- 23/01/2005
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Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Edi...dg_article_print/1,3916,883962-1719-1,00.html
O paciente chega ao consultório de seu psicólogo. Durante a seção de terapia, recebe uma cápsula de MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina), o princípio ativo contido no ecstasy, droga recreativa freqüentemente associada às raves e ao mundo clubber. Cena surreal? Não para um grupo de 20 pacientes em tratamento de transtorno de estresse pós-traumático. Liderado por Rick Doblin, fundador do Maps (sigla em inglês para Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), o estudo é aplicado a voluntários que sofreram situações envolvendo abuso sexual ou físico, que nunca tinham experimentado ecstasy e que já haviam passado por outros tipos de tratamento sem sucesso. “Quando um paciente tem um trauma, ele fica amedrontado. O MDMA ajuda a liberar as emoções, ajuda as pessoas a aceitarem a si mesmas e sentirem-se mais tranqüilas e sem medo”, explicou Doblin a Galileu.
Dos 20 voluntários, 12 irão receber MDMA e os outros 8 irão ingerir placebo, ou seja, uma cápsula que não contém nenhuma substância medicinal (pode estar recheada de açúcar, por exemplo), mas que pode influenciar psicologicamente no resultado final. Em apenas duas das seções o paciente recebe uma cápsula contendo 125 miligramas de MDMA. Nas outras 15 consultas, o voluntário passa por exames médicos e é submetido a terapia tradicional, sem o uso de nenhum tipo de medicamento. Os voluntários são acompanhados por uma comissão de monitoramento de segurança, formada por psicólogos e médicos, que por enquanto não detectou nenhum efeito colateral ou reação preocupante. Dois meses após a última seção, eles serão examinados novamente. Cinco pacientes já concluíram o tratamento, e Doblin acredita que os resultados serão promissores. Esse é somente um exemplo de uma droga recreativa estudada para fins terapêuticos. Outras substâncias como a psilocibina (encontrada em algumas espécies de cogumelos alucinógenos) e a mescalina (princípio ativo do cacto peiote) aguçam o interesse dos cientistas, que tentam desvendar seus presumidos poderes terapêuticos. Sem falar da maconha, já há alguns anos usada para combater os sintomas do câncer, dores em doenças como artrite e esclerose múltipla e até para tratar o glaucoma.
Rick Doblin começou a estudar a MDMA em 1984. Suas pesquisas foram dificultadas em 1985, quando o ecstasy foi proibido nos Estados Unidos. Foi só em setembro do ano passado que ele conseguiu a aprovação final do governo para colocar em prática seu teste polêmico. O próximo passo de Doblin é conseguir aprovação para uma nova pesquisa sobre a aplicação da MDMA em pacientes com câncer. O objetivo é ajudar a diminuir a ansiedade em doentes terminais. “Conheci um homem que estava morrendo por causa de um câncer com apenas 36 anos. Ele estava tão dopado pelos remédios que parecia já estar morto. Uma única cápsula de MDMA foi o suficiente para que ele acordasse e pudesse passar seus últimos seis dias de vida em companhia da namorada, relembrando os bons momentos de sua vida”, conta Doblin. É uma história comovente, mas nem por isso o trabalho de Doblin deixa de ser duramente criticado. É notório na comunidade científica a rivalidade entre ele e o colega George Ricaurte, da Universidade de Baltimore. Já foi comprovado que altas doses de MDMA podem baixar o nível de serotonina em animais e destruir muitos neurônios. A serotonina está associada a mudanças de humor e afetividade, por isso a maioria das drogas antidepressivas produzem um aumento na produção dessa substância. Se a neurodegeneração acontece também nos humanos, isso ainda não foi verificado cientificamente com segurança. Não obstante, Ricaurte acredita no potencial destrutivo da droga. Uma de suas pesquisas consistiu em analisar a produção de serotonina no fluido cérebro-espinhal de usuários de ecstasy, concluindo que havia uma diminuição de 24% no nível do metabólito, produto da serotonina. O que não significa necessariamente que a queda seja permanente ou que foi realmente causada pela MDMA.
