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Dança - por Igor Fagundes

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24/11/2005
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São dois temas:

- DE APOLO E DIONISIO, A DANÇA: UMA HISTÓRIA (OU POÉTICA) POSSÍVEL

- DANÇA: POÉTICA E METAFÍSICA

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DE APOLO E DIONISIO, A DANÇA: UMA HISTÓRIA (OU POÉTICA) POSSÍVEL


O texto a seguir é resultado de anotações, intuições, reflexões, memórias e provocações para o estudo e pesquisa da História da Dança em sala de aula. Daí, um rascunho, livre ainda (talvez, livre para sempre) de citações e referências bibliográficas, porque, por ora, pré-ocupado em localizar as questões.

Para pensar a história, o corpo, a dança de nossa cultura (nomeada Ocidental), há que se partir dos gregos. Neles se estabelecem as bases de nosso modo de pensar, narrar, compreender, corresponder ao real. E de dançar a partir e em nome desses alicerces. Neles estão os fundamentos de toda religião, ciência e arte posteriores. Isso também implica que, antes dessas fundamentações, existia entre os gregos uma experiência de arte, de corpo, do estar no mundo, originária: livre ainda de tudo isso que culminará mais tarde na historiografia oficial, nas teorias da arte que conhecemos.
Por um lado, teríamos, assim, a arte – a dança – contada e praticada segundo motivações e circunstâncias de cada época (leia-se: segundo os interesses e discursos de cada classe ou grupo dominante; daqueles que detêm a escrita, o poder do sentido, de verdade: a filosofia). O corpo antigo e medieval, as bases renascentistas do balé, o romantismo e o modernismo da dança seriam, desse modo, lidos – escritos – segundo a força de pensamento, então, hegemônica nas disputas intraculturais (arte/mito x filosofia, mito x religião, plebeus x igreja/nobres; nobres x burguesia; proletariado x burguesia; homens x mulheres etc.). Urgiria, por outro lado, o desafio de – suspeitando dessa historiografia (dessa escrita – a rigor, tendenciosa – da história), contar, praticar, viver a arte e a dança a partir de sua proveniência poética, originária: a partir do próprio corpo, ou melhor, do corpo vivo, cheio da vida dos outros corpos – o corpo na natureza, a natureza-corpo, todo este corporificar-com, este se abrir, esta abertura, excesso. Corpo que, manifestando-se, manifesta no seu dar-se o ainda não dado, o já não mais – o mistério, o escape e a fonte – da voz, da palavra, do movimento, do que está se dando. Corpo que, na voz, na palavra, no movimento, nos conduz ao princípio de toda criação e descriação: vida-morte. A um só tempo. O corpo poético.
Na História do Ocidente, cada um dos pensadores que se opuseram aos discursos dominantes da cultura e asfixiantes do corpo (porque calcados na abstração do real, na sua conceituação, na correspondência do sensível a alguma ideia, não na concreta experiência do ser) passou e passa, de algum modo, pelas narrativas mítico-poéticas eminentemente orais (ainda não escritas) fundadoras da arte e da cultura no Ocidente. Fundadoras, outrossim, da história, porque lugar da memória. Aqui, não nos referimos só aos filósofos (como Nietzsche, que, partindo aos gregos para criticar a filosofia apartada da arte, resgatou a tensão entre os mitos de Dionísio e Apolo como a provocação vital do artístico), mas aos próprios artistas pensadores da dança no fim do século XIX e início do XX. Vivido originalmente como e no corpo vivo, sonoro, rítmico e pulsante, antes de propriamente (e para propriamente gerar) a palavra escrita, o mítico – a poesia, a dança, a música – funda uma história primeiramente de gesto, oralidade, como gesto: oralidade e silêncio.
Por tudo isso, queremos partir, aqui, no sentido de historiar a dança, do que no corpo é seu autêntico princípio histórico (na mesma medida que o princípio do histórico é o próprio corpo): da terra, da natureza, do que, sendo, vindo a ser, deixando de ser, instaura espaço-tempo, isto é, linguagem, sentido, presença, mundo, enquanto teima ainda perder sentido, ser vertigem, ausência, inominável: sagrado. Nasceria a cultura neste cuidado, eminentemente humano, de corresponder a tal tempo-espaço como presença de ausência e ausência de presença: à vida, à morte. Zelar pelos mundos possíveis que afirmem e perpetuem as aberturas, os nascimentos incessantes dos corpos que os gregos chamaram de ser (to on). Nessa circunstância, o homem chama por um deus quando aberto ao que o chama a ser corpo; ao que, no corpo, é chamado para ser. O homem nomeia o que do nada, do silêncio, vem, como força corporificadora, possessão, dança: nomear o silêncio quando ele, sendo, já está em dança, ou simplesmente, é dança; quando ele dança! Força realizadora e desrealizadora de nós mesmos, da vida de nossos corpos, porque a força da terra mesma que, para vingar, frutificar, florescer, dependerá de nosso cultivo, culto, colheita, acolhimento. Por isso, muitos os deuses, muitos as possibilidades de manifestação da força da terra e seu acolhimento no corpo e como o corpo do homem: muitas as corporificaçãos, rostos, gestos, falas do ser.
Nesse contexto, Dionísio nasceria como o deus grego da fertilização da terra, da evocação de sua exuberância ou fartura, ou excesso, ou do extremo ser de tudo o que, morrendo, abismando-se, é con-fusão: o des-limite telúrico, a perda (de corpo!), a entrega, a plenitude do máximo de ser, que é não ser. Este híbrido de vida e morte (do dar-se completamente, entregar-se excessivamente a ponto do perfeito ser o desfeito, o desmesurado). Essa ambiguidade. Essa mestiçagem de euforia, êxtase e embriaguez. Dionísio, o deus trágico E o deus cômico por excelência. Será dialogando com o dionisíaco enquanto princípio da vida na morte, na entrega, na máxima doação, na perda de si para o que é já sem-tamanho (e, logo, impulso e empuxo dos movimentos), que tanto os filósofos como os artistas da dança do fim do século XIX e início do século XX buscarão resgatar o corpo, libertando-o das amarras, dos modelos, dos moldes, dos tamanhos pré-definidos. Um corpo livre dos símbolos que o co-agem, que o moralizam. Como nossa cultura foi e ainda é, sobremaneira, a busca pelo fundamento, pela lei, pelo padrão, pela forma que per-faz, que per-forma, que per-facciona, que torna perfeito (bemacabado)os corpos, as ações, o pensamento, rumo ao progresso, ao paraíso, à luz, subordinou-se a dança a esses imperativos. Quando aceita porque ora útil, desvalorizada porque inútil – motivações políticas, religiosas, aristocráticas, burguesas vão determinando o lugar da dança (a sua serventia), até chegar a uma crítica dessa dança representativa de um fora, isto é, servil: dança-objeto, dança objetiva, conforme, por exemplo, veríamos em Isadora Duncan nos EUA (inspirada pelos russos e pelo romantismo alemão).
