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Reflexões Sobre a Felicidade

zappa

Cogumelo maduro
Cadastrado
05/01/2008
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SOBRE A FELICIDADE
Pierre Teilhard de Chardin

Conferência feita em Pequim,
em 28 de dezembro de 1943.

Tradução de Alaíde Inah González

REFLEXÕES SOBRE A FELICIDADE

Assim como no mundo da matéria mecanizada, todos os corpos obedecem às leis de uma gravitação universal, também, no mundo da matéria vitalizada, todos os seres organizados, mesmo os mais inferiores, orientam-se e deslocam-se na direção que lhes traga o máximo de bem-estar.

Tratar a respeito da felicidade deveria, pois, ser a mais fácil das tarefas para um conferencista. Um ser vivo, falando a outros seres vivos, não estaria seguro de dirigir-se apenas a convictos e iniciados? Bem mais delicada e complexa se revela, na experiência, a tarefa que empreendo, hoje, diante de vós.

Como todos os demais seres animados, sem dúvida, o Homem deseja, essencialmente, ser feliz. Mas essa exigência fundamental toma, nele, uma forma complexa e nova. O Homem, com efeito, não é apenas um ser vivo mais sensível e mais vibrante que os outros. Ora, esse dom da reflexão traz consigo duas propriedades indubitáveis, quero dizer, a percepção do possível e a percepção do futuro, duplo poder cuja aparição basta para lançar a dúvida e a dispersão na escalada, tão coerente e límpida, até então, da vida. A percepção do possível e a percepção do futuro, uma e outra se conjugam para tornar inexauríveis e para dispersar, em todo sentido, tanto nossos temores como nossas esperanças… Onde o animal não parece encontrar dificuldades para avançar, infalivelmente, em direção ao que possa satisfazê-lo, o Homem, este, vê, a cada passo e em cada direção, um problema, para o qual não cessou desde que é Homem, de buscar, sem sucesso, uma solução definitiva e universal.

“De vita beata” , como diziam já os antigos, Que é a felicidade?

Sobre esse assunto, os livros, as pesquisas, as experiências individuais e coletivas se sucedem, pateticamente, desde séculos, sem chegar à unanimidade. E, ao fim das contas, para muitos de nós, a conclusão prática de todos esses debates é a de que vão pesquisar mais. Ou bem o problema é insolúvel: não existe verdadeira felicidade neste mundo. Ou bem ele comporta apenas uma infinidade de soluções particulares: é indeterminado. Ser feliz: assunto de apreciação pessoal. Vós gostais de vinho e da boa carne. Eu prefiro os automóveis, a poesia ou a beneficência: “A cada um, seus gostos, e a cada um, sua chance”. Eis o que certamente ouvistes dizer muitas vezes: e eis, talvez, também, um pouco do que pensais.


É diretamente contra esse ceticismo relativista, e finalmente pessimista de nossos contemporâneos, que me proponho ir, esta noite, mostrando-vos que, mesmo para o Homem, a direção geral da felicidade não é, absolutamente, tão equivoca como querem apresentá-la, já que, todavia, limitando nossa “enquête” à procura das alegrias essenciais, nós nos apoiamos, em nossa pesquisa, nos ensinamentos da Ciência e da Biologia.
Já que não posso, infelizmente, dar-vos a felicidade, possa ao menos vos ajudar a encontrá-la. Duas partes formarão esta exposição.

Na primeira, sobretudo teórica, tentaremos definir juntos, qual a melhor estrada que conduz à felicidade humana. Na segunda, que servirá de conclusão, nós nos perguntaremos como conformar nossas vidas individuais a esses eixos gerais do tornar-se feliz.

- Os eixos teóricos da felicidade

a) Na origem do problema: Três atitudes diferentes em face da vida

A fim de melhor compreender como se coloca, para nós, o problema da felicidade, e porque, diante dele, somos levados a hesitar, é indispensável, para começar, fazer uma síntese, isto é, distinguir três atitudes iniciais, fundamentais adotadas, de fato, pelos homens em face da Vida. Guiemo-nos, se o preferirdes, por uma comparação.

Suponhamos alguns excursionistas que hajam partido para a escalada de um cume difícil; e consideremos seu grupo algumas horas depois da partida. Nesse momento, podemos imaginar que a equipe se divida em três espécies de elementos. Uns lamentam haver deixado o abrigo. O cansaço, os perigos lhes parecem em desproporção com o interesse do sucesso. Decidem voltar atrás.

