ENTREVISTADORES:
- Gilberto Dimenstein – Folha de São Paulo
- Cláudia Costin – Secretária de Administração
- Caco de Paula – Veja São Paulo
- Washington Olivetto – W/Brasil
- Dante Silvestre Neto – SESC/São Paulo
- Roseli Fichman – USP/Mackenzie
- Marco Antonio de Rezende – Vip Exame
Pergunta: A que o senhor atribui a repercussão de suas idéias no Brasil? Por que os brasileiros estão tão interessados nelas?
DE MASI: A pergunta devia ser feita aos brasileiros e não a mim, pois quando alguém faz sucesso em um programa corre o risco de se atribuir esse sucesso, mas não é o caso. De fato o senhor notará que, na segunda vez o sucesso será menor e se houver uma terceira menor ainda e os ouvintes acabarão se cansando.
Em parte foi a novidade, pela primeira vez participei de um programa como este. Depois porque é possível que haja uma correspondência objetiva entre minhas idéias e o que atualmente está surgindo num país extraordinariamente dinâmico como o Brasil. Existem momentos mágicos em que as idéias de algumas pessoas, e as idéias latentes de todo um país podem coincidir. Isso coincide também de forma mais ampla. Idéias semelhantes às minhas são difundidas por outros pesquisadores em vários pontos do mundo, e sempre tem mais sucesso, pois obviamente a sociedade industrial está em crise e precisamos de um novo modelo, com o qual possamos conviver melhor. Nós estamos nessa sociedade em crise e o Brasil nem chegou lá no ponto limite da sociedade industrial e ao mesmo tempo sofre os problemas de um país em desenvolvimento. Cada vez inclusive se inventa uma palavra para descrevê-la e de outro lado já começamos a sofrer os problemas e as crises da sociedade efetivamente pós-industrial. Uma cidade como São Paulo com problemas de trânsito, poluição, de superpopulação, segurança, convive com a realidade do nordeste do país ou do centro, onde não há ainda esse grau de desenvolvimento.
Pergunta: O senhor acha que esse tipo de idéias que o senhor traz pode significar um salto que nos permite não ir até o fim no caminho desse tipo de desenvolvimento industrial?
DE MASI: O Brasil é um espelho do mundo, porque em um só país ele reproduz as contradições existentes no mundo inteiro.
Creio que se os problemas forem resolvidos no Brasil, será um modelo para o resto do mundo.
No próximo 11 de Agosto, o planeta vai atingir 6 bilhões de habitantes. Isso representa uma população 10 vezes maior que a do fim do século XVI. E no mundo todo existem essas contradições. Cinco bilhões de pessoas praticamente vivem como nas favelas e 1 bilhão vive como se vive na Avenida Paulista, aqui em São Paulo. Essas contradições existentes no mundo todo são encontradas aqui, num só país e muitas vezes numa mesma cidade. Isto é um ponto forte e fraco ao mesmo tempo.
Você tem, por exemplo, o desemprego pré-industrial devido ao fato de que não há a difusão de um trabalho do tipo moderno. Mas, vocês já tem o desemprego pós-industrial pelo fato de que as indústrias tem uma tal forma de tecnologia que devem dispensar cada vez mais pessoas. Eu repito, se isto se resolver no Brasil, será o modelo para um terceiro caminho entre o capitalismo e o comunismo no mundo inteiro.
Pergunta: Embora o senhor seja um sociólogo e faça uma análise científica de sistemas, relações de trabalho e o trabalho na era pós-industrial, um amigo comentou comigo que o senhor tem uma visão um pouco poética, às vezes, e talvez tenha alguma razão pois, o senhor certamente soube que dez dias atrás foi assassinado na Itália o principal assessor do ministro do trabalho, por um grupo que reivindicava a bandeira das Brigadas Vermelhas. Isso parece uma coisa tão antiga: terrorismo, Brigadas Vermelhas, uma coisa estranha. Por outro lado, o fato de ter sido assassinado um assessor importantíssimo do ministério do trabalho, que não é um simples assessor como nós conhecemos aqui, é um economista muito preparado, que discutia todos os meses com 50 pessoas que representavam todas os segmentos da indústria, dos sindicatos, do governo etc. Houve esse ato terrorista.
O senhor não acha que isso traz a discussão sobre o futuro do trabalho ou as relações trabalhistas na era pós-industrial, ou ainda, a perspectiva do tempo livre nesse novo tempo com novas tecnologias, traz tudo para uma escala humana muito concreta?
Ou seja, toda a evolução que está havendo na organização do trabalho, a introdução de novas tecnologias, tudo isso está gerando desemprego que para as pessoas que estão desempregadas é um drama muito concreto.
Esse crime das Brigadas Vermelhas agora, traz o assunto para uma dimensão dramática: Como resolver esta questão, esse problema, como enfrentar o problema das pessoas que não estão encontrando emprego nesta nova era?
DE MASI: O senhor está me dizendo várias coisas. A primeira é que minhas idéias podem ser acusadas de poéticas. Tenho uma grande admiração pelos poetas, são a alegria da minha vida, mas infelizmente não tenho o dom da poesia. Minhas idéias têm sempre por base estudos muito precisos, muito demorados, muitas vezes levam anos, nos quais colaboram dezenas de meus colaboradores e colegas. Eu, com meus alunos na Universidade, procuro incutir o hábito de basear qualquer afirmação sobre dados concretos, estatísticas econômicas e sociais. Ante qualquer afirmação que um aluno meu faça, eu pergunto qual é a base estatística do que ele está dizendo. Hoje, é impossível enfrentar o mundo com idéias novas sem contar com a força das estatísticas. Os economistas, por exemplo, muitas vezes têm idéias muito erradas. Acredito que, daqui a algumas décadas, a obra dos economistas do século XX será lembrada como uma das obras mais negativas, sobretudo à partir de Keynes, pois ele foi também um grande poeta. Foi um homem que colaborou com o Grupo Bloomburg, ao lado de Virgínia Wolf, Forster, de Walessa e Strachey. Ele tinha uma mente eclética. Casou-se com uma grande bailarina clássica. Portanto, encarava a economia como parte de um todo e tendia a resolver o todo e não a parte. Os economistas atuais nos aterrorizam com a matemática. Então, quem tem idéias diferentes devem ter a mesma base matemática e estatística, se não, não é levado a sério.