Isadora Duncan buscará trazer de volta a potência dionisíaco do corpo, porque, até agora, teria predominado o que nele é correspondência à forma perfeita, à ordem e não correspondência ao inacabado de si próprio e que, portanto, por construir-se, prenuncia sua liberdade. Leitora de Nietzsche (grande crítico da moral e defensor do corpo no século XIX), Duncan criticará a contraparte mitológica de Dioniso no mundo grego antigo: Apolo. Quando, hoje, chamamos alguém de deus grego, o que dizemos, afinal? Reportamos o belo, mais que isso, o belo compreendido como representação ou expressão da perfeição, da harmonia, da simetria, da ordem, da medida exata, do preciso contorno, da razão, da ideia, do ideal. O corpo ideal. Contra este corpo ideal proclamado pela e para a dança, Duncan se rebela. Mas tal corpo idealizado e idealizador, assinalado no Renascimento Italiano, remontaria, na verdade, ao renascer de uma Grécia não mais na sua proveniência poético-mítica, a saber, dionisíaca. A Grécia Clássica é aquela em que Dioniso já se terá perdido para Apolo (por um Apolo também já pré-compreendido de determinado modo pela filosofia). Não a que comemora o corpo motivado pelas forças concretas, titânicas, da natureza. Não o cavalo, mensageiro, vate, hóspede do que, na natureza, é o sagrado, a experiência de ser no nada. Não o corpo possuído por um deus que, assim, sabe dançar; que só é ao dançar: no movimento, como movimentação – este vir a ser, tal desvelar ou re-velar – permanente. A coincidência do divino como dança ou sem dança (como incorporação ou sem corpo), que nos remontaria a Nietzche, se torna decisiva para compreendermos a experiência original do sagrado como a do ser e não ser (vida-morte) em movimento – corpo! dança! canto! – que se interrompe quando da interrupção do próprio movimento (do ser!) em nome da localização de um começo e um fim (da entificação dos tempos, dos lugares, ou seja, da pré-conceituação de um aqui e lá, abaixo e acima, céu e terra, carne e espírito, mundo sensível e mundo intelig´viel). Outrossim, em nome da hora em o que movimento começa (é causado, o que o causa?) e termina (aonde nos leva? para que nos leva?); da hora em que não há movimento e, portanto, a coisa está na perfeição, quer dizer, fora do movimento, fora da dança. No imóvel, no sem-mutabilidade, no sem matéria, sem maternidade, sem maturação, sem nem mais apodrecimento e, por isso mesmo, perene, definitiva e exemplo, modelo de tudo que perserve imperfeito, ou melhor, de tudo que perserve (em) dança. Junto, portanto, de uma coisa, uma razão, ou fundamento, um Deus que não dança. Se dançar, na ultrapassagm dos contornos, e na invenção de novos, é estender-se e recolher-se, alterar-se e alterar, intensificar, pulsar, o sopro de todo e para todo ir e vir. Naquele momento clássico da Grécia, aceita, então, uma dança que expressasse, que representasse, que confirmasse esta natureza feita ideia, tal natureza ideal, divina enquanto "divino" for transcender o próprio corpo (perder a corporeidade como a própria transcendência que o rito, canto, dança - dionisíacos - já convocariam: da terra e para a terra, do corpo para o corpo, do obscuro para o obscuro, tal trans-cendência em que a luz, apenas um ínterim, a passagem (trans-) de todo sendo(-cendência), e jamais o caminho progressivo e ideal do obscuro para a luz). Não à toa, a palavra “Deus” participaria da mesma raiz de “dia” como entre (o entre ser e não ser, o claro e o escuro, desvelamento e velamento; entre o que vem a aparecer, amanhecer, ser luz, enquanto, a um só tempo, já se perdendo, perdido, a escurecer, anoitecer e a ter na noite sua fonte e duração). “Dia” como o que é próprio do entre e só porque entre (ser e não ser): o divino. Divinare: deixar vir. Quer dizer: deixar de ser (ser ausência de presença) para continuar vir a ser (ser a presença da ausência) - tal dinâmica da criação, da origem.
A Grécia apolínea separa luz e sombra, idealiza uma dissociabilidade. Logo, compreende também que cosmo e caos não se co-pertencem: o caos – alimento do movimento e para a transformação do cosmo – passa a ser seu veneno, sua destruição (e não reserva). Desse modo, o cosmo se confundirá, mais tarde, com a própria razão. E o caos, a e.moção, a co.moção, o que bagunça, mexe, muda o corpo: o que o altera, o põe para fora de si, dos eixos, desorientando-o, i. e, roubando-lhe o oriente, o ideal, aideia.
Com o advento da escrita alfabética, não só o corpo, a vida, os mitos se sistematizam, ou seja, ganham orientação: toda emoção é medida, tem medida, conceito, ideia e só na ideia e no conceito nos livramos dela (da emoção, porquanto já razão!) e a redimimos porque redimimos – re-mediamos – o corpo. A escrita organiza, sistematiza, lineariza, dá luz, visualidade à mistura de possibilidades de dialogar com a natureza; isto é, desfaz a confusão, a multiplicidade, dando-lhe unidade enquanto síntese: os muitos deuses possíveis, quer dizer, as muitas forças da terra que no homem habitam ganham uma concatenação, um panteão. Assim, de titânicos, telúricos, caóticos, os deuses, passando a olímpicos, a demasiadamente humanos, se tornam, de tal modo, idealizados, que, expulsos cada vez mais do caos da terra, se transferem para o cosmo celeste, onde os homens podem ver, se especular nessa ordem ou cosmogonia, ou teogonia. O céu organizado como espelho humano. Os deuses, transportados para os próprios planetas em Roma, comemoram na verdade um nascente antropocentrismo. Até, mais tarde, o pensamento evolutivo e orientado entender necessário localizar a essência de todas essas essências, o deus de todos os deuses (fazer a síntese das sínteses), fazendo com que o politeísmo chegasse ao monoteísmo salvador que conhecemos. Tudo isso, de alguma forma, vitória de Apolo contra Dionísio: vitória da compreensão dethéos (termo grego que está na raiz do teísmo) como experiência de luz e visão separada da sombra, do corpo, e não o théos originário, o qual reside na palavraentusiasmo: a própria possessão, incorporação, encantamento dos corpos que veem, mas não veem tudo, porque tomados, tocados pelo não visto, pelo invisível, pelo nada, pelo aberto de todo ser que é não ser: dança. Nossa dança ocidental, no entanto, até o século XIX, presa ao que no corpo é ente, ous eja, algo que, uma vez dado, objetivado, se divide, é dois: carne e espírito, aparência e essência, essas medidas simbólicas.
O simbólico é precisamente isto que junta, que reúne, isto é, une de novo, ou seja, redime, salva as separações inventadas como artifícios (veja-se: são artificiais, não naturais, não são a natureza imediatamente). O simbólico religa as metades. É funcional. É o que vale por, ou como sinal de algo fora, ausente nele; ou seja, algo para o qual ele aponta, que está fora do corpo; algo, portanto, que só é se justificado por um conteúdo; na verdade, algo que informa, que traduz um conteúdo, um conceito, uma essência, uma ideia. Por baixo. Ou acima. Se a religião – como religação – infla o homem de símbolos, de metades (céu e inferno) para que o corpo se salve quando a responder, por exemplo, pela luz deste espírito santo (operando o religare como salvação do próprio corpo, fundamentação e conclusão da vida sensível e mortal), a ciência também se vale de uma filosofia das ideias, das formas puras, das lógicas, das compartimentações, das medidas como chave para a redenção dos corpos – para o anterior e o ulterior, o fundamento e o fim de sua dança! Ela teima a síntese, o símbolo – a reunião – das peças, dos fragmentos em nome do esclarecimento, do que, não à toa, se chamará iluminismo: progresso da civilização, libertação da barbárie, do dionisíaco. Desse modo, o simbólico como a visualização de uma parte na outra e, ambas, reunidas, corporificando uma ideia e idealizando um corpo; aí, Apolo como mito de tal simetria ou harmonização.