O mapa das drogas terapêuticas
1 - Alguns Estados americanos permitem o uso da maconha para fins terapêuticos, mas a Suprema Corte tenta proibir o consumo definitivamente. O Canadá foi o primeiro país do mundo a liberar a erva para tratamentos médicos. Nos EUA, está em andamento o primeiro estudo sobre o potencial terapêutico de ecstasy, para pacientes de transtorno de estresse pós-traumático
2 - No Brasil é proibido o consumo e venda de substâncias entorpecentes. A erva alucinógena ayahuasca é liberada para uso em cerimônias religiosas do Santo Daime e União do Vegetal. A legislação brasileira diz que a cultura de plantas entorpecentes para fins terapêuticos ou científicos será permitida mediante autorização das autoridades competentes
3 - Holanda e Bélgica permitem o consumo e a venda da maconha livremente. Países como Espanha, Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Dinamarca descriminaram o uso mas não permitem o tráfico. Um estudo espanhol sobre uso de ecstasy em mulheres que sofreram abuso sexual aguarda aprovação das autoridades
4 - O Ministério da Saúde de Israel deve iniciar uma pesquisa sobre tratamentos terapêuticos com ecstasy assim que o experimento americano for concluído
5 - Alguns países muçulmanos, como Marrocos, Líbano, Egito, Síria, Jordânia e Emirados Árabes permitem o consumo de haxixe, derivado da maconha
Balada x consultório
Questionado sobre a segurança de sua pesquisa, Doblin explica que existem diferenças entre a droga ingerida no consultório e a consumida sem acompanhamento médico. “Em uma festa ou rave, as pessoas estão dançando e com o corpo quente (o ecstasy provoca hipertermia, ou seja, aumento da temperatura corporal). Além disso, nem todo o ecstasy usado por aí é pura MDMA, ele pode estar misturado com outras substâncias”, exemplifica Doblin. O médico alerta ainda para o fato de que cientistas já demonstraram que se uma pessoa consome uma quantidade de em média 50 tabletes de ecstasy (contendo cerca de 120 mg de MDMA cada) durante a vida certamente terá sua memória afetada, mas que seus pacientes tomam doses muito menores durante todo o tratamento (500 mg de MDMA no total).
Origem farmacêutica
Ironicamente a MDMA, que é um derivado anfetamínico, foi sintetizado e patenteado em 1914 pela empresa farmacêutica alemã Merck com o propósito de desenvolver um medicamento moderador de apetite. Os estudos foram abandonados até a década de 60, quando a MDMA voltou a chamar a atenção graças ao químico e farmacêutico americano Alexander Shulgin, que passou a exaltar os efeitos da droga, em especial a sua capacidade de remover defesas psicológicas.
Segundo mostra um estudo realizado pelos psicólogos Murilo Battistini e Ana Regina Noto, a farmacêutica Solange Nappo e o médico Elisaldo Carlini, a MDMA apresenta uma mescla atípica de efeitos. Além de promover bem-estar, a droga apresenta alterações na percepção da realidade, propriedades estimulantes, como euforia, agitação e desejo de se comunicar. Entre os efeitos adversos, o ecstasy diminui o apetite, promove taquicardia e ranger de dentes, entre complicações mais graves como hipertermia fulminante, problemas hepáticos, síndrome do pânico, depressão e perdas cognitivas. Essa diversidade de efeitos é decorrente de um complexo mecanismo de ação da MDMA no cérebro e medula espinhal, segundo os autores da pesquisa.
Cogumelos "mágicos" para estimular serotonina
Alucinante
Psilocibina pode atuar como um anti-obssessivo
Uma pesquisa sobre os efeitos da psilocibina (princípio ativo de alguns cogumelos alucinógenos) em pacientes com transtorno obsessivo compulsivo que resistiram a outros tipos de tratamentos está sendo realizada por Francisco Moreno, médico do departamento de psiquiatria da escola de medicina da Universidade do Arizona. Até agora, nove pacientes foram testados. Por enquanto, o objetivo é assegurar que a psilocibina, encontrada em espécies como Psilocybe cubensis e Paneoulus sp., é segura para o organismo. O médico acredita que a droga tenha um potencial anti-obsessivo, por atuar no aumento da produção de serotonina, e espera ainda estabelecer uma relação entre a dose ingerida e os efeitos ao final do estudo. Os cogumelos com propriedades alucinógenas já são conhecidos e usados em rituais há 6 mil anos. Tribos do México, Guatemala e Sibéria o aplicavam em cerimônias religiosas ou para fins terapêuticos. O químico suíço Albert Hofmann, descobridor do LSD (ácido lisérgico), foi a primeira pessoa a extrair a psilocibina dos cogumelos.
