- 22/12/2007
- 9,125
- 5
- 98
Carlos Orsi
http://carlosorsi.blogspot.com/2012/02/as-marcas-do-apocalipse-de-ontem-e-de.html
SEGUNDA-FEIRA, 13 DE FEVEREIRO DE 2012
As marcas do apocalipse, de ontem e de hoje

"Literatura apocalíptica" é um gênero que se tornou bastante popular nos escritos hebraicos a partir do exílio na Babilônia, iniciado em 587 AEC, depois que o Reino de Judá foi a pique. Trata-se de uma forma literária, ao menos do ponto de vista moral e psicológico, especialmente desprezível, na medida em que cumpre a função mesquinha de satisfazer, por meio da fantasia, o sadismo dos ressentidos.
O texto apocalíptico é, em geral, o produto de um oprimido que sonha em rasgar a jugular e beber o sangue do opressor, mas não vê oportunidade para tanto. Logo, espera que Deus se enfeze e acabe com a palhaçada de uma vez por todas, de preferência com muito choro, ranger de dentes e requintes diversos de crueldade. Parafraseando as categorias nietzschenianas de moral do senhor e moral do escravo, o apocalipse é uma manifestação desenfreada do id do escravo.
A paixão por esse tipo de vendetta escatológica passou dos judeus oprimidos para os cristãos perseguidos, e exemplares não demoraram a achar seu caminho até o cânone no Novo Testamento. Tanto que a palavra "apocalíptico" deriva do Apocalipse de João, último livro da Bíblia cristã. Mas o fato é que João de Patmos, o autor que compôs o texto por volta do ano 100, tinha alguns modelos anteriores sobre os quais trabalhar.
O "tipo ideal" do texto apocalíptico -- do qual, até certo ponto, o livro de João de Patmos se desvia, na verdade -- é marcado por algumas características peculiares, para além de visões catastróficas mediadas por anjos, imagens grotescas, mensagens cifradas e uma grande exultação sadomasoquista no sofrimento generalizado ("E vi um anjo que estava no sol, e clamou com grande voz, dizendo a todas as aves que voavam pelo meio do céu: Vinde, e ajuntai-vos à ceia do grande Deus;/Para que comais a carne dos reis, e a carne dos tribunos, e a carne dos fortes, e a carne dos cavalos e dos que sobre eles se assentam; e a carne de todos os homens, livres e servos, pequenos e grandes". Apocalipse 19:17-18).

Uma dessas características é que se tratam geralmente de trabalhos pseudoepigráficos, isto é, com falsa atribuição de autoria. Da mesma forma que os criadores de mensagens babaquinhas que circulam pela web preferem tomar emprestada a "autoridade" de nomes mais conhecidos, como Veríssimo ou Jabor, a expor seus próprios autógrafos insignificantes, os autores de textos apocalípticos costumam assinar seus trabalhos como se fossem figuras reverenciadas do passado.
Um caso clássico é o Livro de Enoque, literatura apócrifa quer influenciou bastante a redação dos livros do Novo Testamento, originária do período entre os séculos 3-1 AEC. O livro, no entanto, foi atribuído por seus autores desconhecidos a um patriarca bíblico mencionado brevemente no Gênese, o avô de Noé, que teria sido arrebatado aos céus por YHWH. Outro é o Livro de Daniel, atribuído a um profeta do período do exílio, mas na verdade escrito durante a época dos Macabeus, por volta de 165 AEC.

