- 31/05/2013
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Gosto de Literatura de Língua Inglesa (tou fazendo mestrado nisso) e pensei em postar um relato ficcional escrito pelo Neil Gaiman (Sandman, The Graveyard Book) sobre cogumelos e adoração aos deuses antigos. E fiz isso - fica a dica pra ler o livro. Neil Gaiman é um ótimo escritor. Está abaixo.
CHEGANDO À AMÉRICA 14000 a.C.
Estava frio, e escuro, quando a visão veio a ela, porque a luz do sol das terras
longínquas do norte era um momento cinzento e turvo no meio do dia que vinha, e ia,
e vinha de novo: um interlúdio entre escuridões.
Não fazia parte de uma grande tribo, em relação à maneira como esse tipo de
coisa era contada naquele tempo: eram nômades das Planícies do Norte. Eles tinham
um deus, que era a caveira de um mamute, cuja pele fora transformada em uma capa
tosca. Chamavam-no de Nunyunnini. Quando não estavam viajando, ele repousava em
uma armação de madeira, da altura de um homem.
Ela era a mulher sagrada da tribo, a guardiã dos segredos, e seu nome era Atsula,
a raposa. Atsula andava atrás dos dois homens da tribo que carregavam o deus em
cima de varas compridas, enrolado em peles de ursos, porque não deveria ser visto por
olhos profanos, nem em épocas que não eram sagradas.
Eles vagavam pela tundra, carregando suas tendas. A melhor das tendas era feita
de couro de caribu, e era a tenda sagrada, e havia quatro deles lá dentro:
Atsula, a sacerdotisa, Gugwei, o ancião da tribo, Yanu, o líder da guerra, e
Kalanu, a batedora. Ela os reuniu ali, no dia seguinte à sua visão.
Atsula ralou um pouco de líquen e jogou no fogo, depois jogou algumas folhas
secas com seu braço esquerdo debilitado: produziram fumaça, uma fumaça cinzenta
que fazia os olhos arderem, e soltavam um odor picante e estranho. Então pegou uma
xícara de madeira da plataforma e entregou a Gugwei. A xícara estava cheia até a
metade com um líquido amarelo-escuro.
Atsula encontrou os cogumelos pungh — cada um com sete manchas, e só uma
mulher verdadeiramente sagrada conseguia encontrar cogumelos com sete manchas —
e os colheu na escuridão da lua, para secá-los sobre uma tira de cartilagem de rena.
Ontem, antes de dormir, ela comeu as três partes de cima secas dos cogumelos.
Seus sonhos foram sobre coisas confusas e assustadoras, sobre luzes brilhantes que se
moviam rapidamente, sobre montanhas de pedra, cheias de luzes se projetando para
cima como estalagmites. No meio da noite ela acordou, suando, e precisando fazer
água. Agachou-se em cima da xícara de madeira e a encheu com sua urina. Então a
colocou do lado de fora da tenda, na neve, e voltou a dormir.
Quando acordou, tirou os torrões de gelo da xícara, deixando um líquido mais
escuro e mais concentrado no fundo.
Foi esse líquido que distribuiu, primeiro para Gugwei, depois para Yanu e para
Kalanu. Cada um deles tomou um grande gole do líquido, então Atsula tomou o
último trago. Ela engoliu, e despejou o que sobrou no chão na frente do deus deles,
uma libação para Nunyunnini.
Ficaram sentados dentro da tenda enfumaçada, esperando o deus falar. Do lado
de fora, na escuridão, o vento uivava e resfolegava.
Kalanu, a batedora, era uma mulher que se vestia e andava como um homem: até
tinha pegado Dalani, uma virgem de 14 anos, para ser sua esposa. Kalanu piscou os
olhos com força, então se levantou e andou até a caveira de mamute. Colocou a capa de
pele de mamute sobre si e ficou em pé, de maneira que sua cabeça ficasse dentro da
caveira de mamute.