Os outros não estão aborrecidos por haverem partido. O sol brilha, a vista é bela. Mas por que subir mais alto? Não seria melhor apreciar a montanha dali onde se encontram, em plena planície, ou em pleno bosque? E eles se estendem sobre a relva, ou exploram os arredores, esperando a hora do piquenique.

Outros enfim, os verdadeiros alpinistas, não afastam seus olhos dos cumes que juraram atingir. E tornam a partir para frente.

Os cansados; os “bon vivants”; os ardentes. Três tipos de Homens que trazemos em germe, cada um no fundo de nós mesmos, e entre os quais, de fato, a Humanidade, ao nosso redor, se divide, desde sempre.

1 – Os cansados (ou os pessimistas), primeiramente.

Para esta primeira categoria de homens, a existência é um erro ou um engano. Nós nos engajamos mal, e, em decorrência, procuramos, o mais habilmente possível, sair do jogo.
Levada ao extremo e sistematizada em doutrina erudita, essa atitude conduz à sabedoria hindu, para quem o Universo é uma ilusão e uma cadeia, ou a um pessimismo “shopenhauriano”.




Mas sob uma forma atenuada e comum, a mesma disposição aparece e se trai em uma quantidade de julgamentos práticos que conheceis muito bem. “Por que pesquisar?”… Por que não deixar os selvagens na sua selvageria e os ignorantes na sua ignorância? Por que a Ciência e por que a Máquina? Não estamos melhor deitados que em pé? Mortos que deitados? Tudo isso leva a concluir, ao menos implicitamente, que é preferível ser menos que ser mais, e que o melhor mesmo seria não ser, absolutamente.

2 – Os “bon vivants” (ou os hedonistas) em seguida.

Para os homens dessa segunda espécie, é preferível, certamente, ser a não ser. Mas “ser”, tomemos cuidado, toma, então um sentido muito particular. Ser, viver, para os discípulos dessa escola, não é agir, mas fartar-se do instante presente. Gozar cada momento e cada coisa, ciumentamente, sem nada deixar perder, e, sobretudo, sem se preocupar em mudar de plano: nisso consiste a sabedoria. Que venha a saciedade, nós nos volveremos sobre a relva, estiraremos as pernas, mudaremos de ponto de vista; e, ao fazer isso, além do mais, não nos privaremos de descer. Mas, para e sobre o futuro, não arriscaremos nada, a menos que, por um excesso de refinamento, nós nos intoxiquemos em usufruir o risco por ele mesmo, seja para experimentar o frêmito de ousar ou para sentir o arrepio de ter medo.

Assim nós nos representamos, de uma forma simplista, o antigo hedonismo pagão da escola de Epicuro. Tal era, em todo caso, não há muito tempo, nos círculos literários a tendência de um Paul Morand, ou a de um Montherlant, ou, muito mais sutil, a de um Gide (aquele de Nourritures Terrestres), para quem o ideal da vida é beber sem jamais estancar sua sede (mas antes de maneira a aumentá-la), nunca com a idéia de retomar forças, mas pelo cuidado de estar pronto a se curvar, sempre mais avidamente, sobre toda fonte nova.

3 – Os ardentes, finalmente.

Quero dizer, aqueles para quem viver é uma ascensão e uma descoberta. Não somente para os homens que formam essa terceira categoria é preferível ser a não ser, mas ainda é sempre possível, e unicamente interessante, tornar-se mais. Aos olhos desses conquistadores possuídos pela aventura, o ser é inesgotável, não à maneira gideana, como um cristal de facetas inumeráveis, que podemos voltar em todos os sentidos sem nos cansarmos, mas como uma fonte de calor e de luz, da qual nos podemos aproximar sempre mais. Podemos zombar desses homens, tratá-los como ingênuos, ou achá-los incômodos. Entretanto, são eles que nos fizeram e é deles que se apronta para surgir a Terra de amanhã.
Pessimismo e volta ao passado; gozo do momento presente; entusiasmo em direção ao futuro. Três atitudes fundamentais, como eu dizia, em face da Vida. E, em seguida, inevitavelmente, eis-nos diante do âmago de nosso assunto – três formas opostas de felicidade.