Desculpe se me prolonguei demais sobre a sua primeira afirmação. A segunda parte se refere ao crime das Brigadas Vermelhas. Eu sou muito amigo do Ministro do Trabalho italiano. O ministro freqüentou muitas vezes minhas aulas quando eu ensinava na Universidade de Nápoles. Ele ainda era muito jovem. Eu conhecia o professor que foi assassinado. Colaborei muitas vezes em trabalhos similares aos do professor assassinado. Portanto, de certa forma, podia ter acontecido comigo. Além disso, quando houve nos anos 70 forte terrorismo na Itália, eu fui, pelo menos durante dois anos, alvo dos Brigadas Vermelhas, pois eu ensinava abertamente aos meus alunos, em aula, a desconfiar do terrorismo. Acho que da morte não pode surgir a vida. E há tantos meios antes da violência. Claro que em certos casos a violência é necessária, mas é o último, o último anel de uma longa corrente que pode ser percorrida, deve ser percorrida toda, antes de se chegar à violência. O crime italiano, porém, esse assassinato foi infelizmente uma das piores formas de despertar a conscientização sobre um fato real.
Todos os jornais, por muitos dias, trouxeram em primeira página o assassinato do professor. Mas, todo dia, não todo dia, mas muito freqüentemente, com certeza quase toda semana, um desempregado se suicida na Itália.
Por ocasião do 1º de Maio, promovi na TV Italiana, um encontro, um debate, juntamente com Bassolini, o Ministro do Trabalho. E assistimos na televisão a uma reportagem sobre uma senhora de Nápoles, cujo marido havia se suicidado poucos dias antes. E ele havia se suicidado por vergonha de dizer aos filhos que estava desempregado, por vergonha de dizer que não podia lhes dar dinheiro. Aquela senhora dizia que as crianças pediam ao pai para ir ao cinema, para comprar um sorvete, mas ele não podia mais. No fim ele não agüentou e se suicidou.
Agora, desses suicídios a imprensa não fala. Não quero igualar as duas coisas, mas quero dizer que esse assassinato, esse homicídio italiano, confirma que diante do problema do emprego e desemprego, todos aqueles que têm o poder tomaram um rumo, um único rumo e percorrem sempre aquele. De acordo com esse rumo e essa idéia, para sanar o desemprego, é preciso incrementar os investimentos. Significa que o estado deve auxiliar a empresa privada. É preciso reduzir os impostos das empresas. Dessa forma, o Estado, terá menos dinheiro, com menos dinheiro pode fazer menos pelo social, portanto pode dar menos escolas públicas, menos saúde pública, menos transporte e tudo o mais. E todo esse dinheiro que é tomado à redistribuição pública e social, vai para as empresas, que além de tudo encontram segmentos de mercado completamente livres e à sua disposição. Porque se o Estado não cuida da saúde pública, a empresa privada pode lucrar com a saúde privada. Se não cuida do transporte, a empresa privada pode lucrar com o transporte privado. Então, as empresas têm novos incentivos, novas reduções fiscais, novos segmento de mercado à sua disposição e, além disso, em função da tecnologia, demitem um número cada vez maior de pessoas.
Pergunta: O senhor está fazendo uma crítica do atual modelo de mercado que vigora nos países ocidentais, inclusive no Brasil. O senhor propõe uma alternativa a esse modelo?
DE MASI: É exatamente isso. Estou dizendo que existem duas soluções possíveis para o desemprego. Foi escolhida sempre e somente uma, a qual está errada. E está errada não porque eu ideologicamente ou poeticamente me oponho a esta solução, mas porque, depois de 50 anos não deu nenhum resultado e sim vem aumentando o desemprego. Então a solução, formulada hoje pelo empresário privado nos países capitalistas, é a que mencionei antes. Obter mais dinheiro do Estado, reduzir a mão-de-obra e demitir o pessoal e portanto, acumular uma quantia enorme de dinheiro.Com que objetivo?
Os empresários dizem que é para investir, que o investimento cria novas vagas de trabalho. Ora, em primeiro lugar, não é verdade que investindo criou-se novas vagas. Criam-se pouquíssimas, porque hoje o empresário que investe não compra mão-de-obra, compra máquinas.
O diretor-superintendente da Montedison, uma grande empresa italiana, me dizia há pouco tempo que a Montedison para oferecer uma vaga, devia investir 4 bilhões de liras, ou seja, são necessários 3 bilhões e 900 milhões de liras para comprar máquinas e 100 milhões para pagar uma pessoa.
Pergunta: Aqui em São Paulo, por exemplo, é um lugar em que está aguçado o desemprego, por uma série de questões, seja porque o emprego está indo para o interior, seja porque na indústria está havendo competitividade com novas máquinas. Tanto os governos estaduais como municipais estão criando frentes de trabalho no estilo que havia nos Estados Unidos na década de 30, porque as pessoas não conseguem se colocar, existindo ou não emprego, são pessoas já fora do mercado de trabalho, com baixa escolaridade, assim por diante. A frente de trabalho, bancada pelo Governo, para essas camadas já deslocadas, seria a solução?
DE MASI: Eu dizia que os empresários de posse desse dinheiro, falam em investimentos. Mas, conforme os dados e as estatísticas de todos os países da Organização para a Cooperação e Segurança da Europa, nos últimos 15 anos, o índice de investimento diminuiu sempre. Então, o que é feito desse dinheiro? O que acontece com esse dinheiro? Acontece duas coisas: a primeira é que o empresário recompensa cada vez mais os altos dirigentes, os "top" , os "top" "top" mesmo!
O presidente da Fiat na Itália ganha 12 milhões de dólares por ano. O presidente da Coca-Cola nos Estados Unidos ganha 220 milhões de dólares por ano. O presidente da Travel Group, sempre nos Estados Unidos, ganha 480 milhões de dólares por ano. Mas isso, não bastaria para esgotar a enorme massa de dinheiro acumulada pelas empresas. Uma grande soma de dinheiro que as empresas acumulam é retirada do mercado e jogada na Bolsa.
A Bolsa é esse grande ciclone, essa enorme roleta mundial que nunca se fecha, é uma Las Vegas permanente. Quando fecha em Tóquio, abre em Londres, fecha lá, abre em São Paulo, fecha aqui abre em Nova Iorque e assim por diante. É onde homens sem pátria, apátridas, os grandes financistas e sem coração , pois não têm nenhuma relação com as pessoas, agem apenas sobre símbolos, sobre dinheiro, ações, deslocam pacotes acionários pelo mundo inteiro em poucos minutos e podem determinar o fim de uma empresa e milhares de desempregados.
Pergunta: A frente do trabalho, bancada pelo governo, é uma boa solução?