— Há maldade na terra — disse Nunyunnini na voz de Kalanu. — Maldade tal
que, se vós permanecerdes aqui, na terra de vossas mães e das mães de vossas mães,
todos vós perecereis.
Os três ouvintes gemeram.
— Ë por causa das pessoas que nos escravizam? Ou por causa dos grandes
lobos? — perguntou Gugwei, de cabelos longos e brancos, e cujo rosto era tão
enrugado quanto a casca cinzenta de uma árvore espinhenta.
— Não são as pessoas que vos escravizam — disse Nunyunnini. — Não são os
grandes lobos.
— É uma onda de fome? Haverá escassez de alimento? — perguntou Gugwei.
Nunyunnini ficou em silêncio. Kalanu saiu da caveira e esperou junto com os outros.
Era a vez de Gugwei vestir a capa de pele de mamute e colocar a cabeça dentro
da caveira.
— Não uma escassez de alimento como as que vós conheceis — disse
Nunyunnini, através da boca de Gugwei. — Apesar de uma onda de fome vir a seguir.
— Então, o que é? — perguntou Yanu. — Eu não tenho medo. Vou me colocar
contra essa coisa. Nós temos lanças e pedras de arremessar. Deixe que uma centena de
guerreiros poderosos venha contra nós, ainda assim vamos prevalecer. Levaremos
todos até os pântanos e lá abriremos seus crânios com nossas pedras.
— Não c uma coisa humana — disse Nunyunnini na voz velha de Gugwei, —
Vai vir dos céus. Eu ouvi um barulho mais alto do que dez trovões, e nenhuma das
vossas lanças ou das vossas pedras poderá proteger-vos.
— Como podemos nos proteger? — perguntou Atsula. — Eu vi chamas nos céus.
Eu ouvi um barulho mais alto do que dez trovões. Eu vi florestas derrubadas e rios
ferventes.
— Ai... — disse Nunyunnini, mas não disse nada mais.
Gugwei saiu da caveira, curvando-se de maneira rígida, porque era um homem
velho e suas juntas estavam inchadas e cheias de nós.
Silêncio. Atsula jogou mais folhas no fogo, e a fumaça fez com que os olhos deles
lacrimejassem.
Então Yanu caminhou até a cabeça de mamute, colocou a capa em volta dos
ombros largos e encaixou a cabeça dentro da caveira. A voz dele ribombou:
— Vós deveis viajar na direção do sol, para onde o sol se levanta. Lá encontrareis
uma nova terra, onde estareis a salvo. Será uma longa jornada: a lua se inchará e se
esvaziará, morrerá e nascerá, duas vezes, e haverá escravizadores e bestas, mas eu vos
guiarei e vos manterei a salvo, se viajardes na direção do nascer do sol.
Atsula cuspiu na lama do chão e disse:
— Não.
Ela podia sentir o deus olhando para ela.
— Não. Vós sois um deus maldoso por nos dizer tal coisa. Morreremos. Todos
nós morreremos, e então, quem sobrará para carregá-lo de um lugar ao outro, para
levantar sua tenda, para untar vossas magníficas presas com gordura?
O deus não falou nada. Atsula e Yanu trocaram de lugar. O rosto de Atsula
olhava através dos ossos amarelados do mamute.
— Atsula não tem fé — disse Nunyunnini na voz de Atsula. — Deve morrer
antes que o restante da tribo chegue à nova terra, mas o resto deve sobreviver.
Acreditai em mim: há uma terra a leste despovoada. Essa terra deve ser vossa terra, e a
terra de vossos filhos, e a terra dos filhos de vossos filhos, durante várias gerações, e
sete setes. Mas, se fosse pela falta de fé de Atsula, vós ficaríeis aqui para sempre. De
manhã, desmontai vossas tendas e guardai vossos pertences, e caminhai em direção ao
sol nascente.
E Gugwei e Yanu e Kalanu inclinaram as cabeças e louvaram o poder e a
sabedoria de Nunyunnini.