Por outro lado, diverso do simbólico, o diabólico (dia-bolus, dia-ballein) – o que lança (-ballein, -bolus) os corpos no entre, no dia- (no deus!?), na liminaridade de amanhecer e anoitecer, desvelo e véu. Diabólica, originariamente, a experiência do ser e não ser no humano, a experiência do próprio divino, do próprio advir, da própria origem adjunta do homem, da própria criação no homem e que o homem é. Diabólico, o que o lança na fronteira, na concretude, na dobra de vida e morte de onde tudo se desdobra; de onde tudo pode eventualmente, ser dois, duplo, por símbolos, a posteriori. Desdobramento de um primeiramente con-fuso. Entender Dionísio como a figura grega essencial do diabólico não apenas vem desmoralizar a noção do diabo – tornada, ironicamente, mais um símbolo, uma das metades do sistema- Igreja; o diabo como a contraparte da luz, do bem, da verdade: a sombra, o escuro, o mal. Entender Dionísio na redescoberta do diabo possibilita, sim, um caminho para pensar a dança desde a sua origem diabólica, dionisíaca. Na palavra dia-ballein, temos –ballei, que,no latim, bolus, vai culminar em palavras mais recentes ou familiares como bola, ball, ballet. Porque diz de um lançar(-se); de um pôr-se junto de. No caso, o lançamento no entre, que o diabólico é, diz o humano justamente como co-moção, movimento junto de, conjunção de movimento, alteração, giro: a experiência da diferença, do estar em di-ferimento, noferimento, na abertura do corpo, no seu céu, ou deslimite, que é onde (ou sem onde) pode haver e ser toda inter-ferência, todo in-ferus (inferno). Ferus, em latim, significa condução. Daí, o corpo, sendo, ser inferno. Enquanto se conduz, enquanto existe, enquanto há doação de limites para ser. Enquanto – no limite – o ser ainda e sempre se ultrapassa, se supera, avança e perde limite, rumo a outro. Enquanto houver limite, há corpo, há existência, transformação, conflito, diálogo, procura, encontro. O corpo, como o inferno do ser (o ser, como o céu – a abertura, o não ser, o nada ou in-finite do corpo): o lugar, a hora, a morada em que a natureza, aberta, pura abertura, ou céu, acontece. O corpo, assim, entre céu e inferno, um céu e um inferno, infinito e limite, abertura e contorno. Isto, a terra, a natureza, o sempre natal, nativo ou nascente: céu e inferno! O corpo - divino quando diabólico e vice-versa. Eis o profano não mais como o contrário do sagrado. Sem moralidade de bem e mal. Sem separação de um lugar superior, céu; e um inferior, o inferno. Porque toda separação artificial, hierarquizante. Estando tudo se alterando, em movimento, se diferindo, se di-ferindo, se abrindo no nada, no ainda não, no já não mais, cada coisa caminho no céu, no sem-tamanho, no imenso (no sem medida), desta e para esta imensidão; isto é, se conduz, isto é, é inferno entre céus.
A dança, por tudo isso, antes de simbólica (ou seja: antes de ser a expressão de um eu; ou seja, a reunião do que se mostra a uma essência por trás, por dentro do corpo; ou: antes de síntese de dentro e fora; antes de expressão de um sujeito; antes de representação de uma idéia; antes de representação de um deus; antes de aparência de uma essência; antes de adequação a uma juízo prévio; antes de infernal de todo céu; antes de obediência a um céu fora da terra, fora do corpo; antes de viver da reunião de duplos dados ou pré-dados) é, por excelência, diabólica. E só porque dia-bólica, lançada no i-mediato de ser e não ser, em que tudo se transforma, se modifica, se cria, se descria, renasce, e morre, é sagrada: sem margens e em toda margem que o corpo, poroso, permeável, provisório, permanece como nossa imediação (leia-se: i-mediação). Aí, ela atende ao princípio poético, criativo, do dionisíaco, sem o qual não existe o apolíneo. Como sem o diabólico não há discurso simbólico – escrita, representação, conceito, lógica – possível.
Desse modo, nasce uma cultura quando os homens se lançam, se entregam ao princípio de seu próprio corpo. À ausência. Que é, propriamente, o seu excesso. O homem precisa comer, senão morre. O homem precisa de ar, senão morre. Vive, porque morre. Assim, cuidando da terra, lançando às aberturas da terra, o homem a fertiliza e é por ela fertilizado. O homem, então, é comemoração e angústia. Alegria, euforia e dor –excessivos. O homem é – excessivamente. Ser excessivamente é rogar à dionisíaca ausência de contornos, em nome de algum, por uma chance de princípio. No entanto, assim como o diabo passou, do âmbito concreto do ser humano a mais um símbolo, mais uma abstração (a do que, no homem, designa o falso, mentiroso, o oposto da verdade, da luz), Dioniso também se torna um símbolo: Dioniso é apolinizado! Dioniso é raciocinado como irracional, o frívolo, o inconsistente, o nada sério, ou o pecaminoso, o herege. Ou seja: a Dioniso é relegado um lugar, simbólico, do desregramento, da imoralidade, de erro, na medida em que já localizado, idealizado um perfeito, um lugar verdadeiro, uma lei, ou moral para tudo. E para ele.
No entanto, no princípio, sabemos, os homens pisando a uva na praça com um corpo que, vigoroso, vibrante, sedento de vida, faminto de ser, dança, dança ao pisar, dança por pisar; por dançar, pisa. Quando cansados os dançarinos no centro, os que ao redor se mantêm sentados e cantam para que o movimento de pisar a uva permaneça vivo, comemorável, com aqueles se revezam. Aí, o surgimento propriamente do teatro – neste rascunho de palco e plateia, onde, na verdade, todos são atores. Cantores. Dançarinos. Especulando-se. Lançados no que se dá a ver e no que não se dá a ver e, por isso, a isso, se roga. Todos devotos do não visto, não sabido, não cultivado ou sem culto (o-culto) da terra: convocadores da sua força. Do seu movimento. À espera de que uva vire vinho. De que a natureza se embriague para, assim, transformada, fermentada, transforme e fermente os homens. Essas danças em homenagem a Dioniso são as mais antigas conhecidas, registradas em vasos gregos. Remontam a corpos flexíveis, movediços, com passos corridos, escorregadios, braços estendidos, saltos com as pernas esticadas ou não, torso, pescoço e cabeça jogados para trás. Misto de cultivo e culto. Assim, nasce a cultura (colere): como a colheita desta arte em que o humano se obra, se constrói. Daí que, primeiramente, não haja gêneros artísticos definidos, pré-definidos. A experiência poética da vida, da terra, do corpo, é riso e choro, comédia e drama – um não é sem o outro. O corpo, tal mistura. A vida, essencialmente, tragicômica. Por isso, dionisíaca, nos seus excessos e extremos imediatos. Daí que, antes da apolinização da Grécia, que divide o fazer artístico em gêneros – como a comédia e a tragédia (modelando a dança segundo cada propósito pré-definido), havia este proto-gênero ou culto originário (o dittirrambo) de Dioniso como a primeira manifestação poético-corporificante: o Satyricon (o qual se chamará, bem mais tarde, dedrama satírico). O conúbio do trágico e do cômico. Sátiros (ou faunos) eram os membros desse coro, da encenação dessa indecidilidade do homem: ser e não ser animal, ter ou não ter anima, ânimo, disposição, sopro, respiração, instinto, ímpeto, impulso, pulsão. Meio homem, meio bode, os faunos. O pertencimento do humano às forças da natureza, às forças animais, à anima – alma em latim e tradução de psyché grego: sopro de vida. Por isso, dionisíaco é o trânsito da inspiração e expiração, da expansão vital e da contração mortal. Contudo, com a cultura pós-escrita, pós-socrática, pós-Platão, pós-Aristóteles, o rito de Dioniso vai perdendo o valor, ou mesmo seu poder de verdade poética, de revelação, de experiência sagrada. Na medida em que o sagrado já está pré-definido além dos corpos, como outra coisa que não é corpo (o ser deles todos), cada um, alguém, a dança, o canto, a palavra, em vez de fundarem a cultura, agora não mais que a expressam ou representam uma cultura, uma sociedade já definida, já – digamos – legalizada, sistematizada. Assim, o sagrado do teatro dionisíaco passa a ritual civil, cívico, exercido em determinadas datas como forma de memória do passado do povo grego. Perde-se a comunhão com o fenômeno criador, para apenas o representar, se referir a ele