DE MASI: Então, vejamos qual é o outro caminho. O outro caminho não consiste em incentivar o investimento desta forma. Consiste em se ter um pacote completo de ações, algumas das quais consistem em incentivar os investimento, mas pedindo sempre à empresa a garantia do número de vagas a serem criadas. Na Itália, por exemplo, certas empresas tomam benefícios do Estado e investem em outros países. Em segundo lugar, há que reduzir drasticamente a jornada de trabalho. Não é possível emprego para muitas pessoas se algumas trabalham 10 ou 12 horas ao dia. Os únicos dois países que realmente têm um baixo índice de desemprego, os únicos dois países no mundo cujos dados são confiáveis, são Holanda e Inglaterra. A Holanda, por que 36% trabalham em tempo parcial e a Inglaterra, porque 22% trabalham em tempo parcial. O regime de tempo parcial é uma das soluções que proponho. Ou seja, é uma das formas de reduzir a jornada de trabalho. E depois, há também o problema dos auxílios. É claro que podem ser dados sem problemas. Por exemplo, por que um jovem, de 20 anos que trabalha num banco recebe um salário e um jovem de 20 anos que estuda na Universidade não recebe um salário? Aqui no Brasil é uma loucura. Fui informado que a Universidade Pública é a melhor e quem estuda lá são os ricos. Por que os ricos podem se permitir ir às escolas particulares desde a infância, lá aprendem muito bem e assim conseguem passar no vestibular e entrar numa Universidade pública no lugar do pobre. Portanto, é um absurdo que o Estado tome o dinheiro do ricos para devolvê-lo aos ricos. É um Robin Hood maluco. E isto vem ocorrendo cada vez mais em quase todos os países do mundo.
Pergunta: O Estado brasileiro tira dinheiro dos pobres para dar aos ricos. É um pouco pior que a análise que o senhor fez.
DE MASI: Pelo jeito fui mal informado pelos economistas que são um pouco o meu alvo esta noite.
Pergunta: Somos um país que tem um sistema marcadamente clientelista. Quando se pensa nas idéias que o senhor propõe de enfrentar a burocracia, nós temos um risco posto, esse risco se associa ao fato de que a burocracia, com todos os problemas que ela traz, tem uma característica importante que é a idéia da impessoalidade, da idéia da formalização que em muitos momentos da história, da Europa, inclusive, se mostraram armas importantes no enfrentamento da administração patrimonialista. Por outro lado, a burocracia mata a criatividade. O senhor coloca bem isso no seu livro. É que no caso brasileiro, como mostrou o Paulo Markun, nós avançamos em algumas direções, nós temos o malefício da burocracia junto com os problemas que o sistema político clientelista coloca. Como é que o senhor enfrentaria os malefícios da burocracia num sistema como esse?
DE MASI: Um escritor italiano disse que os italianos preferem a inauguração à manutenção. Acho que a manutenção é uma coisa importante. E uma das diferenças entre o primeiro e o terceiro mundo é justamente a questão da manutenção. Em vez de destruir o setor público, como acontece em todos os países capitalistas, que após a queda do muro de Berlim, foram tomados por uma euforia fora do comum, sem entender que o comunismo perdera, mas o capitalismo não havia vencido. Em todos eles há a destruição dos aparatos burocráticos, o desmantelamento do Estado social. Porém, assim que uma organização cresce, começa imediatamente o perigo da burocratização, por que, é claro, uma grande organização precisa de regras. Quando uma empresa começa a se contaminar pela burocracia, cria-se um círculo vicioso, pelo qual a burocracia vai gerar a si própria. A burocracia parte do princípio de que o cidadão deve ser controlado. Se não for controlado, o cidadão consegue lograr o Estado. Mas quanto maior o controle, maior é esperteza do cidadão. Quanto maior essa esperteza, maior o controle e assim por diante, numa espiral que não tem mais fim. O problema deve ser resolvido como, de certa forma, faz a França. Com certeza, a França tem a melhor burocracia do mundo. Ela tem a melhor burocracia por que esse problema foi assumido por um grande personagem: Napoleão Bonaparte. Ele criou uma escola de administração ainda melhor que as famosas escolas americanas ou as européias ou as que você também possam ter. Enquanto a indústria privada gasta bilhões para preparar os seus dirigentes, a indústria pública não gasta quase nada. No entanto, a França investe muito nisso. É preciso sempre manter o controle, a qualidade intelectual dos burocratas, de forma a mantê-los sempre num estado de tensão. Se gastarmos dez para um dirigente privado, temos de gastar 100 para um dirigente público, mas o estado não faz nada disso. Teríamos que comprar os maiores prêmios Nobel, teríamos que comprar os maiores pensadores de administração, mas não aqueles das escolas americanas, talvez até aqueles, mas corrigidos e atualizados, e investir toda essa massa de grandes especialistas em organização da burocracia pública. É preciso criar escolas muito grandes, extraordinárias. Quando digo grandes, não falo do tamanho físico, mas de escolas extraordinárias para manter a administração pública sempre atualizada. Não só quanto à tecnologia, nem só quanto às normas ou à dimensão legal, mas sobretudo quanto à dimensão sociológica, psicológica das organizações.
Pergunta: O senhor estava falando do desmantelamento do Estado em vários países capitalistas, mas a gente não percebe nenhuma redução do gasto público enquanto um percentual do PIB, em nenhum país. Sequer naqueles que empreenderam reformas no Estado. O que parece estar mudando, inclusive na França, é a forma como o Estado passa a ser gerenciado, e nesse sentido queria um pequeno comentário sobre as diferenças de gestão dentro da própria Europa, pois o senhor contrapõe no seu livro o modelo europeu ao modelo americano, mas aparentemente, existem, diferenças entre o modelo anglo-saxão e o latino. O Brasil se inspirou mais no modelo latino do que no modelo anglo-saxão?