Falta de informações
O psiquiatra Charles Grob, da Universidade da Califórnia, publicou em 1996 um teste de segurança da MDMA com 19 voluntários. Desses, dois desenvolveram pressão alta. “Eu acredito que para indivíduos vulneráveis há risco envolvendo o sistema cardiovascular”, afirma Grob. O médico também analisou alguns casos de morte que aparentemente foram causados por arritmias cardíacas provocadas pela droga. “Creio que existem preocupações, mas também acredito que a MDMA deva ser investigada por seu potencial psiquiátrico, especialmente em pacientes que não responderam bem a outros tipos de terapias”, justifica.
Dos rituais mexicanos aos consultórios médicos
Cacto peiote
Mescalina pode ajudar a tratar o alcoolismo
Em 1954, o escritor inglês Aldous Huxley (de “Admirável Mundo Novo”) lançou o livro “As Portas da Percepção”, um relatório de suas experiências com a mescalina, princípio ativo de um cacto conhecido como peiote. Foi o farmacologista alemão Ludwig Lewin quem publicou o primeiro estudo sistemático sobre essa planta, que foi batizada em sua homenagem de Anhalonium lewinii, em 1886. Apesar de ser novidade para a comunidade científica da época, o peiote era velho conhecido dos índios mexicanos e do que é hoje o Sudoeste dos Estados Unidos. “Administrada em doses adequadas, ela modifica mais profundamente a qualidade da percepção que qualquer outra droga à disposição do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos tóxica que as demais”, escreveu Huxley. Atualmente o peiote é usado pela Igreja Nativa Americana (NAC), composta por membros da comunidade indígena, como sacramento. “Essa igreja proíbe o uso de drogas ou álcool. Quando um membro dessa ingere peiote em uma cerimônia, é um uso religioso, portanto não podemos dizer que a NAC usa drogas”, defende o Dr. John Halpern, da escola de medicina de Harvard. Seria o mesmo raciocínio aplicado à ayahuasca (Banisteriopsis caapi), planta encontrada no Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela e utilizada em rituais da igreja do Santo Daime e do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, cujo uso em cerimônias religiosas é permitido por lei. Halpern estuda o uso do peiote entre os nativos americanos para combater alcoolismo e vício em drogas. O médico, que tem um extenso histórico de pesquisa com alucinógenos, defende o uso desse tipo de droga para combater o alcoolismo por ter demonstrado capacidade de reduzir a “fissura” pela bebida, apontada em estudos realizados principalmente nos anos 60 e 70. Halpern espera ainda aprovação para iniciar um trabalho com o peiote para tratar ansiedade em pacientes terminais de câncer, experimento que já vem sendo feito por Charles Grob. ”O tratamento é direcionado primeiramente para a ansiedade, e secundariamente para o humor, dor e qualidade de vida em geral”, enumera Grob.
Outra droga que ainda precisa ser muito estudada é a maconha. Recentemente a Suprema Corte norte-americana questionou o abuso por parte dos pacientes que usam a erva como remédio. O debate pode até levar a uma proibição do consumo da droga. Os pacientes de doenças como câncer protestam, alegando que, para eles, nenhum outro medicamento funcionou tão bem quanto a canabis.
Em contrapartida, um estudo pioneiro sobre a segurança do uso médico da maconha em pacientes com dores crônicas foi lançado no mês passado no Canadá pela Universidade McGill. A pesquisa envolve 1.400 pacientes em tratamento de lesões na medula espinhal, esclerose múltipla e artrite, sendo que 350 já usam a maconha para aliviar suas dores. Os cientistas pretendem verificar se a maconha afeta os rins, fígado, coração, pulmão e níveis de hormônio, e ainda farão testes cognitivos.
A eterna polêmica
As autoridades governamentais vivem em conflito com os defensores do uso da maconha (Cannabis sativa) para fins terapêuticos, resultando em um vai- e-vem de liberações e proibições. É um debate eterno sobre os prós e contras da erva, defendidos por diferentes opiniões.