A lua encheu e minguou e encheu e minguou mais uma vez. O povo da tribo
caminhava para o leste, em direção ao nascer do sol, exaurindo-se através dos ventos
gelados que entorpeciam a pele exposta. Nunyunnini fez uma promessa verdadeira a
eles: não perderiam ninguém da tribo na viagem, a não ser uma mulher durante o
trabalho de parto; e mulheres em trabalho de parto pertencem à lua, não a Nunyunnini.
Cruzaram a ponte entre as terras.
Kalanu tinha saído à primeira luz da manhã para abrir caminho. Agora o céu
estava escuro, e ela ainda não havia retornado, mas o céu noturno estava vívido com
suas luzes, fazendo nós, cintilando e rodopiando, fluindo e pulsando, branca e verde e
violeta e vermelha. Atsula e seu povo já tinham visto as luzes do norte antes, mas
ainda se assustavam com elas, e esse era um espetáculo como nunca viram antes.
Kalanu retornou a eles quando as luzes desenhavam formas e corriam pelo céu.
— Às vezes — ela disse a Atsula —, parece que eu poderia simplesmente abrir os
braços e cair no céu.
— Isso é porque você é batedora — disse Atsula, a sacerdotisa. — Quando você
morrer, cairá no céu e se transformará em uma estrela, para nos guiar como nos guiou
em vida.
— Há uma cadeia de montanhas de gelo a leste, montanhas altas — disse Kalanu,
com seus cabelos pretos como as penas dos corvos, compridos como um homem
usaria. — Podemos escalá-las, mas vai demorar vários dias.
— Você nos guiará com segurança — disse Atsula. — Eu morrerei ao sopé da
montanha, e esse será o sacrifício que os levará até as novas terras.
A oeste dali, nas terras de onde vieram, onde o sol tinha se posto horas antes,
enxergava-se um clarão de luz amarelada e doentia, mais clara do que um relâmpago,
mais clara do que a luz do dia. Era uma explosão de brilho puro que obrigou o povo
sobre a ponte entre as terras a cobrir os olhos e a vomitar e a gritar. As crianças
começaram a choramingar.
— Esta é a maldição sobre a qual Nunyunnini nos avisou — disse Gugwei, o
ancião. — Certamente ele é um deus sábio, além de poderoso.
— Ele é o melhor de todos os deuses — disse Kalanu. — Em nossa nova terra,
deveremos erguê-lo bem alto, e deveremos polir suas presas com óleo de peixe e
gordura de animal, e contar aos nossos filhos, e aos filhos dos nossos filhos e à sétima
geração de filhos dos nossos filhos, que Nunyunnini é o deus mais poderoso de todos,
e que nunca deverá ser esquecido.
— Deuses são maravilhosos — disse Atsula, lentamente, como se estivesse
revelando um grande segredo. — Mas o coração é mais. Porque eles vêm dos nossos
corações, e para os nossos corações, um dia, voltarão...
E nem dá para dizer quanto tempo mais ela continuaria nessa blasfêmia, se não
tivesse sido interrompida de modo a não haver espaço para nenhuma discussão.
O rugido que vinha do oeste era tão forte que fez com que ouvidos sangrassem, e
as pessoas ficassem incapacitadas de escutar qualquer coisa durante algum tempo, que
ficassem temporariamente cegas e surdas, mas vivas, sabendo que tinham mais sorte
do que as tribos alojadas mais a oeste do que eles.
— Está bem — disse Atsula, mas não conseguia ouvir as palavras dentro de sua
cabeça.
Atsula morreu aos pés da cadeia de montanhas, quando o sol da primavera
estava em seu ápice. Ela não viveu para ver o Novo Mundo, e a tribo caminhou por
aquelas terras sem a sua mulher sagrada.
Escalaram as montanhas, e foram em direção ao sudoeste, até encontrarem um
vale com água fresca, e rios que transbordavam de peixes prateados, e cervos que
nunca tinham visto homens e eram tão mansos que era necessário cuspir e pedir
desculpas aos espíritos antes de matá-los.
