinho, com seus grupos de pop-rock e hardcore.
Com o tempo, a agitação espalhou-se da música para outras áreas, especialmente o cinema, a moda e as artes plásticas. A flexibilidade embutida na metáfora da Diversidade permitia que todos se sentissem como autênticos mangue bos, se assim lhes conviessem. De marca registrada do trabalho daquela cooperativa, em especial das duas bandas que eram seu carro-chefe, o rótulo migrou em direção a algo maior, tornando-se sinônimo da própria cena que ajudou a criar.
Quando a metade dos anos noventa chegou, Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A haviam lançados seus primeiros discos, ambos considerados clássicos de nascença pela crítica, enquanto o Recife já ganhara o apelido de “manguetown”, voltando a ser um importante centro musical, status que mantém até hoje. Nunca mais o Maracatu, o samba, as descrições das pontes e dos rios, a auto-estima dos moradores da periferia e o rapeado do repente seriam os mesmos...
Contar em detalhes a história dessa expansão pelo Brasil e o mundo deixaria o texto insuportavelmente longo para ser lido na tela de um computador. Mas privá-lo de seus capítulos mais importantes seria uma traição às expectativas criadas. Por isso, no nosso
Glossário você encontrará as informações necessárias para curtir o resto da saga dos mangue bos. Boa leitura e...up to the trip!!
Fonte:
http://www.recife.pe.gov.br/chicoscience/textos_renatol3.html