Outra característica, que é a que torna relativamente fácil a tarefa de datar esses escritos, é que eles disfarçam história como profecia. No caso de Daniel, por exemplo -- supostamente escrito no século 6 AEC -- temos uma "profecia correta" de um evento que está no "futuro" no narrador, mas no passado do autor: a derrota do Império Persa por Alexandre Magno.
O narrador também vê corretamente "o futuro" ao prever que a profanação do Templo de Jerusalém durante o tempo dos Selêucidas -- dinastia que se apoderou da Síria, da Palestina e de outros pedaços do Oriente após a fragmentação do império de Alexandre -- durará pouco mais de três anos, ou "mil trezentos e trinta e cinco dias": a profanação (uma estátua de Zeus foi colocada no altar do ciumentíssimo YHWH), feita sob ordem do rei selêucida Antíoco IV, realmente dura de 167 AEC a 163 AEC.
Esse parece ser, portanto, o período aproximado de composição do livro, porque todas as tentativas de previsão de eventos posteriores à reconsagração do templo fracassam fragorosamente. Ao menos, não há registro de que o Império Selêucida tenha sido destruído pelo Arcanjo Miguel, evento seguido, na profecia, por uma ressurreição geral dos mortos e pela instauração do Reino de Deus na Terra.
O mesmo padrão aparece também no "pequeno apocalipse" do Evangelho de Marcos. No capítulo 13, Jesus prevê que seus discípulos serão perseguidos, e a destruição de Jerusalém. De fato, a perseguição aos seguidores de Jesus parece ter começado pouco após sua morte (Paulo, cujas cartas são datadas da década de 50 do primeiro século, iniciara sua carreira como caçador de cristãos) e a cidade sagrada foi arrasada por tropas romanas no ano 70.
Mas, a partir daí, mais uma vez, o faro profético falha: as estrelas não caíram do céu, nem o Sol escureceu, nem Jesus voltou montado numa nuvem para juntar os escolhidos, certamente não antes que a primeira geração de cristãos morresse ("Na verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas aconteçam". Marcos 13:30 -- grifo meu). Essa é uma das linhas de evidência que permite datar o texto de Marcos de por volta do ano 70, ou mais além -- alguns comentaristas especulam que a "previsão" poderia, na verdade, estar se referindo à repressão da revolta de Bar Kochba, já nos anos 130.
O truque -- atribuir a um sábio antigo a "profecia" de fatos que já estão no passado do autor, o que às vezes recebe o charmoso nome latino de vaticinium ex eventu (profecia após o evento) -- ressurge em vários contextos. Apologistas de Nostradamus adoram-no: eles sempre citam como o grande charlatão do século XVI "previu" Napoleão, Hitler ou Hiroshima, antes de lançar o fim do mundo para algum momento mais adequado do futuro. Os "Segredos de Fátima" também se encaixam no mesmo molde, já que as supostas profecias ditadas por Maria às crianças só foram divulgadas décadas após a consumação dos fatos.

Michael Drosnin, do Código da Bíblia, é outro caso. Seu uso do texto bíblico como oráculo parece funcionar bem quando se trata de "pós-dizer" atentados terroristas consumados, mas falhou, por exemplo, quando ofereceu a previsão que a Líbia desenvolveria armas de destruição em massa e atacaria o Ocidente.
E, da Bíblia, chegamos a 2012. Embora haja versões bíblicas defendendo o presente ano para o Grande Acerto de Contas, a fonte mais "quente" invocada pelos anunciadores desta versão específica do fim dos tempos é o Calendário Maia.
Ao contrário de outros autores apocalípticos, os arautos do fim do mundo em 21 de dezembro de 2012, supostamente inspirados pelo sistema maia de contagem do tempo, não parecem atribuir ao povo pré-colombiano nenhuma profecia já realizada (notoriamente, os maias não conseguiram nem prever o colapso de sua própria civilização).
A ideia geral é a de que um dos calendários usados pelos maias -- eles tinham mais de um -- vai "zerar" em 21 de dezembro de 2012, pela primeira vez em 5125 anos. Há quem diga que eles fizeram um calendário onde só cabem 5125 anos porque sabiam, de alguma forma, que não iam precisar de mais anos depois disso. Se os maias tivessem esse tipo de poder precognitivo, no entanto, eles poderiam ter feito um calendário que acabasse lá pelo século 8 EC, quando sua civilização sumiu do mapa.
Quanto ao calendário "zerar", primeiro, nem há garantias de que o dos maias realmente esteja se esgotando (mais sobre isso nesta postagem do Gene Repórter); segundo, se estiver, e daí? As horas do dia zeram a cada 24 horas; os meses do ano zeram em 31 de dezembro. E, graças à regra dos anos bissextos, o calendário gregoriano (o que usamos) tem um ciclo de 400 anos. Por causa desse ciclo, cada dia do mês cai precisamente no mesmo dia da semana em que havia caído 40 décadas atrás (o ano atual, por exemplo, é um clone exato de 1612).
Como esse calendário foi adotado em 1582, já esgotamos um ciclo completo há 30 anos, em 1982 -- ou seja, em 82, "zeramos" todas as diferentes combinações possíveis entre dia da semana e dia do mês. E o mundo não acabou por ali (a menos que se considere a derrota do Brasil para a Itália na Copa... oh wait).
http://carlosorsi.blogspot.com/2012/02/as-marcas-do-apocalipse-de-ontem-e-de.html
SEGUNDA-FEIRA, 13 DE FEVEREIRO DE 2012
As marcas do apocalipse, de ontem e de hoje