Dalani deu à luz três meninos. Alguns diziam que Kalanu executou a magia final
e que conseguiu fazer a coisa de homem com a noiva dela, enquanto outros diziam que
o velho Gugwei não era tão velho a ponto de não poder fazer companhia a uma jovem
noiva, enquanto o marido estava fora e, certamente, depois que Gugwei morreu,
Dalani não teve mais filhos.
E as épocas de gelo vieram e foram embora. As pessoas se espalharam por toda
aquela terra, formaram novas tribos e escolheram novos totens: corvos e raposas,
preguiças e grandes gatos e búfalos, cada animal para marcar a identidade de uma
tribo, cada animal para representar um deus.
Os mamutes das novas terras eram maiores, mais lentos e mais tolos do que os
mamutes das planícies siberianas, e os cogumelos pungh, com suas sete manchas, não
eram encontrados nas novas terras, e Nunyunnini não falava mais com a tribo.
E na época dos netos dos netos de Dalani e Kalanu, um bando de guerreiros,
membros de uma tribo grande e próspera, voltando de uma expedição escravista no
norte para seus lares no sul, descobriu o vale do primeiro povo:
mataram a maior parte dos homens e levaram presas as mulheres e muitas das
crianças.
Uma dessas crianças, na esperança de obter clemência, levou-os até uma caverna
onde encontraram uma caveira de mamute, os restos esfarrapados de uma capa de pele
de mamute, uma xícara de madeira, e a cabeça conservada de Atsula, o oráculo.
Ao mesmo tempo em que alguns dos guerreiros na nova tribo queriam levar os
objetos sagrados consigo, roubando os deuses do primeiro povo e tomando seu poder,
outros foram contra a idéia, dizendo que não levariam nada além de má sorte e da
hostilidade de seu próprio deus (porque essas pessoas eram de uma tribo de corvo, e
os corvos são deuses invejosos).
Então jogaram os objetos montanha abaixo, para dentro de uma ravina profunda,
e levaram os sobreviventes do primeiro povo com eles em sua longa viagem para o sul.
E as tribos de corvos, e as tribos de raposas, ficaram cada vez mais poderosas naquela
terra, e logo Nunyunnini foi totalmente esquecido.
CHEGANDO À AMÉRICA 14000 a.C.
Estava frio, e escuro, quando a visão veio a ela, porque a luz do sol das terras
longínquas do norte era um momento cinzento e turvo no meio do dia que vinha, e ia,
e vinha de novo: um interlúdio entre escuridões.
Não fazia parte de uma grande tribo, em relação à maneira como esse tipo de
coisa era contada naquele tempo: eram nômades das Planícies do Norte. Eles tinham
um deus, que era a caveira de um mamute, cuja pele fora transformada em uma capa
tosca. Chamavam-no de Nunyunnini. Quando não estavam viajando, ele repousava em
uma armação de madeira, da altura de um homem.
Ela era a mulher sagrada da tribo, a guardiã dos segredos, e seu nome era Atsula,
a raposa. Atsula andava atrás dos dois homens da tribo que carregavam o deus em
cima de varas compridas, enrolado em peles de ursos, porque não deveria ser visto por
olhos profanos, nem em épocas que não eram sagradas.
Eles vagavam pela tundra, carregando suas tendas. A melhor das tendas era feita
de couro de caribu, e era a tenda sagrada, e havia quatro deles lá dentro:
Atsula, a sacerdotisa, Gugwei, o ancião da tribo, Yanu, o líder da guerra, e
Kalanu, a batedora. Ela os reuniu ali, no dia seguinte à sua visão.
Atsula ralou um pouco de líquen e jogou no fogo, depois jogou algumas folhas
secas com seu braço esquerdo debilitado: produziram fumaça, uma fumaça cinzenta
que fazia os olhos arderem, e soltavam um odor picante e estranho. Então pegou uma
xícara de madeira da plataforma e entregou a Gugwei. A xícara estava cheia até a
metade com um líquido amarelo-escuro.