[FONT=&quot]* [/FONT]Felicidade de tranqüilidade, primeiramente. Nada de aborrecimentos, nada de riscos, nada de esforços. Diminuamos os contatos, restrinjamos nossas necessidades, baixemos nossas luzes, endureçamos nossa epiderme, reentremos em nossa concha. O homem feliz será aquele que pensar, sentir e desejar o mínimo.


[FONT=&quot]* [/FONT]Felicidade de prazer, em seguida, prazer imóvel, ou melhor ainda, prazer incessantemente renovado. O objetivo da vida não é agir e criar, mas aproveitar. Logo, menos esforço ainda, ou apenas o esforço necessário para mudar de copo de bebida. Distender-se o mais possível, como a folha aos raios do sol, variar a cada instante de posição para sentir melhor: eis a receita da felicidade. O homem feliz será aquele que souber saborear, o mais completamente possível, o instante que tem entre as mãos.


[FONT=&quot]* [/FONT]Felicidade de crescimento enfim. Desse terceiro ponto de vista, a felicidade não existe nem vale por si mesma, como um objeto que pudéssemos perseguir e captar em si mesmo, mas é apenas o sinal, o efeito, e como que a recompensa da ação convenientemente dirigida. “Um subproduto do esforço”, diz, em algum lugar, A. Huxley. Não é bastante, pois, como sugere o hedonismo moderno, nós nos renovarmos não importa como, para sermos. O homem feliz é, pois aquele que sem buscar diretamente a felicidade, encontra inevitavelmente a alegria, por acréscimo no ato de chegar à plenitude e ao fim de si mesmo, avançando.



Felicidade de tranqüilidade; felicidade de prazer; felicidade de desenvolvimento.
Entre essas três linhas de marcha, a Vida, ao nível do Homem, hesita e divide a sua corrente, sob nossos olhos. Para motivar nossa escolha, haveria apenas verdadeiramente, como se repete por aí, uma preferência individual de gosto ou de temperamento? Ou podemos encontrar, em alguma parte, uma razão, indiscutível porque objetiva, para decidir que um dos três caminhos é absolutamente o melhor e, por conseqüência, o único que pode autenticamente tornar-nos felizes?

a) A resposta dos fatos

1 – Solução geral: rumo a maior Consciência.

Estou absolutamente convencido, de minha parte, de que um tal critério indiscutível e objetivo, existe, não misterioso e escondido, mas claro para todos os olhos; e creio que, para percebê-lo, basta-nos olhar, em redor de nós, a Natureza, à luz das últimas conquistas da Física e da Biologia, isto é, à luz de nossas idéias novas sobre o grande fenômeno da Evolução.
Ninguém, como sabeis, duvida mais seriamente disso, hoje em dia. O Universo não está fixo “ontologicamente”, mas se move, desde sempre, no mais profundo de sua massa interior, seguindo duas grandes correntes contrárias: uma que arrasta a Matéria para estados de desagregação extrema, outra de que resulta a edificação de unidades orgânicas, cujos tipos superiores, astronomicamente complexos, formam o que chamamos “o mundo vivo”. Isso posto, consideremos, mais particularmente, a segunda dessas correntes, isto é, a da vida, à qual pertencemos.

Durante cerca de um século, os sábios, apesar de admitirem a realidade de uma Evolução biológica, discutiram para saber se o movimento que nos conduz é apenas uma espécie de torvelinho circular fechado, ou se ele corresponde a uma deriva definida que leva a fração animada do Mundo a algum estado superior determinado. Ora, hoje, em dia, é a segunda dessas hipóteses que, na opinião quase unânime, parece decididamente corresponder à realidade. A Vida não se torna complexa sem leis, e como que por acaso. Mas, tomada tanto em seu conjunto, como no detalhe dos seres organizados, ela progride metodicamente, irreversivelmente, para estados de consciência cada vez mais elevados. De maneira que a aparição final, e muito recente, do Homem sobre a Terra é apenas o resultado, regular e lógico, de um “processus” esboçado desde as origens do nosso planeta.