Encartilhando os corpos para a ordem, para a medida, para a cidade (polis) e, portanto, para as guerras, começa, inclusive, a história da Educação Física. Não mais podem, diz Platão, os poetas, os mitos educarem o povo pela e como possessão – dança, canto, palavra poética do corpo. A dança será expressão ou representação dos deuses na medida em que, sistemática, já coincidir com ideias puras: a Lei, a simetria, a harmonia, o equilíbrio. Com o discurso simbólico da Grécia clássica, o diabólico doSatyricon dionisíaco compromete a experiência integral do corpo com a divisão deste em partes nobres, superiores, e partes baixas, inferiores. É neste sentido que serão gerados os gêneros da tragédia e da comédia – o desdobramento apolíneo da dobra dionisíaca. No domínio do trágico sobre o cômico na Grécia, acaba Dioniso subjugado à comédia, porquanto exaltação do que, nos homens, é inferior, e não a parte nobre, a que cuida da ideia, do ideal. No entanto, ambas as palavras – comédia e tragédia – provêm do rito originário do coro satírico: tragédia vem de tragos, “bode” – animal oferecido ao deus na ocasião de sua evocação; mais que isso, animal personificado no coro através da figura mestiça dos sátiros. Já “comédia” provém de komóida, na qual kómos é o falo, o pênis como signo da fertilização da terra, da possibilidade de deixar vir o originário da natureza. Nesse culto ao falo, que nos remonta às “falóforas”, a própria noção de carnaval advirá como ocasião da evocação das forças ocultas e eróticas – pagãs – da terra, dos demônios (das forças!) da fertilização, exaltados – manifestos e ocultos – por máscaras nos blocos comemorativos. Naturalmente, aí, será associado o carnaval com a quaresma, bem como com o Natal – a própria Igreja instauraria (na adaptação do calendário judeu ao romano) a data de nascimento de Cristo como 25 de setembro para conter a festa pagã – entre 22 e 29 – que ritualizava a passagem dionisíaca do inverno para a primavera. Mais tarde, Arlequim (hellequin: o senhor do inferno) constituirá a permanência transfigurada do próprio Dioniso; estereotipado depois – fadado a umcômico sem trágico – na França quando de sua conversão na figura do Pierrot.
Na medida em que a tragédia passa a exaltar homens superiores a nós (os que se sacrificam para viver, mas morrem segundo a lei dos deuses), a comédia exaltaria homens inferiores a nós, de quem riríamos quando na catarse daquilo que em nós mesmos se reconhece, mas abominamos, porquanto revela nossa imperfeição.Dionísio, apesar de estar na raiz do trágico, padece na contraparte cômica e no que ainda resta, na Grécia antiga, do drama satírico. O que significa que a dança se fará mais presente e mais viva e mais pulsante e mais participante e valorada na comédia e no Satyricon do que propriamente na tragédia. Com Arlequim (hellequin), o senhor dos infernos (conforme a etimologia), a co-presença do trágico e do cômico, o riso dramático e assustador, a monstruosidade engraçada e galhofeira. O astuto. O rei das confusões. Das ambiguidades. Terá no carnaval a chance de perpetuação do pagão, do – no sentido poético em voga – diabólico na dança ocidental. Com a caricatura moral do Ocidente, e numa França já pré-iluminista, Arlequim como Pierrot retirará a potencialidade trágica do carnaval, se nele, seu sentido sagrado já perdido. Agora, uma festa sacrílega, herege, catártica, do riso e do sexo repreendidos por uma lógica ou religião, sem poética.
Não obstante, os homens dominavam a cultura grega e, na comédia, na exaltação do inferior, as mulheres aparentemente ganhariam mais voz, embora não exatamente corpo, chance de encenação. Na chamada “Assembleia das mulheres”, de Aristófanes, cria-se o cômico da tomada do poder pelas mulheres. No entanto, a peça é toda feita por homens que se passam por elas. Estas, fora da experiência cênica propriamente, mas, ao mesmo tempo, evocadas no gênero destinado a questões menos nobres. As mulheres, assim, menos relevadas. Menos nobres. Na Grécia, a dança, o teatro, eminentemente, masculinos.
As mulheres só viriam a ocupar, com mais vigor, a dança, quando, no Império Romano, os homens, ocupados com guerras e desejos por terra, passam a distrair-se ou comemorar suas conquistas com sírias e africanas em banquetes. É neste cenário de banalização da dança, do corpo, da arte, do sagrado, realizado pelo Império Romano, que a Igreja encontrará os seres humanos. Dioniso, fadado à figura do Baco, das festas romanas abastecidas por álcool e orgias. Ademais, a dança vivida nos circos, entre disputas-espetáculos de homens com animais ferozes, competições de gladiadores. Entre guerras e períodos de fome, o Império Romano dá a seu povo pão e circo. Neste aparato circense do estrito entretenimento (e não mais do que, poeticamente, se obra), a dança; sobretudo, constituída, predominantemente, pela pantomima, pela mímica. Afinal, na cosmopolita Roma, de povos falantes de diversas línguas, era necessário buscar uma coesão via elementos sem escrita, a fim de uma comunicação mais funcional, apelativa. Será tal dança de pantomimas, mimos e circo a base da Commédia dell’Arteainda por vir.
Na queda do Império Romano, a Igreja se depara, por um lado, com a dança envolta pelo cômico, pelo divertimento, pelo erótico e pelo pornográfico e precisa criar suas leis de controle que diabolizarão a experiência. Por outro, na tragédia, se depara com a inexistência do final feliz; necessário suprir o destino trágico dos homens pelas narrativas da Bíblica e, principalmente, de Cristo – o trágico, agora, como um sacrifício para a salvação, para a vida eterna, para o paraíso, para um happy end. Dessa forma, a redenção do cômico pelo trágico reverberará, nos primórdios do mundo medieval, como redenção do frívolo pelo perene, do pecado pela moral, do diabo por deus (Cristo), do inferno (Dionísio/diabo) pelo céu (este Deus apolinizado). A Igreja herda os símbolos greco-romanos e deles se apropria (deles se vale para interpretar a bíblia como a nova constituição de leis de então). Era preciso, assim, criar o infrator exemplar: o diabo. Não à toa, a imagem diabólica assimila o bode dionisíaco, como também o perpetua como a confusão, com a mistura, o caos (politeísta? pagão!), síncrese de elementos outros do greco-romanismo, tais como o tridente de Netuno, a evocar o mar revolto, o mar arredio, o traiçoeiro. Aquele homem, nesse sentido, desobediente às leis da Igreja, ao deus único e soberano que ela propõe, será, justamente, o possuído, o tomado por estas forças incontroláveis, do instinto ou gênio (tomado ironicamente pelo que, na Grécia, era arcaicamente o próprio sagrado!). Entre os gregos, daemoneon era a presença do sagrado no corpo, a voz inominável que leva o humano à ação, essa força indomesticável, que nos empurra, que nos faz ser. Para a Igreja, o homem que não obedece, que não ouve ninguém, que só ouve sua voz mais íntima e a um só tempo estrangeira, que age por instinto, por força maior do que sua vontade ou consciência ou razão, será justamente o que ouve o demônio. O arredio. Compreendendo a dança como a manifestação próprio do daimon grego (o âmbito poético em que a palavra “inferno” se lê) acabará a própria endemoniada (na acepção moralizante) no mundo medieval.