DE MASI: Os modelos que se confrontaram nesse século foram principalmente dois, o modelo capitalista e o modelo comunista. O modelo comunista distribui bem a riqueza mas não sabe criá-la. Cuba é um exemplo de ótima distribuição da riqueza, mesmo as crianças do povo estudam, assim como as dos ricos. Não existe uma diferença enorme de base, ou seja, de formação. Não há diferenciações quanto à saúde nos hospitais e estabelecimentos sanitários. O comunismo mostrou que sabe distribuir a riqueza, mas não sabe reproduzi-la, o capitalismo no entanto, mostrou que sabe produzir a riqueza talvez até demais, mas não sabe distribui-la. O problema, então é uma terceira via. Ela existe no estágio atual indicada pela Igreja Católica. O Papa João Paulo II, talvez até mais que seus predecessores, entendeu bem esse drama, mesmo porque ele conhecia bem tanto o mundo comunista como o capitalista e ele rejeitou tanto os excessos comunistas como os capitalistas e foi o primeiro a ir a Cuba. A primeira coisa que Fidel Castro lhe disse, ao descer do avião foi:
"Santidade, o senhor está no único país do 3º mundo onde não há diferenças de educação entre ricos e pobres". Mas eu sou laico e assim mesmo admiro muito o modelo seguido por João Paulo II mas gostaria também que houvesse um modelo laico, ou seja, o modelo que não tem fé, não crê em outra vida, não crê em uma série de aparatos ideológicos que são próprios da Igreja. Alguém que quisesse o controle da natalidade, as biotecnologias e assim por diante; mas que fosse insatisfeito com o comunismo e com o capitalismo. Temos que achar essa terceira via. A grande crítica ao modelo americano, neste momento não vem dos economistas europeus, nem dos economistas do terceiro mundo, mas dos economistas americanos. É o livro The Lester Turow, sobre
O Futuro do Capitalismo, o livro de Rich sobre as multinacionais. É o livro de Lutwak, publicado há poucas semanas, sobre o que ele chamou de "A ditadura do Capitalismo". São os economistas americanos que por estarem no epicentro daquele sistema notam a aberração daquilo que chamam de "turbo capitalismo". Um capitalismo perigosíssimo. Nós temos de criar uma terceira via, até para ajudar os americanos.
Pergunta: No segmento anterior o senhor citou alguns salários gigantescos de presidentes de grandes conglomerados norte-americanos. Curiosamente, o homem que mais se aproxima da idéia do MIDAS que tudo que toca vira ouro, deve ter sido o Picasso. Ele pegava um pedaço de guardanapo de papel como esse, desenhava alguma coisa, assinava e aquilo passava a valer milhares ou milhões de dólares. Evidentemente, para chegar nesse momento do guardanapo, Picasso construiu uma obra muito grande e qualquer pessoa que tenha acesso a essa obra, percebe que ele era um grande operário, por que ele fazia pintura, cerâmica, escultura, cenários de teatro, jóias. Pelo tempo de vida dele, pelo que existe de obras de boa qualidade de Picasso, ele trabalhava muito, era um operário. Picasso se casou várias vezes, com mulheres lindas, adorava tomar bons vinhos, dançava, usava camisas de marinheiro com bermudas e jamais abriu mão de suas alpargatas de lona para usar um sapato de couro. Essa combinação do homem que trabalha como formiga e vive vida de cigarra é uma possibilidade ou em princípio só dos gênios?
DE MASI: Eu estudei a vida de muitos criativos, de muitos grupos criativos porque minha especialização nesta fase é, de um lado o mercado de trabalho pós-industrial e, de outro, o estudo da criatividade e de sua organização. No universo dos criativos encontramos de tudo, não ter característica é a característica da criatividade. No curso da história encontramos um Beethoven que viveu em grande pobreza. Há uma descrição muito acurada do quarto onde ele morreu. É uma coisa que comove, tal grande era a pobreza. Ele teve 3 ou 4 livros em sua vida. Schubert nunca pôde comprar um piano, morreu aos 32 anos sem ter tido a alegria de possuir um piano. Se pensarmos em quantos pianos existem nas casas dos ricos, só para as crianças brincarem de tocar... tocam um primeiro acorde e depois se cansam. Porém tem também D’annunzio que viveu num luxo extraordinário. Wagner, que tinha mania de luxo e dilapidou o dinheiro do Rei Ludwig I para ter casas suntuosas. Há uma descrição das coisas que Wagner encomendou às lojas para decorar suas casas. O tecido, as cadeiras, é algo fora do comum. Portanto, há de tudo. Andy Warhol fez do alto custo dos seus quadros uma filosofia. Ele disse: "existem coisas belíssimas que nós não vemos mais. São tão cotidianas e abundantes que não as saboreamos mais".
Por exemplo, uma garrafa de Coca-Cola, uma lata de Campbell’s que ao seu modo é uma obra-prima. Então é preciso aumentar seu tamanho, pintá-la e fazê-la custar bilhões. Se não for caro, os ricos não tomam conhecimento.
Eu passei a manhã de hoje com o Oscar Niemeyer, há tempo eu sonhava conhecê-lo, porque eu o considero um dos grandes gênios da arquitetura – e sem dúvida junto com Le Corbusier é o maior arquiteto do século XX. Encontramos nele uma postura totalmente diferente diante da vida. Não se parece nada com a de Picasso. Picasso foi um gênio.
Niemeyer me mostrou uma inscrição que fez na parede. Diz:
"Mais do que arquitetura, o que vale são os amigos, a vida e esse mundo injusto que temos de mudar". Um arquiteto de tal gabarito escreveu uma coisa desse gênero. Então temos de admitir que existem os Picassos, temos que admitir que existem os Wagner, bem como os Beethoven. Nós devemos ser gratos a esse gênios. Keats dizia que a obra de arte é uma alegria criada para sempre. Eles nos deram tantas alegrias que podemos até perdoar alguma fraqueza de sua parte, mas não podemos perdoar tantos ricos que têm um enorme cinismo e que nem alegria nos proporcionam.
Pergunta: Questão da mulher e da feminilização do mercadotrabalho.
Retornando um pouco à temática da exclusão. A questão das minorias é algo muito sério. Tanto do ponto de vista de conseguir emprego, e com salários equivalentes. Isso acontece não só no Brasil, onde tenho informação, mas aqui acontece de forma acentuada. Como o senhor vê, esse perspectiva em que o senhor trabalha de forma interessante do lazer como direito e do lazer como algo que soma àquela pessoa de forma que ela trabalhe melhor e portanto do trabalho como prazer e criação.
Como o senhor vê as pessoas que estão incluídas, estão no interior do ambiente de trabalho, se mobilizando de alguma maneira de forma responsável por aqueles que estão excluídos. E a perspectiva de uma educação permanente, o senhor tem alguma reflexão específica nessa direção?
DE MASI: Bem até agora talvez eu tenha sido muito crítico, até excessivamente, para com os modelos capitalistas e comunistas. Se a senhora pensar nisso, são modelos que os homens inventaram, criaram, gerenciaram. A mulher nunca foi tão excluída como neste século, da gestão do trabalho e da vida pública. Digamos portanto que este século termina com coisas muito bonitas atribuídas aos homens, mas também com coisas muito feias, pelas quais os homens devem ser recriminados. Os homens dos países dominantes, é óbvio.