O médico Rogério Brandão, presidente da regional Nordeste da Sociedade Brasileira de Oncologia, é totalmente contra o uso da maconha para o tratamento de sintomas do câncer. Ele cita o Marinol, um medicamento importado derivado do THC (tetrahidrocanabinol), princípio ativo da maconha, que tem propriedade anti-emética, ou seja, combate náuseas e vômitos, efeitos colaterais da quimioterapia. “Existem remédios mais potentes do que esse, não há necessidade de usar o medicamento à base de THC”, defende Brandão. Ele explica que o THC atua no sistema nervoso central, podendo causar danos para o cérebro a longo prazo. Para os pacientes que fumam maconha o problema é agravado, para Brandão, já que com a erva o fumante aspira monóxido de carbono.
O oftalmologista Paulo Augusto de Arruda Mello, professor da Unifesp, também não se entusiasma com as propriedades medicinais da maconha aplicadas ao glaucoma.
A enfermidade consiste em uma série de doenças, cujo maior fator de risco é o aumento da pressão intra-ocular, que pode causar lesões no nervo óptico. O THC tem a capacidade de reduzir a pressão intra-ocular, porém também diminui a pressão sanguínea, ou seja, melhora um aspecto para piorar outro. “A maconha simplesmente não atinge os resultados terapêuticos esperados”, conclui Mello. Outro problema apontado por ele é a dificuldade de controlar a quantidade de THC no organismo, tornando quase impossível determinar qual dose seria segura e eficiente. Mesmo assim, alguns especialistas defendem que a erva seja melhor avaliada. “Recentemente saiu um estudo dizendo que maconha poderia causar esquizofrenia, mas a conclusão foi arbitrária e contraditória, não estando de acordo nem mesmo com a pesquisa realizada”, opina o psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Unifesp e fundador do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes). “Sou a favor da pesquisa para fins terapêuticos.
Em um estudo-piloto com usuários de crack, observei que a maconha os ajudou a largar a dependência. No estágio atual de conhecimento, ainda não podemos afirmar que a maconha deve ou não ser liberada para fins médicos”, conclui Xavier.
“Não dá para se posicionar contra pesquisas envolvendo drogas recreativas aplicadas em tratamentos médicos”, acredita o psiquiatra Dartiu Xavier. “Ainda faltam muitos estudos, mas caso tratamentos convencionais não funcionem em um determinado paciente, drogas como maconha e ecstasy podem eventualmente ser uma alternativa”, conclui.
O paciente chega ao consultório de seu psicólogo. Durante a seção de terapia, recebe uma cápsula de MDMA (3,4-metilenodioximetanfetamina), o princípio ativo contido no ecstasy, droga recreativa freqüentemente associada às raves e ao mundo clubber. Cena surreal? Não para um grupo de 20 pacientes em tratamento de transtorno de estresse pós-traumático. Liderado por Rick Doblin, fundador do Maps (sigla em inglês para Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), o estudo é aplicado a voluntários que sofreram situações envolvendo abuso sexual ou físico, que nunca tinham experimentado ecstasy e que já haviam passado por outros tipos de tratamento sem sucesso. “Quando um paciente tem um trauma, ele fica amedrontado. O MDMA ajuda a liberar as emoções, ajuda as pessoas a aceitarem a si mesmas e sentirem-se mais tranqüilas e sem medo”, explicou Doblin a Galileu.
Dos 20 voluntários, 12 irão receber MDMA e os outros 8 irão ingerir placebo, ou seja, uma cápsula que não contém nenhuma substância medicinal (pode estar recheada de açúcar, por exemplo), mas que pode influenciar psicologicamente no resultado final. Em apenas duas das seções o paciente recebe uma cápsula contendo 125 miligramas de MDMA. Nas outras 15 consultas, o voluntário passa por exames médicos e é submetido a terapia tradicional, sem o uso de nenhum tipo de medicamento. Os voluntários são acompanhados por uma comissão de monitoramento de segurança, formada por psicólogos e médicos, que por enquanto não detectou nenhum efeito colateral ou reação preocupante. Dois meses após a última seção, eles serão examinados novamente. Cinco pacientes já concluíram o tratamento, e Doblin acredita que os resultados serão promissores. Esse é somente um exemplo de uma droga recreativa estudada para fins terapêuticos. Outras substâncias como a psilocibina (encontrada em algumas espécies de cogumelos alucinógenos) e a mescalina (princípio ativo do cacto peiote) aguçam o interesse dos cientistas, que tentam desvendar seus presumidos poderes terapêuticos. Sem falar da maconha, já há alguns anos usada para combater os sintomas do câncer, dores em doenças como artrite e esclerose múltipla e até para tratar o glaucoma.