Historicamente a Vida (isto é, de fato, o próprio Universo, tomado em sua porção mais ativa) é uma elevação de Consciência. Não percebeis, imediatamente, a conseqüência direta dessa proposição sobre nossa atitude e nossa conduta interiores? Dissertamos, a perder de vista, dizia eu, há um instante, sobre a melhor atitude a tornar, em face de nossas vidas. Mas, fazendo isso, não estamos parecendo como um viajante que, conduzido por um trem rápido entre Paris e Marselha, se perguntasse, ainda, se é para o Norte ou o Sul que lhe seria preferível ir? Nós discutimos para que, uma vez que a decisão foi tomada fora de nós, e já embarcamos? Desde mais de quatrocentos milhões de anos sobre a nossa Terra (seria mais exato dizer: desde sempre, no Universo) a imensa massa de seres da qual nós fazemos parte se eleva, tenazmente, incansavelmente, em direção a mais liberdade, mais sensibilidade, mais visão interior: e nós perguntamos, ainda, onde é preciso ir?…

Na verdade, à luz das grandes leis cósmicas, a sombra dos falsos problemas se desvanece. Sob pena de contradição física (isto é, sob pena de negar tudo aquilo que somos e tudo aquilo que nos fez), só podemos adotar, para cada um de nós, a escolha primordial implícita no Mundo do qual somos os elementos refletidos. Recuar para ser menos, parar para gozar esses dois gestos, pelos quais procuraríamos navegar contra a corrente da onda universal, aparecem como absurdas impossibilidades.

Assim, à esquerda e à direita, as estradas se fecham e só resta aberta a saída para frente.
Cientifica e objetivamente, a única resposta possível aos apelos da vida é a marcha do progresso. E, em seguida, cientifica e objetivamente também, a única verdadeira felicidade é a que chamamos a felicidade de crescimento ou de movimento.

Como e com o Mundo, queremos, pois, ser felizes? Deixemos os cansados e os pessimistas escorregar para trás. Deixemos os hedonistas alongar-se burguesmente sobre a encosta. E juntemo-nos, sem hesitar, ao grupo daqueles que querem arriscar a ascensão até o último cume. Avante!…

Mas não é bastante haver optado pela ascensão. Resta, ainda, não se enganar de trilha. Está muito bem se levantar para partir. Mas para ganhar o cume com alegria, qual é o bom caminho? Aqui, ainda, de maneira a permanecer em um terreno sólido, observemos as marchas da Natureza, interroguemos as ciências da Vida.

2 – Solução detalhada: os três tempos da personalização

No mundo, eu dizia, a Vida se eleva no sentido de sempre mais consciência, para sempre mais e maior complexidade, como se a complexidade crescente dos organismos tivesse por efeito, aprofundar o centro de seu ser. Ora, como se opera, de fato e em detalhe, essa marcha em direção à mais alta unidade?

Para maior clareza, e simplicidade, limitemo-nos ao caso do Homem – O Homem, o mais elevado psiquicamente e, para nós, o mais conhecido também de todos os seres vivos. Três fases, três passos, três movimentos sucessivos e conjugados são reconhecíveis, a um exame, no “processus” de nossa unificação interior, isto é, de nossa personalização. Para ser plenamente ele mesmo e vivo, o Homem deve:

1) Centrar-se sobre si.
2) Descentrar-se sobre o “outro”.
3) Sobrecentrar-se sobre algo maior do que ele mesmo.

Definamos e expliquemos, um após o outro, esses três movimentos para frente, aos quais ( já que a felicidade, nós o decidimos, é um efeito do crescimento) devem necessariamente corresponder três formas do tornar-se feliz.