Atsula encontrou os cogumelos pungh — cada um com sete manchas, e só uma
mulher verdadeiramente sagrada conseguia encontrar cogumelos com sete manchas —
e os colheu na escuridão da lua, para secá-los sobre uma tira de cartilagem de rena.
Ontem, antes de dormir, ela comeu as três partes de cima secas dos cogumelos.
Seus sonhos foram sobre coisas confusas e assustadoras, sobre luzes brilhantes que se
moviam rapidamente, sobre montanhas de pedra, cheias de luzes se projetando para
cima como estalagmites. No meio da noite ela acordou, suando, e precisando fazer
água. Agachou-se em cima da xícara de madeira e a encheu com sua urina. Então a
colocou do lado de fora da tenda, na neve, e voltou a dormir.
Quando acordou, tirou os torrões de gelo da xícara, deixando um líquido mais
escuro e mais concentrado no fundo.
Foi esse líquido que distribuiu, primeiro para Gugwei, depois para Yanu e para
Kalanu. Cada um deles tomou um grande gole do líquido, então Atsula tomou o
último trago. Ela engoliu, e despejou o que sobrou no chão na frente do deus deles,
uma libação para Nunyunnini.
Ficaram sentados dentro da tenda enfumaçada, esperando o deus falar. Do lado
de fora, na escuridão, o vento uivava e resfolegava.
Kalanu, a batedora, era uma mulher que se vestia e andava como um homem: até
tinha pegado Dalani, uma virgem de 14 anos, para ser sua esposa. Kalanu piscou os
olhos com força, então se levantou e andou até a caveira de mamute. Colocou a capa de
pele de mamute sobre si e ficou em pé, de maneira que sua cabeça ficasse dentro da
caveira de mamute.
— Há maldade na terra — disse Nunyunnini na voz de Kalanu. — Maldade tal
que, se vós permanecerdes aqui, na terra de vossas mães e das mães de vossas mães,
todos vós perecereis.
Os três ouvintes gemeram.
— Ë por causa das pessoas que nos escravizam? Ou por causa dos grandes
lobos? — perguntou Gugwei, de cabelos longos e brancos, e cujo rosto era tão
enrugado quanto a casca cinzenta de uma árvore espinhenta.
— Não são as pessoas que vos escravizam — disse Nunyunnini. — Não são os
grandes lobos.
— É uma onda de fome? Haverá escassez de alimento? — perguntou Gugwei.
Nunyunnini ficou em silêncio. Kalanu saiu da caveira e esperou junto com os outros.
Era a vez de Gugwei vestir a capa de pele de mamute e colocar a cabeça dentro
da caveira.
— Não uma escassez de alimento como as que vós conheceis — disse
Nunyunnini, através da boca de Gugwei. — Apesar de uma onda de fome vir a seguir.
— Então, o que é? — perguntou Yanu. — Eu não tenho medo. Vou me colocar
contra essa coisa. Nós temos lanças e pedras de arremessar. Deixe que uma centena de
guerreiros poderosos venha contra nós, ainda assim vamos prevalecer. Levaremos
todos até os pântanos e lá abriremos seus crânios com nossas pedras.
— Não c uma coisa humana — disse Nunyunnini na voz velha de Gugwei, —
Vai vir dos céus. Eu ouvi um barulho mais alto do que dez trovões, e nenhuma das
vossas lanças ou das vossas pedras poderá proteger-vos.
— Como podemos nos proteger? — perguntou Atsula. — Eu vi chamas nos céus.
Eu ouvi um barulho mais alto do que dez trovões. Eu vi florestas derrubadas e rios
ferventes.
— Ai... — disse Nunyunnini, mas não disse nada mais.
Gugwei saiu da caveira, curvando-se de maneira rígida, porque era um homem
velho e suas juntas estavam inchadas e cheias de nós.
Silêncio. Atsula jogou mais folhas no fogo, e a fumaça fez com que os olhos deles
lacrimejassem.