Rick Doblin começou a estudar a MDMA em 1984. Suas pesquisas foram dificultadas em 1985, quando o ecstasy foi proibido nos Estados Unidos. Foi só em setembro do ano passado que ele conseguiu a aprovação final do governo para colocar em prática seu teste polêmico. O próximo passo de Doblin é conseguir aprovação para uma nova pesquisa sobre a aplicação da MDMA em pacientes com câncer. O objetivo é ajudar a diminuir a ansiedade em doentes terminais. “Conheci um homem que estava morrendo por causa de um câncer com apenas 36 anos. Ele estava tão dopado pelos remédios que parecia já estar morto. Uma única cápsula de MDMA foi o suficiente para que ele acordasse e pudesse passar seus últimos seis dias de vida em companhia da namorada, relembrando os bons momentos de sua vida”, conta Doblin. É uma história comovente, mas nem por isso o trabalho de Doblin deixa de ser duramente criticado. É notório na comunidade científica a rivalidade entre ele e o colega George Ricaurte, da Universidade de Baltimore. Já foi comprovado que altas doses de MDMA podem baixar o nível de serotonina em animais e destruir muitos neurônios. A serotonina está associada a mudanças de humor e afetividade, por isso a maioria das drogas antidepressivas produzem um aumento na produção dessa substância. Se a neurodegeneração acontece também nos humanos, isso ainda não foi verificado cientificamente com segurança. Não obstante, Ricaurte acredita no potencial destrutivo da droga. Uma de suas pesquisas consistiu em analisar a produção de serotonina no fluido cérebro-espinhal de usuários de ecstasy, concluindo que havia uma diminuição de 24% no nível do metabólito, produto da serotonina. O que não significa necessariamente que a queda seja permanente ou que foi realmente causada pela MDMA.
O mapa das drogas terapêuticas
1 - Alguns Estados americanos permitem o uso da maconha para fins terapêuticos, mas a Suprema Corte tenta proibir o consumo definitivamente. O Canadá foi o primeiro país do mundo a liberar a erva para tratamentos médicos. Nos EUA, está em andamento o primeiro estudo sobre o potencial terapêutico de ecstasy, para pacientes de transtorno de estresse pós-traumático
2 - No Brasil é proibido o consumo e venda de substâncias entorpecentes. A erva alucinógena ayahuasca é liberada para uso em cerimônias religiosas do Santo Daime e União do Vegetal. A legislação brasileira diz que a cultura de plantas entorpecentes para fins terapêuticos ou científicos será permitida mediante autorização das autoridades competentes
3 - Holanda e Bélgica permitem o consumo e a venda da maconha livremente. Países como Espanha, Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Dinamarca descriminaram o uso mas não permitem o tráfico. Um estudo espanhol sobre uso de ecstasy em mulheres que sofreram abuso sexual aguarda aprovação das autoridades
4 - O Ministério da Saúde de Israel deve iniciar uma pesquisa sobre tratamentos terapêuticos com ecstasy assim que o experimento americano for concluído
5 - Alguns países muçulmanos, como Marrocos, Líbano, Egito, Síria, Jordânia e Emirados Árabes permitem o consumo de haxixe, derivado da maconha
Balada x consultório
Questionado sobre a segurança de sua pesquisa, Doblin explica que existem diferenças entre a droga ingerida no consultório e a consumida sem acompanhamento médico. “Em uma festa ou rave, as pessoas estão dançando e com o corpo quente (o ecstasy provoca hipertermia, ou seja, aumento da temperatura corporal). Além disso, nem todo o ecstasy usado por aí é pura MDMA, ele pode estar misturado com outras substâncias”, exemplifica Doblin. O médico alerta ainda para o fato de que cientistas já demonstraram que se uma pessoa consome uma quantidade de em média 50 tabletes de ecstasy (contendo cerca de 120 mg de MDMA cada) durante a vida certamente terá sua memória afetada, mas que seus pacientes tomam doses muito menores durante todo o tratamento (500 mg de MDMA no total).
Origem farmacêutica
Ironicamente a MDMA, que é um derivado anfetamínico, foi sintetizado e patenteado em 1914 pela empresa farmacêutica alemã Merck com o propósito de desenvolver um medicamento moderador de apetite. Os estudos foram abandonados até a década de 60, quando a MDMA voltou a chamar a atenção graças ao químico e farmacêutico americano Alexander Shulgin, que passou a exaltar os efeitos da droga, em especial a sua capacidade de remover defesas psicológicas.
