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O Mito da Queda

Ecuador

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22/12/2007
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http://carlosorsi.blogspot.com.br/2013/02/o-mito-da-queda.html

TERÇA-FEIRA, 19 DE FEVEREIRO DE 2013

O Mito da Queda

Uma das vantagens de meu emprego atual é o acesso liberado ao conteúdo do Chronicle of Higher Education, onde parte dos artigos são de livre leitura e parte, exclusiva para assinantes. Se o artigo Misguided Nostalgia for Our Paleo Past estiver disponível gratuitamente, faça um favor a si mesmo e leia-o. De autoria da bióloga Marlene Zuk, ele é um excerto do livro Paleofantasy: What Evolution Really Tells Us about Sex, Diet, and How We Liveawww_assoc_amazon_com_e_ir_b0b2fff1f0e753cc6baa2c1a98888726._.gif, que deve sair em março, e que já pedi na pré-venda.

O argumento geral parece ser este:
"Nem nós, nem nenhuma outra espécie jamais chegou a um ajuste perfeito com o ambiente. Em vez disso, nossa adaptação é como um zíper quebrado, onde alguns dentes se alinham e outros se afastam (...) querer ser mais como nossos ancestrais significa desejar um conjunto diferente de ajustes".
Soa até meio óbvio, suponho, mas é bom parar para pensar no que essa afirmação representa para o que talvez seja o meme dos memes, a mitologia por trás de praticamente todas as pulsões ideológicas conhecidas pelo homem (e pela mulher, também): o Mito da Queda. A ideia de que, em algum momento do passado, houve uma Era de Ouro onde tudo era perfeito (ou encaminhava-se rapidamente nesse sentido) mas aí apareceu alguém -- os capitalistas, os comunistas, Eva, a Serpente, Xenu, os militares, os imperialistas, os colonialistas, Sauron, Palpatine -- e, pimba, fudeu.

A característica mais impressionante do Mito da Queda é sua aplicação universal. Praticamente toda corrente de pensamento tem uma Era de Ouro em seu inconsciente coletivo, seja a era de capitalismo laissez-faire de antes da I Guerra Mundial, seja o "comunismo primitivo" dos primeiros cristãos ou dos povos paleolíticos, seja o Jardim do Éden. O problema com isso, claro, é que mesmo nas Eras de Ouro havia quem sonhasse com Eras de Ouro ainda mais antigas. O conceito de Era de Ouro vem da Grécia Antiga, que se considerava, já, um período de decadência da raça humana.

Com o passar do tempo, o mito ganha novas roupagens -- em tempos modernos, tende a despir-se da linguagem mais religiosa e abraçar uma roupagem de pretensões científicas. Sua versão mais popular, na seara contemporânea, é de idealizar um passado onde as coisas eram mais "naturais" e menos "processadas", ou um estilo de vida mais próximo àquele para o qual nossa espécie "evoluiu" -- afinal, passamos 99% de nossa existência como espécie na Idade da Pedra. Então, estamos mais "adaptados" a ela. Certo?



Bom, voltando ao trecho citado anterior:"querer ser mais como nossos ancestrais significa desejar um conjunto diferente de ajustes". Nossos ancestrais não eram "perfeitamente" adaptados ao ambiente deles, da mesma forma que não somos "perfeitamente" adaptados ao nosso. Se hoje temos problemas com comida processada e com calçados que prejudicam a coluna, nossos ancestrais tinham verminoses provocadas por comida crua "orgânica" e parasitas que entravam no corpo pela sola dos pés.

Ou, como escreve Zuk:
"Será que nossos ancestrais nas cavernas sentiam nostalgia dos dias antes de serem bípedes, quando a vida era boa e as árvores, uma zona de conforto? Acredita-se que o hábito de comer restos deixados por predadores, como as hienas fazem, precedeu, ou ao menos acompanhou, o nascimento da caça na espécie humana. Então, será que os primeiros caçadores-coletores acreditavam que tirar a gazela do leão que a havia matado era melhor do que essa novidade de matar o bicho por conta própria?"

O Mito da Queda deixa-se ligar com muita facilidade ao do Bom Selvagem (sobre o qual, aliás, outro livro muito interessante, Noble Savages: My Life Among Two Dangerous Tribes -- the Yanomamo and the Anthropologists, acaba de ser lançado)awww_assoc_amazon_com_e_ir_d6d005718ee4bb6e59a11d1cbef2eea3._.gif e à falácia do Apelo à Natureza -- a ideia de que se é "natural" é "bom" -- o que provavelmente ajuda a explicar o complexo ideológico eco-evangélico que se está plasmando em torno da figura de Marina Silva.

É importante notar que o Mito da Queda, mesmo quando abraçado em nome de causas ditas "revolucionárias" -- como no caso da parcela da esquerda terceiromundista para quem o capitalismo imperialista é o Um Anel da nossa Terra Média tropical -- é inerentemente conservador e autoritário, já que aponta para uma versão idealizada do passado como onec plus ultra da condição humana, um lugar para onde todos deveriam voltar, custe o que custar.

Existe um mito oposto ao da Queda, que é o Mito do Progresso -- o de que o futuro será sempre, inevitavelmente, melhor do que o presente é, ou do que o passado foi. A ameaça do holocausto nuclear, do colapso ecológico e dezenas de distopias literárias mais ou menos convincentes ajudaram bastante a enterrá-lo, embora ele ainda seja popular entre certos economistas ultraliberais.