1) Centrar-se primeiramente. Não só fisicamente, mas intelectual e moralmente. O homem só é Homem desde que se cultive. E não somente até a idade de 20 anos!… Para ser plenamente nós mesmos, devemos, pois trabalhar durante toda a nossa vida para organizar-nos, isto é, para trazer cada vez mais ordem, mais unidade às nossas idéias, nossos sentimentos, nossa conduta. Todo o programa, aqui, todo o interesse (mas também todo o esforço) da vida interior, com sua deriva inevitável em direção a objetivos cada vez mais espirituais, cada vez mais elevados… Cada um de nós, ao curso dessa primeira fase, tem que retomar e repetir, para sua conta pessoal, a lida geral da Vida. Ser é, primeiramente, fazer-se e se encontrar.
2) Descentrar-se em seguida. A tentação ou ilusão elementar que ameaça, desde o seu nascimento, o centro refletido que abrigamos, cada um no fundo de nós, seria a de imaginar-se que, para crescer, importa isolar-se e perseguir, egoisticamente, em si só, o trabalho original de seu aperfeiçoamento: separar-se dos outros, ou tudo trazer para si. Ora, não há apenas um único homem sobre a Terra. Há, ao contrário, e só pode haver uma miríade deles, ao mesmo tempo. Este fato é de uma evidência banal. E, entretanto, recolocado nas perspectivas gerais da física, toma uma importância capital, pois significa, muito simplesmente, que, por mais individualizados, por natureza, que sejam os seres pensantes, cada homem apenas representa, ainda, um átomo, ou se o preferirdes, uma molécula muito grande, com todas as outras semelhantes, num sistema corpuscular definido, do qual ele não pode escapar. Fisicamente, biologicamente, o Homem, como tudo que existe na Natureza, é essencialmente plural. Ele corresponde a um “fenômeno de massa”. Isso quer dizer, à primeira vista, que não podemos progredir até o fim de nós mesmos, sem sair de nós mesmos, mas unindo-nos aos outros, de maneira a desenvolver por essa união, um acréscimo de consciência – de acordo com a grande Lei de Complexidade. Daí as urgências, daí o sentido profundo do amor, que, sob todas as suas formas, nos impele a associar nosso centro individual com outros centros escolhidos e privilegiados, o amor, cuja função e encanto essenciais são os de nos completar.
3) Sobrecentrar-se, enfim. E isto, se bem que menos evidente, é absolutamente necessário para se compreender. Para ser plenamente nós mesmos, dizia, nós nos achamos forçados a alargar a base do nosso ser, isto é, a juntar-nos ao “Outro”. Ora, uma vez iniciado um pequeno número de afeições privilegiadas, esse movimento de expansão não pára mais: mas nos atrai, insensivelmente, de próximo em próximo, sobre círculos de raio sempre maior. Eis o que está particularmente manifesto no Mundo de hoje. Desde sempre, talvez, o Homem, esteve vagamente consciente de pertencer a uma só grande Humanidade. Todavia, é apenas para as nossas gerações modernas que esse sentido social confuso começa a tomar sua real e completa significação. No decorrer dos dez últimos milênios (período durante o qual a civilização bruscamente se acelerou), os homens se abandonaram, sem muito refletir, a forças múltiplas, mais profundas que toda guerra, que pouco a pouco os reaproximavam entre si. Ora, neste momento, nossos olhos se descerram e começamos a perceber duas coisas. A primeira é que, no modelo estreito e inextensível representado pela superfície fechada da Terra, sob a pressão de uma população e sob a ação de ligações econômicas que não deixam de multiplicar-se, nós já não formamos mais que um único corpo. E a segunda é que, nesse próprio corpo, como conseqüência do estabelecimento gradual de um sistema uniforme e universal de indústria e de ciência, nossos pensamentos tendem, cada vez mais, a funcionar como as células de um mesmo cérebro. Isso quer dizer apenas que, se a transformação seguir sua linha natural, podemos prever o momento em que os homens saberão o que é, como por um só coração, desejar, esperar e amar, todos juntos, a mesma coisa, ao mesmo tempo… A humanidade de amanhã, uma “super-humanidade” muito mais consciente, muito mais poderosa, muito mais unânime que a nossa, sai dos limbos do futuro, toma forma sob nossos olhos. E, simultaneamente (voltarei a este assunto), um sentimento levanta-se no fundo de nós mesmos, o de que, para chegar ao fim do que somos, não basta associarmos nossa existência com uma dezena de outras existências, escolhidas entre mil, dentre aqueles que nos rodeiam, mas é preciso fazer bloco com todas, ao mesmo tempo.
Que concluir desse duplo fenômeno, externo e internos, senão isto: o que a Vida nos pede, a fim das contas, o que devemos fazer, para ser, é incorporar-nos e subordinar-nos a uma Totalidade organizada, da qual somos cosmicamente, apenas as parcelas conscientes. Um centro de ordem superior nos espera, ele já aparece, não mais somente ao lado, mas além e acima de nós mesmos.
Logo, não mais somente desenvolver-se a si próprio, nem mesmo somente dar-se a um outro, igual a si mesmo, mas, ainda, submeter e conduzir sua vida para algo maior do que ela mesma.
Dito de outra maneira, Ser primeiramente. Amar, em seguida, E, finalmente, Adorar. Tais são as fases naturais de nossa personalização. Três graus encadeados, como vedes, no movimento ascensional da Vida; e, por conseqüência, também, três graus superpostos de felicidade – se a felicidade está, como já o reconhecemos, indissoluvelmente associada ao ato de ascender.