Segundo mostra um estudo realizado pelos psicólogos Murilo Battistini e Ana Regina Noto, a farmacêutica Solange Nappo e o médico Elisaldo Carlini, a MDMA apresenta uma mescla atípica de efeitos. Além de promover bem-estar, a droga apresenta alterações na percepção da realidade, propriedades estimulantes, como euforia, agitação e desejo de se comunicar. Entre os efeitos adversos, o ecstasy diminui o apetite, promove taquicardia e ranger de dentes, entre complicações mais graves como hipertermia fulminante, problemas hepáticos, síndrome do pânico, depressão e perdas cognitivas. Essa diversidade de efeitos é decorrente de um complexo mecanismo de ação da MDMA no cérebro e medula espinhal, segundo os autores da pesquisa.
Cogumelos "mágicos" para estimular serotonina
Alucinante
Psilocibina pode atuar como um anti-obssessivo
Uma pesquisa sobre os efeitos da psilocibina (princípio ativo de alguns cogumelos alucinógenos) em pacientes com transtorno obsessivo compulsivo que resistiram a outros tipos de tratamentos está sendo realizada por Francisco Moreno, médico do departamento de psiquiatria da escola de medicina da Universidade do Arizona. Até agora, nove pacientes foram testados. Por enquanto, o objetivo é assegurar que a psilocibina, encontrada em espécies como Psilocybe cubensis e Paneoulus sp., é segura para o organismo. O médico acredita que a droga tenha um potencial anti-obsessivo, por atuar no aumento da produção de serotonina, e espera ainda estabelecer uma relação entre a dose ingerida e os efeitos ao final do estudo. Os cogumelos com propriedades alucinógenas já são conhecidos e usados em rituais há 6 mil anos. Tribos do México, Guatemala e Sibéria o aplicavam em cerimônias religiosas ou para fins terapêuticos. O químico suíço Albert Hofmann, descobridor do LSD (ácido lisérgico), foi a primeira pessoa a extrair a psilocibina dos cogumelos.
Falta de informações
O psiquiatra Charles Grob, da Universidade da Califórnia, publicou em 1996 um teste de segurança da MDMA com 19 voluntários. Desses, dois desenvolveram pressão alta. “Eu acredito que para indivíduos vulneráveis há risco envolvendo o sistema cardiovascular”, afirma Grob. O médico também analisou alguns casos de morte que aparentemente foram causados por arritmias cardíacas provocadas pela droga. “Creio que existem preocupações, mas também acredito que a MDMA deva ser investigada por seu potencial psiquiátrico, especialmente em pacientes que não responderam bem a outros tipos de terapias”, justifica.
Dos rituais mexicanos aos consultórios médicos
Cacto peiote
Mescalina pode ajudar a tratar o alcoolismo
Em 1954, o escritor inglês Aldous Huxley (de “Admirável Mundo Novo”) lançou o livro “As Portas da Percepção”, um relatório de suas experiências com a mescalina, princípio ativo de um cacto conhecido como peiote. Foi o farmacologista alemão Ludwig Lewin quem publicou o primeiro estudo sistemático sobre essa planta, que foi batizada em sua homenagem de Anhalonium lewinii, em 1886. Apesar de ser novidade para a comunidade científica da época, o peiote era velho conhecido dos índios mexicanos e do que é hoje o Sudoeste dos Estados Unidos. “Administrada em doses adequadas, ela modifica mais profundamente a qualidade da percepção que qualquer outra droga à disposição do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos tóxica que as demais”, escreveu Huxley. Atualmente o peiote é usado pela Igreja Nativa Americana (NAC), composta por membros da comunidade indígena, como sacramento. “Essa igreja proíbe o uso de drogas ou álcool. Quando um membro dessa ingere peiote em uma cerimônia, é um uso religioso, portanto não podemos dizer que a NAC usa drogas”, defende o Dr. John Halpern, da escola de medicina de Harvard. Seria o mesmo raciocínio aplicado à ayahuasca (Banisteriopsis caapi), planta encontrada no Brasil, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela e utilizada em rituais da igreja do Santo Daime e do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, cujo uso em cerimônias religiosas é permitido por lei. Halpern estuda o uso do peiote entre os nativos americanos para combater alcoolismo e vício em drogas. O médico, que tem um extenso histórico de pesquisa com alucinógenos, defende o uso desse tipo de droga para combater o alcoolismo por ter demonstrado capacidade de reduzir a “fissura” pela bebida, apontada em estudos realizados principalmente nos anos 60 e 70. Halpern espera ainda aprovação para iniciar um trabalho com o peiote para tratar ansiedade em pacientes terminais de câncer, experimento que já vem sendo feito por Charles Grob. ”O tratamento é direcionado primeiramente para a ansiedade, e secundariamente para o humor, dor e qualidade de vida em geral”, enumera Grob.