"Literatura apocalíptica" é um gênero que se tornou bastante popular nos escritos hebraicos a partir do exílio na Babilônia, iniciado em 587 AEC, depois que o Reino de Judá foi a pique. Trata-se de uma forma literária, ao menos do ponto de vista moral e psicológico, especialmente desprezível, na medida em que cumpre a função mesquinha de satisfazer, por meio da fantasia, o sadismo dos ressentidos.
O texto apocalíptico é, em geral, o produto de um oprimido que sonha em rasgar a jugular e beber o sangue do opressor, mas não vê oportunidade para tanto. Logo, espera que Deus se enfeze e acabe com a palhaçada de uma vez por todas, de preferência com muito choro, ranger de dentes e requintes diversos de crueldade. Parafraseando as categorias nietzschenianas de moral do senhor e moral do escravo, o apocalipse é uma manifestação desenfreada do id do escravo.
A paixão por esse tipo de vendetta escatológica passou dos judeus oprimidos para os cristãos perseguidos, e exemplares não demoraram a achar seu caminho até o cânone no Novo Testamento. Tanto que a palavra "apocalíptico" deriva do Apocalipse de João, último livro da Bíblia cristã. Mas o fato é que João de Patmos, o autor que compôs o texto por volta do ano 100, tinha alguns modelos anteriores sobre os quais trabalhar.
O "tipo ideal" do texto apocalíptico -- do qual, até certo ponto, o livro de João de Patmos se desvia, na verdade -- é marcado por algumas características peculiares, para além de visões catastróficas mediadas por anjos, imagens grotescas, mensagens cifradas e uma grande exultação sadomasoquista no sofrimento generalizado ("E vi um anjo que estava no sol, e clamou com grande voz, dizendo a todas as aves que voavam pelo meio do céu: Vinde, e ajuntai-vos à ceia do grande Deus;/Para que comais a carne dos reis, e a carne dos tribunos, e a carne dos fortes, e a carne dos cavalos e dos que sobre eles se assentam; e a carne de todos os homens, livres e servos, pequenos e grandes". Apocalipse 19:17-18).

Uma dessas características é que se tratam geralmente de trabalhos pseudoepigráficos, isto é, com falsa atribuição de autoria. Da mesma forma que os criadores de mensagens babaquinhas que circulam pela web preferem tomar emprestada a "autoridade" de nomes mais conhecidos, como Veríssimo ou Jabor, a expor seus próprios autógrafos insignificantes, os autores de textos apocalípticos costumam assinar seus trabalhos como se fossem figuras reverenciadas do passado.
Um caso clássico é o Livro de Enoque, literatura apócrifa quer influenciou bastante a redação dos livros do Novo Testamento, originária do período entre os séculos 3-1 AEC. O livro, no entanto, foi atribuído por seus autores desconhecidos a um patriarca bíblico mencionado brevemente no Gênese, o avô de Noé, que teria sido arrebatado aos céus por YHWH. Outro é o Livro de Daniel, atribuído a um profeta do período do exílio, mas na verdade escrito durante a época dos Macabeus, por volta de 165 AEC.