Então Yanu caminhou até a cabeça de mamute, colocou a capa em volta dos
ombros largos e encaixou a cabeça dentro da caveira. A voz dele ribombou:
— Vós deveis viajar na direção do sol, para onde o sol se levanta. Lá encontrareis
uma nova terra, onde estareis a salvo. Será uma longa jornada: a lua se inchará e se
esvaziará, morrerá e nascerá, duas vezes, e haverá escravizadores e bestas, mas eu vos
guiarei e vos manterei a salvo, se viajardes na direção do nascer do sol.
Atsula cuspiu na lama do chão e disse:
— Não.
Ela podia sentir o deus olhando para ela.
— Não. Vós sois um deus maldoso por nos dizer tal coisa. Morreremos. Todos
nós morreremos, e então, quem sobrará para carregá-lo de um lugar ao outro, para
levantar sua tenda, para untar vossas magníficas presas com gordura?
O deus não falou nada. Atsula e Yanu trocaram de lugar. O rosto de Atsula
olhava através dos ossos amarelados do mamute.
— Atsula não tem fé — disse Nunyunnini na voz de Atsula. — Deve morrer
antes que o restante da tribo chegue à nova terra, mas o resto deve sobreviver.
Acreditai em mim: há uma terra a leste despovoada. Essa terra deve ser vossa terra, e a
terra de vossos filhos, e a terra dos filhos de vossos filhos, durante várias gerações, e
sete setes. Mas, se fosse pela falta de fé de Atsula, vós ficaríeis aqui para sempre. De
manhã, desmontai vossas tendas e guardai vossos pertences, e caminhai em direção ao
sol nascente.
E Gugwei e Yanu e Kalanu inclinaram as cabeças e louvaram o poder e a
sabedoria de Nunyunnini.
A lua encheu e minguou e encheu e minguou mais uma vez. O povo da tribo
caminhava para o leste, em direção ao nascer do sol, exaurindo-se através dos ventos
gelados que entorpeciam a pele exposta. Nunyunnini fez uma promessa verdadeira a
eles: não perderiam ninguém da tribo na viagem, a não ser uma mulher durante o
trabalho de parto; e mulheres em trabalho de parto pertencem à lua, não a Nunyunnini.
Cruzaram a ponte entre as terras.
Kalanu tinha saído à primeira luz da manhã para abrir caminho. Agora o céu
estava escuro, e ela ainda não havia retornado, mas o céu noturno estava vívido com
suas luzes, fazendo nós, cintilando e rodopiando, fluindo e pulsando, branca e verde e
violeta e vermelha. Atsula e seu povo já tinham visto as luzes do norte antes, mas
ainda se assustavam com elas, e esse era um espetáculo como nunca viram antes.
Kalanu retornou a eles quando as luzes desenhavam formas e corriam pelo céu.
— Às vezes — ela disse a Atsula —, parece que eu poderia simplesmente abrir os
braços e cair no céu.
— Isso é porque você é batedora — disse Atsula, a sacerdotisa. — Quando você
morrer, cairá no céu e se transformará em uma estrela, para nos guiar como nos guiou
em vida.
— Há uma cadeia de montanhas de gelo a leste, montanhas altas — disse Kalanu,
com seus cabelos pretos como as penas dos corvos, compridos como um homem
usaria. — Podemos escalá-las, mas vai demorar vários dias.
— Você nos guiará com segurança — disse Atsula. — Eu morrerei ao sopé da
montanha, e esse será o sacrifício que os levará até as novas terras.
A oeste dali, nas terras de onde vieram, onde o sol tinha se posto horas antes,
enxergava-se um clarão de luz amarelada e doentia, mais clara do que um relâmpago,
mais clara do que a luz do dia. Era uma explosão de brilho puro que obrigou o povo
sobre a ponte entre as terras a cobrir os olhos e a vomitar e a gritar. As crianças
começaram a choramingar.
— Esta é a maldição sobre a qual Nunyunnini nos avisou — disse Gugwei, o
ancião. — Certamente ele é um deus sábio, além de poderoso.