Felicidade de crescer; felicidade de amar; e felicidade de adorar. Eis em última análise, as três formas de tornar-se feliz que a teoria nos permite prever, partindo das leis da vida. Ora, qual é, sob esse ponto de vista, o veredicto da experiência?
Tentemos um pouco comprovar com fatos, através de medidas diretas, a justeza de nossas deduções.

Felicidade de crescer, interiormente, em forças, em sensibilidade, em posse de si mesmo. Felicidade, também, de se juntarem uns aos outros, entre corpos e almas feitas para se completarem e se unirem. Sobre a pureza e a intensidade dessas primeiras formas de alegria, é inútil insistir. Todo mundo, na verdade, está de acordo para celebrá-las. Mas a felicidade de se imergir e de se perder, no futuro, em algo maior do que nós… Não estaríamos, aqui, em plena especulação, ou pleno sonho? Regozijar-se com aquilo que nos ultrapassa ou com aquilo que não podemos ainda nem ver, nem tocar… Quem, pois fora alguns iluminados, cuidaria de semelhante coisa, no mundo positivista e materialista em que estamos mergulhados.
Quem cuidaria disso?

Mas prestai atenção, somente um pouco naquilo que se passa em nosso redor! Há alguns meses, durante uma reunião semelhante, eu vos descrevia o caso dos dois Curie, este homem e esta mulher cuja felicidade foi lançar-se em uma aventura, a descoberta do Radium, em que tinham consciência de que perder a vida era ganhá-la. Pois bem, seja mais modestamente, seja com modalidade diferente, quantos outros homens, ontem e hoje, não foram presos ou não estão ainda possuídos, até a morte, pelo Demônio da Pesquisa? Tentai contá-los.

Os do Ártico e do Antártico: Nansen, André, Shackleton, Charcot e tantos outros.
Os da alta montanha: os alpinistas do Everest. Os dos laboratórios perigosos: mortos pelos raios ou substancias que manejavam, mortos por uma picada atômica... Os da conquista do ar: uma legião... Os da conquista do Homem pelo Homem: todos aqueles que arriscam ou efetivamente deram sua vida por uma idéia (“Sabeis que minha vida é uma oblação, alegre e conscientemente oferecida, sem esperança egoísta de recompensa, ao Poder que está acima da Vida” Rathenau).
Fazei aproximadamente a conta, a conta, repito. E, isso feito, tomai, se existem, as anotações ou as cartas deixadas por esses homens, desde os mais notáveis entre eles (aqueles de que se fala) até os mais humildes (os anônimos), tais como esses pilotos postais que, há vinte e cinco anos, traçaram, através da América, prestes a se matar, um após o outro, uma via aérea para o pensamento e as afeições humanas. Que ledes nessas confidências? A alegria superior e profunda, uma alegria poderosa: a alegria explosiva de uma vida que achou, enfim, para expandir-se, um espaço interminável.

Alegria do interminável – digo bem. O que mina e envenena, geralmente, nossa felicidade é sentir tão próximos o fundo e o fim de tudo aquilo que nos atrai: sofrimento das separações e da deterioração, angústia do tempo que passa, terror diante da fragilidade dos bens possuídos, decepção de chegar tão depressa ao fim daquilo que somos e daquilo que amamos...
Para quem descobriu, em um Ideal ou numa Causa, o segredo de colaborar e de se identificar, de perto ou de longe, com o Universo em progresso, todas essas sombras se desvanecem. Refluindo, para dilatá-las e consolidá-las, nunca para diminuí-las ou destruí-las, sobre a alegria de ser e sobre a alegria de amar (Curie, Termier, foram admiráveis amigos, pais e esposos), a alegria de adorar comporta e conduz, em sua plenitude, uma paz maravilhosa. O objeto que a nutre é inesgotável, já que se confunde, sempre mais, com a consumação mesma do Mundo ao nosso redor. Ele escapa, por ser o que é, de toda ameaça de morte e de corrupção. Enfim, de uma maneira ou de outra, está sem cessar ao nosso alcance, já que o melhor modo que temos de atingi-lo é simplesmente fazer o melhor possível, cada um em seu lugar, o que podemos.