Outra característica, que é a que torna relativamente fácil a tarefa de datar esses escritos, é que eles disfarçam história como profecia. No caso de Daniel, por exemplo -- supostamente escrito no século 6 AEC -- temos uma "profecia correta" de um evento que está no "futuro" no narrador, mas no passado do autor: a derrota do Império Persa por Alexandre Magno.
O narrador também vê corretamente "o futuro" ao prever que a profanação do Templo de Jerusalém durante o tempo dos Selêucidas -- dinastia que se apoderou da Síria, da Palestina e de outros pedaços do Oriente após a fragmentação do império de Alexandre -- durará pouco mais de três anos, ou "mil trezentos e trinta e cinco dias": a profanação (uma estátua de Zeus foi colocada no altar do ciumentíssimo YHWH), feita sob ordem do rei selêucida Antíoco IV, realmente dura de 167 AEC a 163 AEC.
Esse parece ser, portanto, o período aproximado de composição do livro, porque todas as tentativas de previsão de eventos posteriores à reconsagração do templo fracassam fragorosamente. Ao menos, não há registro de que o Império Selêucida tenha sido destruído pelo Arcanjo Miguel, evento seguido, na profecia, por uma ressurreição geral dos mortos e pela instauração do Reino de Deus na Terra.
O mesmo padrão aparece também no "pequeno apocalipse" do Evangelho de Marcos. No capítulo 13, Jesus prevê que seus discípulos serão perseguidos, e a destruição de Jerusalém. De fato, a perseguição aos seguidores de Jesus parece ter começado pouco após sua morte (Paulo, cujas cartas são datadas da década de 50 do primeiro século, iniciara sua carreira como caçador de cristãos) e a cidade sagrada foi arrasada por tropas romanas no ano 70.
Mas, a partir daí, mais uma vez, o faro profético falha: as estrelas não caíram do céu, nem o Sol escureceu, nem Jesus voltou montado numa nuvem para juntar os escolhidos, certamente não antes que a primeira geração de cristãos morresse ("Na verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas aconteçam". Marcos 13:30 -- grifo meu). Essa é uma das linhas de evidência que permite datar o texto de Marcos de por volta do ano 70, ou mais além -- alguns comentaristas especulam que a "previsão" poderia, na verdade, estar se referindo à repressão da revolta de Bar Kochba, já nos anos 130.
O truque -- atribuir a um sábio antigo a "profecia" de fatos que já estão no passado do autor, o que às vezes recebe o charmoso nome latino de vaticinium ex eventu (profecia após o evento) -- ressurge em vários contextos. Apologistas de Nostradamus adoram-no: eles sempre citam como o grande charlatão do século XVI "previu" Napoleão, Hitler ou Hiroshima, antes de lançar o fim do mundo para algum momento mais adequado do futuro. Os "Segredos de Fátima" também se encaixam no mesmo molde, já que as supostas profecias ditadas por Maria às crianças só foram divulgadas décadas após a consumação dos fatos.

Michael Drosnin, do Código da Bíblia, é outro caso. Seu uso do texto bíblico como oráculo parece funcionar bem quando se trata de "pós-dizer" atentados terroristas consumados, mas falhou, por exemplo, quando ofereceu a previsão que a Líbia desenvolveria armas de destruição em massa e atacaria o Ocidente.
E, da Bíblia, chegamos a 2012. Embora haja versões bíblicas defendendo o presente ano para o Grande Acerto de Contas, a fonte mais "quente" invocada pelos anunciadores desta versão específica do fim dos tempos é o Calendário Maia.
Ao contrário de outros autores apocalípticos, os arautos do fim do mundo em 21 de dezembro de 2012, supostamente inspirados pelo sistema maia de contagem do tempo, não parecem atribuir ao povo pré-colombiano nenhuma profecia já realizada (notoriamente, os maias não conseguiram nem prever o colapso de sua própria civilização).
A ideia geral é a de que um dos calendários usados pelos maias -- eles tinham mais de um -- vai "zerar" em 21 de dezembro de 2012, pela primeira vez em 5125 anos. Há quem diga que eles fizeram um calendário onde só cabem 5125 anos porque sabiam, de alguma forma, que não iam precisar de mais anos depois disso. Se os maias tivessem esse tipo de poder precognitivo, no entanto, eles poderiam ter feito um calendário que acabasse lá pelo século 8 EC, quando sua civilização sumiu do mapa.
Quanto ao calendário "zerar", primeiro, nem há garantias de que o dos maias realmente esteja se esgotando (mais sobre isso nesta postagem do Gene Repórter); segundo, se estiver, e daí? As horas do dia zeram a cada 24 horas; os meses do ano zeram em 31 de dezembro. E, graças à regra dos anos bissextos, o calendário gregoriano (o que usamos) tem um ciclo de 400 anos. Por causa desse ciclo, cada dia do mês cai precisamente no mesmo dia da semana em que havia caído 40 décadas atrás (o ano atual, por exemplo, é um clone exato de 1612).
Como esse calendário foi adotado em 1582, já esgotamos um ciclo completo há 30 anos, em 1982 -- ou seja, em 82, "zeramos" todas as diferentes combinações possíveis entre dia da semana e dia do mês. E o mundo não acabou por ali (a menos que se considere a derrota do Brasil para a Itália na Copa... oh wait).