— Ele é o melhor de todos os deuses — disse Kalanu. — Em nossa nova terra,
deveremos erguê-lo bem alto, e deveremos polir suas presas com óleo de peixe e
gordura de animal, e contar aos nossos filhos, e aos filhos dos nossos filhos e à sétima
geração de filhos dos nossos filhos, que Nunyunnini é o deus mais poderoso de todos,
e que nunca deverá ser esquecido.
— Deuses são maravilhosos — disse Atsula, lentamente, como se estivesse
revelando um grande segredo. — Mas o coração é mais. Porque eles vêm dos nossos
corações, e para os nossos corações, um dia, voltarão...
E nem dá para dizer quanto tempo mais ela continuaria nessa blasfêmia, se não
tivesse sido interrompida de modo a não haver espaço para nenhuma discussão.
O rugido que vinha do oeste era tão forte que fez com que ouvidos sangrassem, e
as pessoas ficassem incapacitadas de escutar qualquer coisa durante algum tempo, que
ficassem temporariamente cegas e surdas, mas vivas, sabendo que tinham mais sorte
do que as tribos alojadas mais a oeste do que eles.
— Está bem — disse Atsula, mas não conseguia ouvir as palavras dentro de sua
cabeça.
Atsula morreu aos pés da cadeia de montanhas, quando o sol da primavera
estava em seu ápice. Ela não viveu para ver o Novo Mundo, e a tribo caminhou por
aquelas terras sem a sua mulher sagrada.
Escalaram as montanhas, e foram em direção ao sudoeste, até encontrarem um
vale com água fresca, e rios que transbordavam de peixes prateados, e cervos que
nunca tinham visto homens e eram tão mansos que era necessário cuspir e pedir
desculpas aos espíritos antes de matá-los.
Dalani deu à luz três meninos. Alguns diziam que Kalanu executou a magia final
e que conseguiu fazer a coisa de homem com a noiva dela, enquanto outros diziam que
o velho Gugwei não era tão velho a ponto de não poder fazer companhia a uma jovem
noiva, enquanto o marido estava fora e, certamente, depois que Gugwei morreu,
Dalani não teve mais filhos.
E as épocas de gelo vieram e foram embora. As pessoas se espalharam por toda
aquela terra, formaram novas tribos e escolheram novos totens: corvos e raposas,
preguiças e grandes gatos e búfalos, cada animal para marcar a identidade de uma
tribo, cada animal para representar um deus.
Os mamutes das novas terras eram maiores, mais lentos e mais tolos do que os
mamutes das planícies siberianas, e os cogumelos pungh, com suas sete manchas, não
eram encontrados nas novas terras, e Nunyunnini não falava mais com a tribo.
E na época dos netos dos netos de Dalani e Kalanu, um bando de guerreiros,
membros de uma tribo grande e próspera, voltando de uma expedição escravista no
norte para seus lares no sul, descobriu o vale do primeiro povo:
mataram a maior parte dos homens e levaram presas as mulheres e muitas das
crianças.
Uma dessas crianças, na esperança de obter clemência, levou-os até uma caverna
onde encontraram uma caveira de mamute, os restos esfarrapados de uma capa de pele
de mamute, uma xícara de madeira, e a cabeça conservada de Atsula, o oráculo.
Ao mesmo tempo em que alguns dos guerreiros na nova tribo queriam levar os
objetos sagrados consigo, roubando os deuses do primeiro povo e tomando seu poder,
outros foram contra a idéia, dizendo que não levariam nada além de má sorte e da
hostilidade de seu próprio deus (porque essas pessoas eram de uma tribo de corvo, e
os corvos são deuses invejosos).
Então jogaram os objetos montanha abaixo, para dentro de uma ravina profunda,
e levaram os sobreviventes do primeiro povo com eles em sua longa viagem para o sul.
E as tribos de corvos, e as tribos de raposas, ficaram cada vez mais poderosas naquela
terra, e logo Nunyunnini foi totalmente esquecido.