Outra droga que ainda precisa ser muito estudada é a maconha. Recentemente a Suprema Corte norte-americana questionou o abuso por parte dos pacientes que usam a erva como remédio. O debate pode até levar a uma proibição do consumo da droga. Os pacientes de doenças como câncer protestam, alegando que, para eles, nenhum outro medicamento funcionou tão bem quanto a canabis.
Em contrapartida, um estudo pioneiro sobre a segurança do uso médico da maconha em pacientes com dores crônicas foi lançado no mês passado no Canadá pela Universidade McGill. A pesquisa envolve 1.400 pacientes em tratamento de lesões na medula espinhal, esclerose múltipla e artrite, sendo que 350 já usam a maconha para aliviar suas dores. Os cientistas pretendem verificar se a maconha afeta os rins, fígado, coração, pulmão e níveis de hormônio, e ainda farão testes cognitivos.
A eterna polêmica
As autoridades governamentais vivem em conflito com os defensores do uso da maconha (Cannabis sativa) para fins terapêuticos, resultando em um vai- e-vem de liberações e proibições. É um debate eterno sobre os prós e contras da erva, defendidos por diferentes opiniões.
O médico Rogério Brandão, presidente da regional Nordeste da Sociedade Brasileira de Oncologia, é totalmente contra o uso da maconha para o tratamento de sintomas do câncer. Ele cita o Marinol, um medicamento importado derivado do THC (tetrahidrocanabinol), princípio ativo da maconha, que tem propriedade anti-emética, ou seja, combate náuseas e vômitos, efeitos colaterais da quimioterapia. “Existem remédios mais potentes do que esse, não há necessidade de usar o medicamento à base de THC”, defende Brandão. Ele explica que o THC atua no sistema nervoso central, podendo causar danos para o cérebro a longo prazo. Para os pacientes que fumam maconha o problema é agravado, para Brandão, já que com a erva o fumante aspira monóxido de carbono.
O oftalmologista Paulo Augusto de Arruda Mello, professor da Unifesp, também não se entusiasma com as propriedades medicinais da maconha aplicadas ao glaucoma.
A enfermidade consiste em uma série de doenças, cujo maior fator de risco é o aumento da pressão intra-ocular, que pode causar lesões no nervo óptico. O THC tem a capacidade de reduzir a pressão intra-ocular, porém também diminui a pressão sanguínea, ou seja, melhora um aspecto para piorar outro. “A maconha simplesmente não atinge os resultados terapêuticos esperados”, conclui Mello. Outro problema apontado por ele é a dificuldade de controlar a quantidade de THC no organismo, tornando quase impossível determinar qual dose seria segura e eficiente. Mesmo assim, alguns especialistas defendem que a erva seja melhor avaliada. “Recentemente saiu um estudo dizendo que maconha poderia causar esquizofrenia, mas a conclusão foi arbitrária e contraditória, não estando de acordo nem mesmo com a pesquisa realizada”, opina o psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Unifesp e fundador do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes). “Sou a favor da pesquisa para fins terapêuticos.
Em um estudo-piloto com usuários de crack, observei que a maconha os ajudou a largar a dependência. No estágio atual de conhecimento, ainda não podemos afirmar que a maconha deve ou não ser liberada para fins médicos”, conclui Xavier.
“Não dá para se posicionar contra pesquisas envolvendo drogas recreativas aplicadas em tratamentos médicos”, acredita o psiquiatra Dartiu Xavier. “Ainda faltam muitos estudos, mas caso tratamentos convencionais não funcionem em um determinado paciente, drogas como maconha e ecstasy podem eventualmente ser uma alternativa”, conclui.