Quando, aqui, dizemos do homem que ouve seu gênio, do homem que é genioso, remontamos também a um deus latino, herdeiro do Hermes grego (que era, afinal, traiçoeiro, ambíguo, deus das encruzilhadas, da linguagem, da incorporação), chamado Gênio. Gênio era, entre os latinos, o deus confiado a nós na hora do nascimento. Nem mau nem bom porquanto o responsável pela sua humanidade, em si mesma, contraditória, anterior e ulterior a toda moralidade. Gênio é apropriado pela Igreja e se dividirá em dois: o anjo da guarda (bom e pacífico: apolíneo) e o Lúcifer (o mau e desordeiro: o dionisíaco). Naturalmente, Jesus Cristo também ficará, na predominância simbólica da luz sobre a sombra, da ordem sobre o caos, apolinizado. A contraparte dionisíaca, intensiva, potente, pulsante, transformadora de Cristo é anulada porque associada justamente ao que seria o seu inimigo, enquanto inimigo de Deus.
O mais curioso é que, nos primeiros anos depois de Cristo, seus cultos eram dançados; isto é: Jesus manifestava um deus que sabe (ou que é ao) dançar. O primeiro hino a Jesus é uma dança sagrada. A eucaristia, ainda hoje, herda traços da gesticulação, da corporeidade (resgatada, sobretudo, pelo protestantismo e pela vertente carismática do catolicismo, liturgias onde a missa é dançada com os pés, mãos, mover e cantar dos corpos). O próprio padre traz consigo, no seu rito, uma dança repetida e revivida através dos tempos. Para São Basílio, os anjos não sabiam falar, comunicavam-se com os homens por dança.
Todavia, as traduções das palavras gregas (presentes na Bíblia e na matriz filosófica das teologias) para as latinas foram realizadas, tendenciosamente, pela Igreja. Daí que céu, inferno, verdade, bem, diabo, deus tenham perdido sua veste poético-originária para se rotularam em conceitos, em símbolos perdurados até os dias de hoje. No começo da Idade Média, servos e nobres não sabiam ler. Somente os monges eram letrados e tinham acesso às obras – as clássicas, greco-romanas e as bíblicas. Desse modo, a Igreja dominava a ciência e as artes. Na verdade, a palavra “arte” só surge – sob o latim ars, tradução do grego techné – no século XIII, com o sentido de engano, malícia. Daí o praticante de arte, um arteiro (porque na prévia associação do artístico à dimensão do mundo sensível, falso, caótico, dionisíaco, da vida), porque já o sentido de técnico se teria submetido à noção – apolínea – de artesão. A palavra artista só aparecerá no século XVI, quando da substituição de deus pelo sujeito humano como fonte da criação, isto é, com a invenção da noção de autor como um demiurgo, alguém que tem um dom divino, um dom individual. No entanto, essa acepção é tardia e pertence à aristocracia da Idade Moderna. No medievo, o que chamamos de arte na verdade só se mantém enquanto não engano, não malícia, mas representação de Deus.
Na Idade Média, as encenações havia em três modalidades: os Mistérios (dramas litúrgicos, narrando Natal, Paixão de Cristo etc.), os Milagres (encenação da vida da Virgem, dos santos etc.) e as Moralidades (enredos onde figuras com defeitos descobrem virtuais e assimilam a moral). De todo modo, os mosteiros eram o lugar, célebre, da cultura. Dos livros. E, logo, da escrita da história. A história do corpo contada pela Igreja, comprometendo a própria história da dança. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino eram os grandes escritores da época. O primeiro, apropriando-se de Platão, promulgou seu ideal ascético – a crença de que a aquisição da verdade se daria por iluminação divina. Seguido a este chamado período patrístico, virá a fase escolástica. Se é Platão quem cria a Academia como lugar de recolhimento do corpo em busca da verdade suprassenível; o modelo de escola (que não havia na Grécia) é, essencialmente, medieval. Há uma preocupação cada vez maior com a reflexão teológico-filosófica na ocasião que surgem as escolas monaicas, catedrais e universidades. Dado o analfabetismo da maior parte da população, esculturas, arquiteturas viriam a representar – mais do que isso: a narrar, explicar, moralizar, ensinar – Deus aos homens. Nas pinturas, os corpos se apresentavam com muita roupa. Era preciso esconder o corpo, para revelar a alma, para libertá-la da prisão da carne. Outro modo de educar pela fé cristã foi a música. É com os escolásticos que se desenvolvem os estudos e padrões de música como nunca antes, a exemplo da consolidação do sistema tonal. Tudo em nome da salvação dos que não sabiam ler.
O corpo assume uma condição paradoxal. Se, por um lado, necessário reprimi-lo, escondê-lo, em prol da alma; por outro, glorificado – eis o corpo sofredor de Cristo, tabernáculo do Espírito Santo, conforme São Paulo. Na denominada reforma gregoriana, as condutas dos homens, finalmente, regulamentadas. Até então, poligâmicos existiam por todos os lados. Padres disputavam mulheres. Clérigos viviam em regime de concubinato. São banidas as termas, o esporte, o teatro dos gregos e romanos; os anfiteatros e jogos de estádio se tornam lugares para disputas e debates de espírito teológico. Trata-se de renunciar ao prazer e às tentações, praticar jejum, abstinência, automartírio, para ascender. Chorar é considerado melhor e mais nobre do que rir. O choro, assim, uma dádiva. O casamento surge como alternativa para diminuir o desejo por sexo – na medida em que o coito fosse para reproduzir. No entanto, é o homem o dominador sexual. Jamais a mulher, considerada inferior (muito embora Tomás de Aquino tivesse tentado igualá-los perante Deus).
Apesar de tudo, a Igreja compreendia que era preciso, na mesma medida da repressão, estimular o desejo dos homens pelo prazer, estimular os homens a pecar, para neles desenvolver a culpa e, logo, a confissão como instrumento de controle. É neste sentido que o diabólico, tomado pelo pecaminoso, aparecerá, ao mesmo tempo, como inimigo E como amigo do sistema medieval. Sem a invenção do mal, e sem a sua prática, nenhuma idealização, nenhuma promessa redentora do bem. Nenhum tribunal para a absolvição, condenação, para o julgamento das pessoas. Isso quer dizer que a contraparte dionisíaca – e, nela, a dança – será valorizada e, digamos, liberada no período carnavalesco, no período de estímulo ao mal. Será o carnaval, o carne vale, o adeus à carne – a ocasião em que o homem vive o prazer, cai em tentação e dança, livremente, para, em seguida, de tudo isso se despedir no período de quaresma. No entanto, a Igreja não consegue impedir, fora do carnaval, a dança dos camponeses; os ritos pagãos de semeadura e colheita no início da primavera, camuflados com anjos e santos; isto é, os vestígios de Dioniso. A despeito da compreensão etimológica de carnaval como carne vale, há uma vertente filológica que atribui a “carnaval” o sentido de “carrus navalis”: o barco a remo que leva o primeiro bailarino e chefe do coro dionisíaco, em comemoração à fertilidade da terra: morte e ressurreição de Dionísio. Durante os 300 primeiros anos do Cristianismo, cerimônias fúnebres e tramas da fertilidade se mantinham vivos.