Ambos os mitos são falsos e, no limite, perigosos, mas por alguma razão o da Queda sempre teve uma certa aura de respeitabilidade intelectual, enquanto que o do Progresso costuma ser tratado como uma fantasia de nerds ingênuos. O que não deixa de ser engraçado porque, ao menos na origem, tanto o marxismo quanto cristianismo pareciam muito mais ligados a uma visão brilhante do futuro do que do passado. Talvez a idealização do passado seja, no cenário ideológico, um sinal de cansaço -- uma admissão de derrota, a admissão de que o futuro falhou em chegar.
cavemancartoon.jpgawww_assoc_amazon_com_e_ir_b0b2fff1f0e753cc6baa2c1a98888726._.gifawww_assoc_amazon_com_e_ir_d6d005718ee4bb6e59a11d1cbef2eea3._.gif
 
Última edição:
Ser feliz, ter qualidade de vida na sociedade contemporânea passou a estar relacionado com o consumir, com o ter. A sociedade está tão empenhada em adquirir propriedade e obter lucro que, apenas raramente, se percebe que o modo de ter não passa de uma das orientações possíveis, e não o único modo de vida aceitável. Então digo que essa sociedade do "progresso" do "futuro", ainda está muito, mas muito forte.
 
Então digo que essa sociedade do "progresso" do "futuro", ainda está muito, mas muito forte.


Essa sociedade ideal do futuro e a sociedade ideal do passado também. Mas nenhuma das duas é o que se idealiza. Agora é o real.

Como disse Joseph Campbell:

"O Éden não foi nem será, o Éden é"


Ou então nas palavras de Thich Nhat Hanh:

"É possível para nós alcançar o nirvana? O fato é que vocês são o nirvana. O nirvana está à disposição de vocês vinte e quatro horas por dia. É como a onda e a água. Vocês não precisam procurar o nirvana em outro lugar ou no futuro. Porque já são ele. O nirvana é o princípio do seu ser."

https://teonanacatl.org/threads/budismo.5003/page-2#post-73439



Exelente trabalho Ecuador.


Agradeça ao Carlos Orsi. bolo.
 
Não conhecia o mito (apesar de já o ter percebido), obrigado por compartilhar.
 
Não sei não, uma tribo indígena consegue enxergar muito bem as hordas de máquinas instaladas nas florestas, o barulho dos motores e a patrulha dos alienígenas camuflados, os pajés conseguem ver muito bem a queda dos jovens obesos de coca-cola. Onde está a proteção de seus espíritos da floresta? Onde estão os sinais de intervenção do grande Tupana?
Dependendo do ponto de vista a queda é um fato!
Seria o Nirvana a nossa cegueira?
 
o pecado original, a ideia de que houve uma epoca boa e depois a queda da humanidade.
agora imagine essa ideia sendo cultivada em nossa ascendencia durante 3000 anos ou mais, junto com todas as questoes religiosas. qualquer pessoa que nasça hj tera um resquicio da reliogiosidade encravada em sua mente, uma nescessidade mental de buscar deus ou a sua alma. Eh muito dificil remover essa ilusao, porque o conceito de DEUS(alma) é a ferramenta ideal para saciar a nossa fome de conhecimento. A ilusão que nos ajuda a ficarmos sãos.

estamos vivendo a melhor epoca de nossa especie. conseguimos conectar cerebros atraves da tecnologia e nao de falacias xamanicas. olhe para esse forum! pessoas que nunca vi na vida invadindo a minha mente com suas palavras. não acham isso incrível?
 
Muito bem dito phmr, você pecou apenas no "falácias xamânicas", pois acho um erro do cientificismo negar suas origens, aliás essa negação é o que traz a tona o mito da queda, como se houvesse algo que nós estamos "consertando". O passado inteiro não passa de um mito, o futuro mera imaginação, e o presente? Produto de mitos e imaginação condensados em linguagem.
Xamanismo é o berço do pensamento científico, portanto você negar o mito da queda afirmando o progresso da ciência está apenas criando mais uma ilusão para si e afirmando o mito sem se dar conta disso.
 
mas em nenhum momento neguei as origens da ciencia. o xamanismo ja compriu o seu papel no passado. uma era onde o ser humano curioso precisava de algo para completar os espaços vazios de sua mente. E Por causa de suas limitações, passou a chamar o sol de deus. Esse tempo ja passou, agora temos outras ilusões para acreditar.
vc nao pode negar q existe muito charlatao metido a xamã por ai, aproveitando das fraquezas dos outros. por isso q eu disse "falacias xamanicas". agora, se existe xamãs verdadeiros ou não, ja eh outro assunto xD
abraços!
 
Última edição por um moderador:
Um pouco de culpa ajuda a limpar os ouvidos, exercícios físicos ajudam a preparar-mos e evitar contato com radicais e ortodoxos. O restante é viver e deixar viver. Difícil.
 
Muito legal o texto...lendo lembrei da sinopse de um livro que exemplifica essa questão e que deve ser tão doido quanto os do Mckenna. (doido, mas não por isso desnecessário)

"John Zerzan, anarquista americano que se destaca na segunda metade da década de 1980 enquanto filosofo e escritor de aspirações primitivistas, foca em Futuro Primitivo a civilização agrícola e sua inerente opressividade, defendendo formas inspiradas no modo de vida das sociedades humanas pré-históricas como modelos de sociedades plenas de liberdade. Algumas de suas críticas mais desafiadoras se estendem ao processo da domesticação, à linguagem, ao pensamento simbólico (como matemática e arte) e à conceituação de tempo".
 
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