Portanto, imagino que, se um novo modelo deva surgir, surgirá dos países que não pertencem ao Primeiro Mundo. E surgirá de mulheres. São as mulheres dos países do Segundo e Terceiro Mundo, sobretudo as do Segundo Mundo, pois o Segundo Mundo, o dos países emergentes como o Brasil, já têm uma série de fatores culturais muito avançados, mas mantém ainda a genuinidade de um país subdesenvolvido.
Pergunta: É interessante também esse entrelaçamento da questão da mulher com a questão de
raça. A inserção das mulheres negras por exemplo. Ser mulher e ser negra, o que significa, por exemplo. O que o senhor imagina é uma proposta extremamente ousada, o mundo mudando à partir daquilo que ele é hoje. Então como se pode colocar uma nova intenção naqueles que estão criando o mundo tal como ele se encontra?
DE MASI: O que será necessário na sociedade pós-industrial, isto é, no próximo século, é a criatividade. A criatividade é uma síntese de fantasia e concretização. Por sua vez, a fantasia é a síntese do inconsciente e da esfera emotiva. Nós, homens, cultivamos sobretudo a razão, a dimensão da concretização, e devo dizer que as mulheres também tem culpa nisso, porque o machismo, como dizia uma grande feminista, é como a hemofilia: acontece nos homens, mas é transmitida pelas mulheres. Foram as mulheres, as mães, que ensinaram os homens a serem machistas, e naturalmente isso nos agradou, porque o poder, como diz um provérbio napolitano, agrada mais que muitas outras coisas.
Pergunta: O senhor citou o Niemeyer e eu lembrei de algo que queria lhe perguntar: Eu tenho certo fascínio pelo espaço de trabalho, arquitetura e a maneira como as pessoas funcionam nesse espaço. Eu mesmo de uma maneira muito tímida tive a oportunidade de fazer na minha agência de publicidade, desde a fundação uma experiência que foi bem sucedida. Desde 1986 eliminei todas as paredes, nós não temos salas, eu particularmente, que presido a empresa, não tenho sala, eu tenho uma cadeira a mais em cada uma das mesas, para poder trabalhar com cada uma das pessoas. Isso inicialmente foi um pouco traumático, e depois na minha área de atividade virou quase que um modelo. Um amigo meu fez duas agências de publicidade. Uma com o Frank Gerry, que fez o museu de Bilbao, que todo mundo está falando, em Venice na Califórnia e outra o NY feita pelo Caetano Pesce, um arquiteto italiano que certamente o senhor conhece. Ele fez isso com intenções curiosas. A empresa dele teve um auge criativo no início dos anos 80, alcançou através desse auge um sucesso econômico muito grande, adquiriu muitos novos clientes e a partir de um movimento ele sentiu que só poderia revitalizar a empresa a partir de um processo arquitetônico novo. As pessoas eram as mesmas, e curiosamente isso deu muito certo.]
Esse projeto de Frank Gerry, para o senhor ter uma idéia, também não tem espaços físicos fixos, existem pushing balls, para as pessoas descarregarem suas energias, aqueles que quiserem trabalhar e ficar no trabalho, há armários como os de clube, aqueles que quiserem trabalhar a partir de casa podem fazê-lo interativamente por computador. O senhor acredita que isso vai ser cada vez mais comum?
Misturar qualidade de arquitetura com qualidade de trabalho?
DE MASI: Não há a menor dúvida, pois o que faz a arquitetura? Ela fixa itinerários pré dispostos. Esses itinerários podem ser rígidos como uma estrada ou flexíveis como uma série de atalhos. Como por exemplo em Veneza ou em Nápoles. E é claro que a 1ª parte das modificações dos locais de trabalho foi o "espaço aberto". O edifício de Niemeyer para a Mondadori em Milão, um edifício maravilhoso, é todo em "espaço aberto", não há paredes, mas há lugares fixos, portanto, ainda existe um elo com a visão de empresa de "linha de montagem". Pois devemos considerar que a linha de montagem acabou influenciando em nível quase psicanalítico, a organização do trabalho. E, da fábrica, ela passou para os escritórios, por isso, os escritórios burocráticos são organizados como linhas de montagem. Para começar, uma primeira etapa é obviamente abolir os escritórios fechados e os lugares demarcados. Mas, a segunda é destruir o muro que cerca a empresa. Hoje, a empresa é a última fortaleza, o último castelo que sobrou.
Ao entrarmos numa empresa, damos os documentos, recebemos o crachá, como numa grande prisão. Agora, enquanto o visitante tem de entregar o crachá, porque só pode entrar com autorização, milhares de informações entram e saem sem nenhum documento, por telefone, fax e correio eletrônico. Uma desestruturação total do trabalho é o próximo passo, pois o trabalho intelectual, o trabalho já realizado por 60% ou 70% da população ativa, por ser mental, pode ser feito em qualquer lugar. Em qualquer lugar onde a informação possa nos alcançar, em qualquer lugar onde possamos contatar os outros através de fax ,telefone e da Internet, por isso, o local e o tempo do trabalho não tem mais sentido. Toda aquela massa enorme de aparatos burocráticos que as firmas e os ministérios usam para controlar horário de entrada e saída dos trabalhadores são completamente inúteis, eles poderiam ficar em casa sempre que lá pudessem fazer determinado trabalho. Poderiam ir ao escritório só se necessário para uma reunião ou para lidar com algo que não possa ser deslocado para casa. Isso é necessário. Ontem no Rio, passei praticamente tendo que me deslocar dentro da cidade, não menos de 4 horas no carro. Imaginemos que isto leve em média, duas horas. E imaginemos que no Brasil, 20 milhões de pessoas passem todo dia 2 horas no carro, são 40 milhões de horas ao dia, praticamente desperdiçadas. E é o sacrifício pago por uma cidade organizada pelo critério de linha de montagem, como se ainda todo o trabalho fosse feito em um alto forno e fosse necessário sair de casa e ir ao escritório.