Desse modo, se, num primeiro momento, a dança permaneceria entre os plebeus nas formas do tripudium e das carolas (danças de roda, realizadas para evocar a alegria e trazê-la ao povo), num segundo momento, com a peste negra (ocasião mórbida do medievo em que se multiplicaram os fenômenos de transe e possessão), a chamada Dança da Alegria (a Carola) se converte na Dança da Morte. Dançava-se para espantar a epidemia. Dançava-se para pedir ajuda ao senhor dos mortos e dos vivos, da ressurreição (Dioniso, ainda?), num período mais propriamente diabólico porque fracassado de salvação e, portanto, a pôr em declínio os paradigmas da Idade Média. Deus – vida – só poderia mesmo ser por e ao dançar, no dançar. Neste atravessamehnto ou ferida, ou diferimento (vida-morte, ser e não ser) dos humanos. Não à toa, entre os anglo-saxões, não se deixou de – no período da Páscoa – ser praticada uma dança de meninas escoltando um falo, no espírito mítico-originário de um Cristo oradionisíaco. Um Cristo Senhor da Dança, conforme o título de um poema do séc. XIII, do inglês Sidney Cartre.

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DANÇA: POÉTICA E METAFÍSICA


O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser.
Manoel de Barros.

AQUECIMENTO

As considerações a seguir não pretendem buscar e propor um novo ponto de vista para a arte, para a dança, para o corpo, para a realidade e, desse modo, uma nova conformação de toda sua dinâmica – inacabada e inacabável – a um conceito, a uma ideia, a uma fórmula, a um regimento. Ao partir das provocações do pensamento filosófico de Martin Heidegger (crítico, ele mesmo, da história da filosofia), este texto se ocupará, sim, de desconstruir a compreensão do real na relação sujeito-objeto, isto é, como visão-de-mundo, modo de ver. Trata-se do desafio de lançar-se (lançar a ver, o corpo, a arte) justamente no que, no e do real, não é visível, mas acontece. No que não é claro, não depende de clareza, esclarecimento, para ser. No que não nasce objetivo,diante de (para) um sujeito e, logo, apartado dele. Não podendo se pôr fora do que vem a ser, e deixa de ser, o chamado corpo compreenderá tudo isto que, por enquanto, é – o provisório limite do que veio (à luz!) e já foi. Outrossim, isto que, ausentando-se (já passado? ainda futuro? Desaparecido! Não aparecente!), dá propriamente o presente: se dá de presente. De tal maneira que presença coincida com o corpo enquanto tal: o por entre ausência(s).
Antes de vermos outro corpo, ao vermos outro, trazendo-o para nós, mediando-o, representando-o, nele já estamos, nele primeiramente viemos a ser o que somos, nele deixamos de de ser o que éramos. Somos, por excelência, no que, no outro, também não está dado: o outro será, também, só em nós. No encontro. O outro, assim, o que sempre será: nunca o que é. O outro do outro somos nós enquanto sua alteração, do mesmo modo que nós nada somos senão no instante e o instante de toda esta alteridade.
Como, então, pré-ver outra coisa, o outro da coisa, identificar a diferença, indiferenciá-la, idealizá-la, torná-la um igual? Como pré-ver uma vista de um ponto e umponto de vista, se quem vê e se o visto não se pré-supõem, não estão dados a priori, nem a posteriori? O que os prima, priva, os posta? O que os supõe, os arruma, os suportar, os dá, os torna próprios, ou melhor, os re-tira, os abisma, os desarruma, os transpõe, os con-funde, os deixa propriamente in-suportáveis?
Ao aceitarmos um diálogo com o pensamento de Martin Heidegger, filósofo alemão do século XX, desejamos, enfim, morar no que se antecipa e possibilita a experiência de ver e de pensar. Na experiência da experiência. Na experiência de ser – anterior e ulterior a qualquer subjetivação, objetivação, razão – na qual se dará a arte. A dança. Falando não mais sobre o corpo, mas sempre no corpo, partindo do corpo, chegando a corpo, sempre sendo o corpo falando e falante, sempre sendo fala porque e enquanto incorporação, sempre sendo incorporação porque e enquanto abertura, esvaziamento, pensamento. Isto, o pensamento: o ser em dança. O pensamento dança! Heidegger compreenderá o pensar como tal re-velação do ser, da realidade, como o corpo em obra; como o corpo que se desvela no mesmo instante em que se vela, e que se vela no mesmo instante em que se desvela. O pensar como tal suspensão do ser. Desse modo, rogará o pensador que vida – corpo – não mais se reduza, se conforme a um ente. Se ele, suspenso, na tensão de ser e nada. Aí, a a arte não mais raciocinada, também entificada. Aí, ou melhor, aqui, a dança dança.

EXTENSÃO E FLEXÃO

No século XX, o pensamento de Martin Heidegger vem por em questão todo um Ocidente que, após seu desencantamento religioso, foi e ainda é dominado pela ciência e pela técnica. Tentando tudo disponibilizar para o homem, o pensamento tecnocientífico acabou e acaba por explorar e esgotar a natureza, a realidade (por reduzir o real a umdado, coisa dada, ou seja, particípio passado, partícipe do passado: sem futuro, sem chance de ser coisa por dar-se, jamais coisa-objeto, no e com o objetivo, sempre, a rigor, dos sujeitos). Se a ciência, assim, se pré-ocupa com o fundamento do aí-dado, com a medida – a ratio, a razão – de onde tudo parte e para onde tudo se direciona, a técnica constitui o meio consagrador de tal empreendimento: o operador das causas e dos efeitos; a sustentabilidade ou a garantia da eficácia e eficiência desta máquina do mundo. A técnica moderna, enfim, como o know how, a instrumentalidade, o método para que coisa dada chegue a uma dada coisa: ponte para a reprodução delas, para sua repetição, redundância, igualdade, igualação. Daí, a chamada coisificação do real na filosofia, uma vez que leis, modelos, suportes enquadram, conformam, dão forma, fôrma, delimitação, definição, ou seja, fim às possibilidades de ser, que dizem a realidade para aquém e para além das suas causas e finalidades.
Neste sentido, como parte também desse real limitado, de um todo obtido pela soma ou coesão de cada uma de suas partes (não fossem elas, antes de partes de, primeiramente cada uma que vem a ser e deixar de ser, isto é, que é no aberto, parte ou partícipe do nada, presenças do que era e será ausente, antes de ser para ou por causade outra coisa maior, já nem mais coisa, porque acima de todas: pura, idealizada!), o homem passa também a coisa, a mais um objeto para o sujeito no qual se transformou. O homem, sujeito e objeto de si mesmo; o homem, então, a manipular, controlar, explorar, esquematizar, rotular, estereotipar o humano e tudo o mais que participe de sua sujeição, que se ofereça à sua razão, que caiba nela. Tudo perdido. Para a razão humana. Aí, a aposta, cega, na abstração, no colocar-se para fora ou acima do corpo, fora do que concretamente é con-fuso, e esclarecer-se, e entender que se pode chegar a uma luz isolando-a da sombra.