A alegria do elemento tornado Consciente do Todo a que serve e no qual se acaba, a alegria experimentada pelo átomo refletido no sentido de seu papel e de sua dimensão no seio do Universo que o conduz: tal é, de direito e de fato, a forma mais alta e mais progressiva de felicidade que me seja possível propor-vos e desejar-vos.

- As regras fundamentais da felicidade

Deixemos agora a teoria pura e tratemos de suas aplicações para nossas vidas individuais.
A verdadeira felicidade, acabamos de precisar, é uma felicidade de crescimento, e, como tal, nos espera em um sentido marcado:

1- Pela unificação de nós mesmos no centro de cada um de nós;
2- Pela união de nosso ser com outros seres, nossos semelhantes;
3- Pela subordinação de nossa vida a uma vida maior que a nossa.

Que resulta dessas definições para nossa conduta de cada dia? Como devemos agir praticamente para sermos felizes? Aqui, fique bem claro, só me é possível indicar direções extremamente gerais para a vossa curiosidade e boa vontade. Pois é aqui que aparecem, legitimamente, as múltiplas questões de gostos, de oportunidades e de temperamento. A Vida só se estabelece, só progride, por natureza e estrutura, graças à imensa variedade de seus elementos. Cada um de nós vê e aborda o Mundo sob um ângulo particular, com uma reserva e matizes de vitalidade incomunicáveis (diversidade complementar que fundamenta, seja dito de passagem, o valor biológico da “personalidade”). Cada um de nós, a partir daí, desde então, está sozinho para poder descobrir, em última análise, para si, a atitude, o gesto inimitável que o fará coerente ao máximo, isto é, em estado de paz beatificante, com o Universo em marcha ao seu redor.

Feitas essas reservas às três regras, acresce que se pode, de acordo com as perspectivas acima desenvolvidas, formular as três regras de felicidade que se seguem.

1. Para ser feliz, primeiramente, é preciso reagir contra a tendência ao menor esforço que nos leva a ficar no mesmo lugar, ou a procurar, de preferência na agitação exterior, a renovação de nossas vidas, nas ricas e tangíveis realidades materiais que nos rodeiam, é preciso, talvez, que lancemos raízes profundas. Mas é no trabalho de nosso aperfeiçoamento interior – intelectual, artístico, moral – que a felicidade nos espera. A coisa mais importante da vida dizia Nansen é se encontrar a si mesmo. O espírito laboriosamente construído através e além da matéria: Centrar-se.


2. Para ser feliz, em segundo lugar, é preciso reagir contra o egoísmo que nos impulsiona, seja a nos fecharmos em nós mesmos, seja a reduzir os outros sob nosso domínio. Há uma maneira de amar, má, estéril, pela qual nós tentamos possuir, em lugar de nos dar. E é aqui que reaparece, na situação do casal ou do grupo, a lei do maior esforço, que já regulava o curso interior de nosso desenvolvimento. O único amor que nos torna verdadeiramente felizes é aquele que se exprime por um progresso espiritual realizado em comum: Descentrar-se.


3. E para ser feliz, totalmente feliz, em terceiro lugar, é preciso, de uma maneira ou de outra, diretamente ou através de intermediários gradualmente ampliados (uma pesquisa, uma empresa, uma idéia, uma causa...) transportar o interesse final de nossas existências para a marcha e o êxito do Mundo ao nosso redor. Como os Curie, como Termier, como Nansen, como os primeiros aviadores, como todos os pioneiros de que vos falava mais acima, é preciso, para atingir a zona das grandes alegrias estáveis, que transfiramos o pólo de nossa existência para algo maior do que nós. O que não supõe, estais certos, que devamos, para ser felizes, fazer ações notáveis, extraordinárias, mas somente o que está ao alcance de todos, e que, conscientes de nossa solidariedade viva com uma grande Coisa, façamos grandemente a menor das coisas. Ajuntar um só ponto, por menos que seja, ao magnífico bordado da vida, discernir o Imenso que se faz e que nos atrai ao cabo e ao termo de nossas atividades ínfimas; discerni-lo e aderir a ele: tal é, no fim das contas, o grande segredo da felicidade. “É em uma profunda e instintiva união com a corrente total da Vida que faz a maior de todas as alegrias”, reconhecia o próprio Bertrand Russel, um dos espíritos mais agudos e menos espiritualistas da moderna Inglaterra: Sobrecentrar-se.