Então, o senhor fez muito bem, desistiu tirando tudo aquilo. Os arquitetos tem de o fazer mesmo, assim como os dirigentes e os chefes de pessoal, hoje tem-se ainda uma visão eu diria "clintômana" das relações de trabalho. Ou seja, é preciso ter os dependentes à mão, de forma tangível. Não há nenhuma necessidade disso, podemos estar juntos quando necessário e dialogar à distância quando necessário. Eu conheci uma jovem, justamente aqui em São Paulo, nos dias em que passei em uma convenção para a qual fui convidado, conheci uma garota que me foi indicada como intérprete, e essa garota graciosa, bonitinha e muito amável, me acompanhou com muita gentileza. Eu perguntei se era noiva ou casada, como vocês sabem, os italianos perguntam sempre essas coisas, ela me respondeu que era noiva. Perguntei porque o noivo não estava ali com ela e ela disse que nem sequer o conhecia, estava noiva, mas via Internet de um italiano. Então, perguntei como faziam amor, quantas vezes ao dia se falavam, enfim tudo isso. Ela me disse que tudo funcionava bem, estava tudo bem, até alguns dias antes: pois o noivo, que é italiano e , portanto muito ciumento, teve uma crise de ciúme. Ele desconfiava que ele o estivesse traindo com outro, sempre via Internet, e ela não tem com provar que não é verdade, e portanto ela está sofrendo.
Aconselhei que se encontrassem uma vez pessoalmente.
Isso pode parecer um exagero, embora seja algo que vá se multiplicar no futuro. Mas, com certeza já podemos conjugar, mesclar relações só virtuais, relações tangíveis, relações de trabalho, relações de estudo e relações de tempo livre. É o bonito da sociedade pós-industrial, é esse contínuo fervilhar de atividades, em que não sabemos o que é tempo livre, tempo de trabalho, tempo de estudo.
Pergunta: Nessa área é que eu gostaria de fazer a minha pergunta. Nos temos no âmbito de nosso trabalho cotidiano dentro do SESC de São Paulo debatido esse conjunto de questões relativas ao lazer, ao tempo livre, esse novo fenômeno social que está aí. Até porque dessa reflexão deriva todo um conjunto de orientações, a nossa programação , a programação que é feita em 26 Centros Culturais em SP pelos quais passam 200 mil pessoas por semana, mais ou menos. E recentemente numa discussão informal a respeito desse assunto que é permanente no nosso trabalho, alguém fez uma observação, alguém que é um grande admirador seu, que é o Danilo Santos de Miranda, que conhece bem o seu trabalho, ele dizia o seguinte: Sempre que nós falamos da questão do tempo livre, do lazer, isso surge de uma forma muito clara, sempre como uma reivindicação legítima, um direito legítimo de homens e mulheres que trabalham, que tem obrigação e que precisam de um espaço de descanso, de entretenimento e de recreação, mas que essa observação é mais ou menos obvia, o que é menos obvio, menos evidente são as relações existentes entre o lazer e a produção de cultura. E alguém argumentava que é preciso portanto conhecer muito bem o pensamento do professor De Mazzi, por que ele junto com o Jofre de Masandier leva a fundo essa reflexão. Ou seja, há uma relação ente lazer e cultura. O que esse tempo livre, o que o lazer produz em termos de valores de civilização, de criação artística, de pensamento, qual a grande força educacional e formadora desse novo tempo social?
De MASI: Aqui também acho interessante começar por um dado estatístico. Por que, com freqüência, não refletimos sobre a relação quantitativa entre o tempo de trabalho e o tempo livre. Imaginemos um jovem de 20 anos. Um jovem de 20 anos, com a média de longevidade atual, poderia viver 60 anos. Normalmente, morre-se por volta dos 80 anos. Sessenta anos de vida são 530.000 horas. Esse jovem de 20 anos, se for admitido no trabalho hoje mesmo, e se permitirem que trabalhe até os 60 anos, durante 40 anos seguidos, algo raríssimo, e se esse jovem trabalhar 1700 ou 2000 horas ao ano, que é praticamente o máximo de tempo que trabalham um suíço, um norte-americano ou um japonês, esse jovem acumula 70 ou 80 mil horas. Isso é tudo. 70 ou 80 mil horas, no máximo, esperam esse jovem, enquanto que a vida que ele tem pela frente é de 530.000 horas. Ou seja, 460.000 horas são para outras coisas que não o trabalho. E isso até para o mais laborioso dirigente. Digamos que esse jovem dedique 10 horas por dia para dormir, lavar-se etc., o que chamam de "cuidar de si", são 230.000 horas. Restam ainda outras 230.000, completamente vazias, absolutamente vazias.
Pergunta: Professor, o senhor fala em seu livro e também em outros trabalhos que a escola não prepara para esse tempo livre. Que tipo de mudanças o senhor acredita que deveria ser feito no sistema escolar para que a escola não preparasse exclusivamente para o trabalho. A escola prepara para a criatividade ou alguém que memorize e reproduza informações memorizadas?
De MASI: Este é o problema. Se meus alunos, os que tenho na classe que tem 20 anos, sei muito bem que terão 70.000 horas de trabalho, mas que, no entanto, terão 530.000 horas de vida. Ou seja, sabe-se que o trabalho é um sétimo de suas vidas. Por que, então, devo dedicar a escola, apenas para prepará-los para o trabalho? O trabalho se tornou uma categoria carnívora. Uma categoria que consome tudo: a família, a sociedade, a escola. Só preparam o garoto para o trabalho, só para o trabalho. Mas o trabalho não é tudo. E, no entanto, há atividades que, mesmo sendo pesadas e importantes, não são consideradas trabalho. O trabalho é uma convenção. Uma mulher que cuida do filho não trabalha de acordo com as estatísticas. Se a mesma mulher cuidar do filho de outra, é considerada trabalhadora. E recebe o salário de babá. Se essa mesma mulher cuidar de 30 garotos ao mesmo tempo, é considerada professora. E recebe, então, outro tipo de salário. É tudo uma grande convenção teatral. É um grande teatro a questão do trabalho e do tempo livre. Agora, se o que aguarda o jovem são um sétimo de trabalho e seis sétimos de tempo livre, a escola, a sociedade, a família e os meios de comunicação de massa devem ensinar esse jovem como usar esse tempo livre. Por que no tempo livre podem nascer idéias, pode haver grandes explosões de criatividade, mas pode haver, também, droga, violência, dissipação, inutilidade e tédio.