Desse modo, na prévia divisão do real em partes, ou melhor, em metades – como ideia e coisa, espírito e carne (platonismo), matéria e forma (aristotelismo) e suas derivações (significado e significado, essência e aparência, sujeito e predicado, fundo e superfície), o que está em questão, no pensamento do real, do corpo, da arte, da linguagem, é o esquecimento do ser. O esquecimento do nada como o que impede a predicação do real, do corpo, da arte. O que impede de pré-dizer tudo o que não se esgota no já-dado, no passado e, portanto, suplanta todo adjetivo. O que impede de tornar tudo o que seja um adjeto. Por exemplo: falamos em mundo sensível e mundo inteligível (pensamos logo pela contraposição adjetiva) sem, primeiramente, substantivamente, pensar o que no mundo é mundo. Que o substantivo é só no verbo, na ação, das ações: se o substantivo ou sujeito aciona, já foi acionado. O (vir a) ser é que substantiva, portanto, mas na lógica da gramática (que se fez a partir da gramática da Lógica), passou a mera verbo de ligação, de mediação para o sujeito chegar aos seus predicados e vice-versa (como se a ação pertencesse ao sujeito, antes de pertencer a tudo que, em ação, age, co-age, co-move, move). Quando se objetiva mundo, ele, portanto, supõe-se fora da ação do humano, fora do corpo – onde e quando o i-mundo (o caos) propriamente é (cosmo: limite: corpo: presença: linguagem). A razão inventa, assim, de um lado, o mundo subjetivo (o homem e o por debaixo das coisas, o subjacente) e, de outro, o mundo tal como o entendemos vulgarmente: o objetivo, o dos objetos, aquele já representado e no qual nos representamos.
Porquanto a experiência do nada não é ponto de vista, não cabe em teoria (não é possível ter um conceito do nada, ver o nada – nele sempre estamos, na abertura, no deslimite, na superação do limite, do ente, do mesmo modo que estamos sempre partindo do silêncio e chegando a ele), tal pensamento não é privilégio da filosofia; não é descoberta ou novidade teórica. Pelo contrário, a filosofia, desprivilegiando o nada na maior parte da História do Ocidente, acabou por desprivilegiar a experiência de seu pensamento, a qual é, a rigor, a poética: a do poético – na dança, na música, nas artes etc. O poético como a própria manifestação do divino (disto que, do nada, vem!). Não o sagrado, ainda, compreendido religiosamente, entitativamente: não se trata, pois, de substituir os fundamentos por outros. A razão por Deus. A ciência pela religião, se, ambas, obra de uma filosofia perdida de sua própria irmã ou mãe: a poesia, a experiência-força do que vem, se dá, se cria, nos cria e no faz criar.
Neste sentido, por exemplo, Guimarães Rosa, escritor brasileiro, não precisa pensar tudo isso na medida em que tenha lido Heidegger, por exemplo, mas porque, acatando o ser de toda humanidade, abrindo-se ao poético da própria vida, abrindo à vida, ele pensa – todos nós pensamos nisso, a partir disso, mesmo que não saibamos, e na medida em que não saber é outro modo de também dizer isso, ser dito (não dito!) por isso. No conto “O Espelho”, Rosa escreve: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. De tal modo fechado ao milagre (aqui, antes da acepção religiosa, o próprio vir a ser do antes não vigente, jamais visto, jamais pré-visto), o homem não pode mais simplesmente ser. Ele tão-somente será por causa de (outro ser, também dado, coisificado), ou a fim de (mais um ser, dado também). Ou para (para um ser prescrito). Resta-lhe viver (e de fazer arte) como tal cumprimento de porquês, finalidades, objetivos, causas.
Este, o adendo de Heidegger: antes de utensílios (para, porque...), nós somos. E é só na dignidade do que primeiramente está sendo, quer dizer, sendo livremente, anterior e ulterior a todos modos de justificar e de encaminhar a ação, de depender de outra, para agir (de determinar para onde algo ou alguém tem de ir e como tem de ir; qual o modo correto, adequado, verdadeiro de ir, para chegar) que podemos forjar toda utilidade, pragmática e funcionalidade. Segundo Heidegger, a base desse pensamento estaria em Aristóteles – na sua compreensão das coisas-utensílios, aplicada, posteriormente, às teorias da arte e também à filosofia e ciência da linguagem (Linguística, Semiótica, Semiologia). Cria, na correlação arte e utensílio, a pergunta: qual a utilidade da poesia, da dança, da música? E, quando para além de todo útil, e ajuizada inútil, a arte, ela se responde, é obrigada a responder uma questão, na verdade, nunca proveniente dela, proferida por ela.
A criança que, ainda não adestrada, simplesmente está sendo, ou seja, aberta a, aberta ao aberto, na experiência, por descobertas, não sossega: não pára quieta, sentada, numa cadeira. Pula. Faz arte: passa por debaixo, por entre os vãos. Brinca. Tira a cadeira do lugar, do seu lugar, ou função. Dá-lhe um novo lugar. Um espaço-tempo outro. Devolve, portanto, a cadeira à sua potência de ser: deixa que corpo-cadeira propriamente apareça, e que apareça como corpo-com, corpo-com-outro; deixa que o corpo-criança seja com-o-corpo-cadeira, antes de ambos condenados a uma ideia, fundamento. A cadeira, se serve de assento, só podemos usá-la, nela sentarmos, porque primeiramente ela é e, sendo, resguarda a potência do ser, mesmo que lhe prediquemos uma função: como corpo, cadeira, e criança, a criança da cadeira é possibilidade de vir a ser, deixar de ser, estar em arte. A criança, aí, muito arteira! Não à toa, cheio de infância, Alberto Caeiro, poeta (e um dos heterônimos de Fernando Pessoa, crítico da metafísica ocidental antes mesmo de Heidegger), escreveu: “As coisas não tem significação, tem existência!”; “O que nós vemos das coisas são as coisas. / Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida! (...)/ exige (...) uma aprendizagem do desaprender”. E em outro momento: “Criança desconhecida e suja brincando à minha porta / Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos. / Aprecio a tua presença só com os olhos”. Mas “não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. / É preciso não ter filosofia nenhuma. / Com filosofia, não há árvores: há ideias apenas”. Quer dizer: não basta ir a um espetáculo de dança, para ver a dança, compreender a dança como e desde um ponto de vista, teoria, filosofia, razão, juízo. Enquanto perdurar na ideia, ou numa proposição, tudo deixa de ter existência concreta para redundar na objetivação e na subjetivação, no significado (fixo) ou na significação (subjetiva), ou seja, na escrita (lógica) do que não é escrita.
Na criança do pensar, no seu princípio, o sentido: o poético de todo corpo. Na infância de um poema, de uma escrita literária, o sentido – poético – como corpo e não no signo linguístico. O poético não é o sentido figurado (versus o sentido literal). Aí, mais uma vez, a noção de sentido pensado a partir de adjetivos: literal (o significado subjacente, ao pé da letra) e o figurado (o significado por alguém, o ressignificado pelo que está fora da letra). Aplicando tal raciocínio ao corpo, entendemos que não podemos ficar ao pé dele, confirar no que ele aparenta, porque, afinal, para além dele é que está o sentido – corpo é, dança é apenas metade do que falta: a ideia, o inteligível, o conceito. Desse modo, reitera-se o simbólico, o indicial, o icônico como a co-dependência de uma coisa a uma outra que, não estando nela, é necessária para regê-la e tê-la por completa. No entanto, corpo não é metade de. Toda metade, na sua relatividade, é que nunca deixa de ser um corpo. Daí que sentido e semântica não sejam a mesma coisa. No diálogo com o corpo, imediatamente mediamos (semantizamos! raciocinamos!), quando, por princípio, o imediato nunca é o mediato, o raciocínio, a sua divisão em fundo e forma, mas o que já fez corpo, já se apresentou no nosso, incorporou, comoveu, aconteceu, fezsentido! Desse modo, dança precisa fazer sentido e não, semântica. Parafraseando Caeiro, dança tem existência e, não, significação. Está já não é a dança, a arte, mas toda ciência; quiçá, religião; enfim, toda sistemática ou doutrina posterior (e diverso do que justamente transgride o corpo como sistema, viola suas doutrinas ou leis: o põem na super-ação que a dança é).