Ora, chegado a este ponto, que é a última palavra de que posso dizer-vos, deixai-me colocar, para terminar, uma observação que vos devo e que me devo, para ser absolutamente veraz. Lia ultimamente um curioso livro (Anatomy of Frustration – Wells), em que o romancista e filósofo inglês Wells, expõe os caminhos originais deixados por um americano, biólogo e homem de negócios, William Burrough Steele, precisamente sobre a questão que discutimos esta noite, a da felicidade humana. Com muita razão e força, Steele procura estabelecer (justamente como fiz aqui) que, não estando a felicidade separada de qualquer idéia de imortalidade, o homem só pode ser plenamente feliz se imergir seus interesses e esperanças nos do Mundo e, mais particularmente, nos da Humanidade. E, entretanto, acrescenta ele, essa solução, tal como se apresenta, permanece ainda incompleta. Pois enfim, para se chegar a dar-se profundamente, é preciso poder amar. Ora, como amar uma realidade coletiva, impessoal, monstruosa, de certa maneira, tal como o Mundo ou mesmo a Humanidade? A objeção que Steele encontra no fundo de seu coração e à qual não responde, é terrivelmente, cruelmente, justa. Eu, não seria, pois, completo, nem sincero, se não vos fizesse observar que o movimento inegável que leva, sob nossos olhos e massa humana a se colocar ao serviço do Progresso não é “auto-suficiente”, mas que este entusiasmo terrestre, ao qual vos convido, pode, para se sustentar, sintonizar-se e sintetizar-se com o entusiasmo cristão.

Ao nosso redor, a mística da Pesquisa, as místicas sociais lançam-se com uma fé admirável à conquista do futuro. Mas nenhum cume preciso, e, o que é mais grave, nenhum objeto amável se apresentam para sua adoração. E eis porque, no fundo, o entusiasmo e os devotamentos que elas suscitam são duros, secos, frios, tristes, isto é, inquietantes para quem as observa, e, finalmente, para aqueles que a elas se elevam, incompletamente beatificantes.

Ora, ao lado, e até aqui à margem, entre essas místicas humanas, a mística cristã não deixa, desde dois mil anos, de impelir sempre mais longe (sem que muitos disso duvidem) suas perspectivas de um Deus pessoal, não somente criador, mas animador e totalizador de um Universo que ele reconduz para si pelo jogo de todas as forças que agrupamos sob o nome de Evolução. Sob o esforço persistente do pensamento cristão, a enormidade angustiante do Mundo converge, pouco a pouco, no sentido do alto, até transfigurar-se em um foco de energia imantada!...

Como não ver, eu vos pergunto, que essas duas correntes poderosas entre as quais se divide presentemente o impacto das energias religiosas humanas, a do Progresso humano e a da grande caridade, só exigem combinar-se e completar-se?

Imaginemos, de um lado, que a explosão juvenil das aspirações humanas, prodigiosamente acrescidas por nossas concepções novas do Tempo, do Espaço, da Matéria e da Vida, passe na seiva cristã para enriquecê-la e estimulá-la. E imaginemos, ao mesmo tempo, por outro lado, que a figura tão moderna de um Cristo universal, tal como a elabora, neste momento, a consciência cristã, venha colocar-se, apareça, fulgure no cume de nossos sonhos de Progresso, de maneira a precisá-los, humanizá-los, personalizá-los.

Não estaria aí uma resposta, a resposta completa para as dificuldades diante das quais se debate nossa ação? Por falta da infusão de um sangue material novo, a espiritualidade cristã arrisca-se a debilitar-se e a perder-se nas nuvens. E por falta da infusão de algum princípio de amor universal, bem mais seguramente ainda, o sentido humano do Progresso ameaça desviar-se com horror da pavorosa máquina cósmica na qual se descobre engajado.

Juntemos o corpo à cabeça, a base ao cume, e, bruscamente é uma plenitude que explode. Na verdade, a solução completa para o problema da felicidade, eu a vejo na direção de um Humanismo cristão, ou se o preferirdes, na de um Cristianismo sobre-humano, no seio do qual cada homem compreenderá, um dia, que lhe é possível, a cada momento e em toda situação, não somente servir (o que não é o bastante), mas aspirar, em todas as coisas (as mais doces e as mais belas, como as mais austeras e as mais banais), a um Universo carregado de amor em sua Evolução.
 
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