Pergunta: Professor, tem um problema que é o seguinte. Na verdade a escola está ensinando o que a sociedade está vivendo, o que volta naquele ponto, como é que nós podemos fazer para que essa própria sociedade e também nós adultos comecemos a viver um pouco diferente isso. Num de seus trabalhos o senhor menciona que – o senhor cita o caso do Ferri – continua sempre andando na rua, falando com as pessoas, procurado contato, por que também tem um pouco isso, o caso daquele que é genial como alguém que se afasta das pessoas comuns. Como é que fica isso então do ponto de vista dos políticos que estão tomando decisões e em geral estão afastados do ser humano das ruas, como é que fica para nós que estamos pensando e pregando as coisas, o senhor me compreende, a escola não vai conseguir fazer uma coisa muito diferente daquilo que a sociedade está vivendo.
De MASI: O tempo livre se ensina com o próprio tempo livre. Mas, não se trata mais tanto de tempo livre, pois quando as atividades são manuais, como as de um mineiro, há uma divisão clara entre as horas de trabalho e as horas fora do trabalho. Mas quando a atividade é intelectual, (temos aqui um publicitário) como distinguir o tempo de trabalho do tempo livre? Se ele estiver aflito por que tem de achar um slogan, ou a solução de um problema de um cartaz publicitário, esta aflição estará sempre presente, até de noite. Ele até pode achar a solução ao amanhecer, ainda sonolento. Hoje, tudo está mesclado. Estudo, trabalho e tempo livre, são uma coisa só. Vou dar um exemplo.
O que estamos fazendo agora? Estamos estudando? Bem..., às vezes, até trocamos idéias. Estamos trabalhando? Em certo sentido, sim. Estamos nos divertindo? Eu estou.
Pergunta: Mas essa questão da cultura do tempo livre e do trabalho remete às sociedades indígenas. Nas sociedades indígenas não há essa ruptura entre tempo livre e trabalho. Aparentemente o ser humano na sociedade industrial quebrou isso. Como é que a escola recupera essa junção do prazer do aprendizado – é bom, é gostoso aprender e como que a gente aprende não só para produzir?
De MASI: Claro, naquelas sociedades primitivas, estudo, trabalho e tempo livre são uma coisa só. Mas, não são produtivas. Devemos achar um modelo que preserve a produtividade e o lazer. Um dos maiores estudiosos de Ciências Organizacionais que iniciou a sociologia do trabalho e organização nos EUA nos anos 20 e 30 era da Austrália. E sua intenção ao chegar aos EUA, vendo a sociedade americana tão convulsa e atomizada, era a de recriar nas empresas o lazer dos aborígenes australianos e a produtividade da empresa americana. Em parte, ele contribuiu para que isso tudo acontecesse. As relações humanas, após seus estudos, mudaram para melhor. Devemos dar continuidade, devemos eliminar progressivamente as barreiras arquitetônicas das indústrias, ou seja, a empresa tem de se abrir. Quando minha mãe pensava num trabalhador, pensava num camponês, pois ela vinha do campo. Quando pensamos num trabalhador, pensamos em Charles Chaplin de
Tempos Modernos. Aqueles fotogramas são terríveis, por que gravaram em nossa mente que o trabalhador é um metalúrgico na linha de montagem. Mas hoje, em 80% dos casos o trabalhador é um intelectual. É o funcionário, o dirigente, o profissional. São pessoas que trabalham com a cabeça, não com as mãos. Então, para que ter um aparato arquitetônico, um aparato de controle e disciplina, como se fossem metalúrgicos, mecânicos analfabetos do começo do século?
A empresa não renovou sua organização. Ela apenas renovou seu maquinário e substituiu os operários por funcionários e dirigentes. Só isso.
Pergunta: Vendo o que o senhor escreveu a respeito de toda a sociedade, das mais primitivas, até a industrial ou pós industrial , a gente vê uma idéia subjacente de evolução na questão tecnológica que possibilita horas livres. Parece , no entanto, que todo o curto circuito que existe em discutir horas livres com a felicidade do homem, é a gente perceber que há um descompasso muito grande entre a solução tecnológica, como o homem consegue rapidamente a solução tecnológica, e uma dificuldade, uma falta de criatividade para encontrar a solução do convívio social. Assim como o senhor vê uma evolução no que diz respeito à máquina, o senhor tem uma expectativa otimista com relação à evolução de consciência, da evolução social do homem? Ou esse curto circuito ainda vai continuar sendo tão grande?
De MASI:Eu acho que, quando o ser humano toma consciência de um problema a fundo, costuma achar a solução. O problema é quando não toma consciência ou quando o subestima. Nos últimos dias conversei com muitos intelectuais aqui no brasil. São extraordinários, muito ativos, muito inteligentes e criativos. Tomo a liberdade de fazer apenas uma crítica. Parece-me que já se acostumaram a conviver com as diferenças sociais e não as notam mais. Ao passo que quem vem da Europa não consegue entender como pode haver, a poucos passos de distância, como no Rio de Janeiro, a maior favela da América Latina e o bairro dos milionários. Mas parece que, por força da convivência, como por um mecanismo de defesa psicológica, até o intelectual brasileiro se habitue um pouco a tudo isso. Ou julgam-no uma fatalidade que não pode ser eliminada. Mas, eu acho que nós aprenderemos a usar as máquinas, desfrutando-as ao máximo, ou seja, delegando às máquinas todo o trabalho nocivo, perigoso, pesado e nos habituaremos a viver com nosso grande monopólio, que é o trabalho intelectual.
Pergunta: O senhor disse num dos seus escritos, acho que era uma proposta sua, sobre o fato de que muitos executivos trabalham 12, 14 horas por dia, enquanto colegas ou filhos desses executivos não trabalham nenhuma, porque não tem emprego. E uma das propostas é justamente dividir: cada um trabalha menos para mais gente trabalhar. Mas é possível isso em termos concretos? O senhor acha que é possível organizar o mundo de forma que as pessoas trabalhem menos para que mais pessoas trabalhem?
DE MASI: Eu trato disso em meu livro
O Futuro do Trabalhoque vai ser lançado aqui no Brasil. Acaba de sair na Itália e foi bem recebido. Houve duas edições numa semana. Mas foi muito criticado pelo jornal da Confederação das Indústrias, que disse: "Quem vai pagar o tempo livre?".
É obvio, quem paga são as máquinas e a produção social, mas, voltando ao assunto, acho que os problemas no mundo são ao menos três. O primeiro é habituar cinco bilhões de pessoas que nunca trabalharam a começar a trabalhar. O que faz, o cidadão da favela ou o cidadão pobre do Cairo quando acorda de manhã? Ele não vai ao escritório. Ele deve ir à luta até a noite, tentando sobreviver. Então, esses cinco bilhões seriam educados, aos poucos, para um trabalho produtivo. É uma obra colossal, pois começa na escola. Mas simultaneamente, o bilhão de cidadãos do Primeiro Mundo seria educado para trabalhar menos.
Assim como os primeiros sofrem, é claro, sem culpa alguma, involuntariamente de ócio obrigatório, os segundos sofrem, com culpa, de hiperatividade. O fato de um dirigente ir ao escritório às 8h00 para sair às 20h00, descuidando totalmente da família, descuidando totalmente da vida política e social, descuidando totalmente de si mesmo: não vai ao cinema, ao teatro, não lê, não para um instante para apreciar a beleza do Universo, das obras de arte, de tudo o que nos é dado gratuitamente, isso significa depauperar a sim mesmo e aos outros, sem nenhum motivo. Não existe um motivo para justificar isso. Quando o operário ficava na linha de montagem, se ficasse lá o dobro do tempo, produzia o dobro de porcas. Se um intelectual fica o dobro do tempo no escritório, ele não produz o dobro, produz a metade.
Se o nosso publicitário ficasse 12 horas ao dia sentado no mesmo lugar, falando com as mesmas duas ou três pessoas, fechado no mesmo escritório, falando das mesmas coisas, sempre oprimido por uma burocracia imunda, sempre num contexto esteticamente asséptico como um hospital, ele não poderia criar absolutamente nada.
A criatividade provém da variedade. A criatividade advém da combinação do jogo, da amizade, do amor, do lazer, da introspecção. E o dirigente não pode fazer nada disso. O dirigente que sai da Busines School americana, cujo objetivo é a competitividade, a competitividade destrutiva, em vez de uma emulação solidária; é uma pessoa perigosa para si mesma, perigosa para os outros e para a democracia. De fato, foi daquele mundo, daquele centro social muito perigoso para si próprio e para os outros, que surgiram a globalização e o turbocapitalismo.
Pergunta: Agora há pouco nós estávamos falando sobre um assunto muito atraente, que é a presença da mulher na sociedade. Na verdade o domínio do trabalho tem sido, por excelência, o domínio da presença do homem, dos valores masculinos; ele é dominado por uma espécie de masquiocracia impenitente que a todo momento afirma que corre atrás de objetivos muito claro, muito delimitador: é mais dinheiro, mais poder, mais contatos prestigiosos, mais prestígio e mais mulheres. A presença desse universo masculino, não teria no contraponto do tempo livre, o nascimento de novos valores? Ligados a sociabilidade, à confiabilidade, à afetividade, ao estético, à criação? Nesse sentido estaria havendo uma espécie de feminilização do mundo?
DE MASI: Claro, o mundo está se feminilizando, pois em 200 anos de sociedade industrial, de meados do séc. XVII a meados do séc. XIX, os homens se reservaram o mundo da produção. Reservaram às mulheres o mundo da reprodução e fizeram a cisão: a produção na empresa e a reprodução em casa.E descartaram do mundo da produção todos os valores considerados inferiores: a subjetividade, a estética, a ética e a emotividade.
Esses valores tornaram-se quase um monopólio da mulher. O homem se envergonha ao se comover, por exemplo. Mas esse valores que detestávamos e que, portanto, deixamos para as mulheres estão se tornando dominantes, pois na sociedade pós-industrial, baseada na criatividade, não há possibilidade de criatividade sem estética, sem ética e sem emotividade. É aí que emerge a mulher. Ela que foi escrava desses valores e deles está imbuída, hoje, já libertada, na medida em que se liberta dessa opressão, consegue expressar-se. Quando cheguei a São Paulo, tive uns momentos de folga e enquanto aguardávamos o carro, andei um pouco pela livraria do aeroporto. É interessante notar que quase metade dos livros é escrita por mulheres. Isso acontece com os filmes. Se assistirmos aos filmes quase não percebemos. Mas hoje um número enorme de cineastas é constituído por mulheres. Era um papel que antes cabia à gente (os homens).
Minha grande amiga, a cineasta italiana, Lina Wertmüller, era a única cineasta no mundo. Tenho absoluta certeza de que desse advento de grande feminilização nascerá uma sociedade nova. Naturalmente as mulheres que estão se masculinizando cometeriam um erro grandíssimo, porque acabariam se masculinizando justamente quando isto não serve mais. É como os italianos que foram colonizar a África quando os outros iam embora.
Pergunta: Parte dos problemas que o senhor abordou e parte das soluções que o senhor propõe, dependem de grandes instâncias, a decisões de grandes empresários, de políticos, da mudança das relações dos países, da definição de vocações de um projeto de país. Agora, tenho a impressão que existe alguma parte disso que pode depender da vontade de cada uma dessas pessoas. Então eu perguntaria, que parte é essa e se é possível cada um, de algum modo, dar a sua pequena contribuição para que essas mudanças, no bom sentido, aconteçam?
DEMASI: Cada um pode dar uma contribuição fundamental. Grande parte das pessoas tidas como civilizadas, isto é, já destituídas, espero, não em definitivo, de sensibilidade humana, pensam que tudo o que pode agradar custa. E se não há dinheiro, não há nenhuma possibilidade de usufruir do tempo livre.
Todos deviam começar a pensar sobre o que são os grandes luxos da sociedade contemporânea. O luxo é uma coisa rara. Era um luxo ter uma carruagem quando ninguém a possuía. Hoje, somando tudo, o que é raro? O Tempo é raro. Um número enorme de pessoas (embora a média de vida tenha dobrado em duas gerações e haja instrumentos para economizar o tempo), têm a impressão de nunca ter tempo.
Um segundo luxo é o espaço. Ter espaço. No Brasil o espaço é infinito. Porém há poucos meses, pela primeira vez, a população que vive nas cidades superou os 50% da população mundial. Portanto, tempo, espaço e depois, solidão. Nós precisamos também de momentos de solidão. Precisamos também de momentos de introspecção. E depois segurança. Precisamos viver num ambiente onde possamos sair à noite, passear e admirar a lua de noite, como o sol de dia, com toda a segurança de que isso não nos cause problemas. E depois, autonomia. Aquela autonomia que nos é tolhida pela cidade, nos é tolhida pela empresa, e por toda a burocracia que nos sufoca.
Então, esse luxos, tudo somado são luxos que podemos ter gratuitamente. É preciso educação, uma educação, é obvio, naquele sétimo de vida que o jovem terá de passar no trabalho e naqueles seis sétimos de vida importantíssimos que o jovem passará no chamando tempo livre.
[A transcrição desta entrevista foi feita, a partir de fita gravada, por Antonio Morales Camargo, do grupo de discussao EduTec]