O aprendizado da razão, da escrita da ação, do código de conduta, do pensar, ou seja, a restrição das possibilidades deste para a afirmação de um autorizado, de algum que – regendo os demais – firme um acordo identitário, comunicativo, de semelhanças, é, por tudo o que dissemos, uma possibilidade. Necessidade, apenas, quando um mundo se objetiva e, desse modo, precisa tudo objetivar para se manter. As possibilidades não autorizadas, no entanto, permanecem latentes em tudo que se faz, se fez, se pré-determinou. Dar-lhes vazão é, na desinvenção do constituído, na desinvenção do raciocinado, da análise, dos modos de enquadrar a obra vista e a quem a vê, a invenção de outro real – uma poética: “Tudo que não invento é falso”, dirá outro poeta, Manoel de Barros, em seu Livro sobre nada. O inventado para mim (a lei, a razão, os meios, os suportes, os instrumentos, os códigos, a moral, tudo isto em que tenho de me enquadrar, obedecer) é falso, não é a verdade do meu corpo. A verdade dele é sua revelação, sua concriatividade ou demanda própria.
Obrigatório mesmo, essencial, é ser. Por quê? Porque estamos vivos, e estamos vivos antes de todo porquê. Não sabemos por que estamos vivos, mas estamos antes de perguntar por isso! Não decidimos nascer, viver! Fomos e somos lançados na vida (quando vimos, já estávamos vivendo, isto é, morrendo). Logo, obrigatório, essencial, é ser porque obrigatório é morrer e, sendo obrigatória a morte, eis a vida se vivendo, se (re)inventando, essencial. A arte, em correspondência a esse apelo, não tem porquê, senão corresponder à afirmação da vida em meio à morte, ou melhor, ao fazer surgir o inesperado em meio ao esperado, o extra-ordinário: nela, o real (a vida) vem a ser sempre mais do que o fim que se lhe destina, a morte que interrompe todo devir e que, aqui-agora, nos convoca a ultrapassá-la (ultrapassar o fim, o limite) em vida (comemorando-a infinita). Quando infinitos, os corpos finitos – aí se tem o poético! Mas, na medida em que vida se coisifica, que a recebemos pronta (e, por isso, conforme Manoel de Barros, falsa), já semantizada (ficcionada) por normas ou normalidades, toda transgressão do normativo, do normal, da semântica dada, será anormal, sem sentido. Inaceitável. Será, às avessas, o considerado errado, mentiroso. Um distúrbio. Doença. Loucura. Sonho. Fora do eixo, um marginal. O mau! O errado! O pecador! O irracional! O sem juízo! Aí, a arte!?
A poesia (em sentido amplo, originário, e não ainda como gênero literário, como propriedade da escrita) consiste, em Heidegger, como a saída para a libertação de cada ente (coisa, corpo), porquanto o devolve ao ser, se lhe abre. Heidegger mora nesta compreensão primigênia de que o poético é o vigorar, o pulsar, o irradiar de todo ser e não ser: a realidade, por excelência, como (des)construção poética. O poético nomeia, no grego, tal fenômeno sempre permanente, atual, aqui-agora. Não deflagra o originário como origem num passado, não é princípio dado como começo, base de, causa de, mas a imediata irrupção do imprevisível – quando e onde o abismo é, ou seja, ganha margem, limite de, limite para o seu sem fundo. O jamais antes visto, dado e, que por isso, é novo, sempre diferente, poético, pode ou não – a partir de sua unidade, de seu pôr-se – caber no representativo, numa relação, numa comparação, num artifício sistemático ou operativo. Mas o presentativo é sempre único, incomparável, irrepetível. Lancemos mão de um exemplo: se eu perco a mão direta, não deixo de ter a esquerda. O direito e esquerdo são relativos, mas a mão não deixa de ser mão, não deixa de guardar em si a potência de super-ação (poesia) do corpo. Por isso, podemos jogar, dançar, viver com uma mão, com um pé, sem os outros. Podemos atualizar sua potência de muitos modos. Podemos falar, inclusive, em uma dança que pense focando o lado direito do cérebro, o lado esquerdo... Porque já não são lados, não direito e esquerdo, são lugares de potência e realização própria. No um, o infinito. Cada uno é autopoético antes de dependente de algo que, sendo-lhe metade necessária, impeça e determine o seu devir.
Com isso, Heidegger não pretende um conceito, um ponto de vista seu, uma teoria para o poético, para a vigência criativa do uno/ do corpo (sua síntese): atentando para o prévio às representações, às teorizações, às filosofias, coincide com o a motivação da e para haver a cultura como colheita (o sentido), sempre singular, a cada vez que a natureza/terra/ser se mostra. Na medida em que nossa cultura é, uma vez dita Ocidental, de matriz grego, Heidegger vai ao encontro da palavra que salvaguarda a questão da criação desde o princípio (ainda que, ao longo dos tempos, assuma vários significados, e vários significantes, dizendo-se em várias línguas o mesmo): poesia.

Como correspondência às questões, acatamento do apelo do ser, do ser-com, ser natureza, nata, nada, a cultura se funda; quer dizer: o poético, a arte (dança, música, canto) funda a cultura! Constituem originariamente a experiência de memória, do fazer história, da perpetuação do diálogo, da mudança com. Não explicam, não reduzem o real: deixam-no aparecer, no corpo, como corpo inesgotável. Aí, sim, encontram seu princípio: o in-finito, a abertura, o ainda não, o já não mais. Antes de objetarmos uma obra de arte (antes de entendermos obra como objeto, algo já construído, que contémum conteúdo, uma ideia, uma poesia dentro dela...!), antes de compreender a arte dentroda cultura (e de entender a cultura como sistema do qual a arte, entre outras representações, se opera), o poético-mítico, o artístico funda a cultura, a colheita do que vingou, do que veio à luz, à tona, fez sentido, deixou que o velamento (i.mundície) da terra desvelasse mundo(s). Não fechar a arte dentro de uma cultura significa, de tal modo, não fechar a própria cultura, ou seja, impedir sua delimitação, abstração, paralisia de seu movimento e processualidade. A arte dá a chance de o homem, atendendo ao ser que o chama (que o chama a vir a ser, deixar de ser), não se restringir a uma identidade cultural, a uma ideia coletiva, a um modelo de todos, para todos. Dar-lhe o direito à diferença concreta (a que não cabe numa ideia, ou seja, que não pode ser identificada, proposta como: “Diferença é...”, “Esta arte é...”). Abstrair o diferente significaria indiferenciá-lo, torná-lo forma sem matéria. Desmaterializado, não tem nem é mais corpo.
Destarte, não se trata, aqui, de questionar nossa época atual e voltar a uma outra, substituir um sistema por outro (pelo dos gregos, por exemplo!), mas entender que, em questão, no pensamento da origem, está a origem do pensamento. Não apenas do pensamento da cultura, mas do pensamento como pensamento (quando o homem está ao encontro de si, quando o homem não se encontra, não se acha, perdido está na procura, procurado por, suspenso, pensum; enfim: em pensamento). Pensar, de acordo com Heidegger, diz deste deixar o real se mostrar, deste deixar o corpo se mostrar, a vida se mostrar com isto que está sempre suspendido. No abismo. Quer dizer: mostrar o real como o que não se mostra completamente. Cuidar das aberturas do real. Morar no que, na abertura, perfaz, desfaz, refaz limite (corpo): a linguagem. A morada do humano.
O princípio, o príncipe, o principal, o primeiro é sempre o que está à frente, nunca atrás, no passado. Dialogar com os gregos consiste em dialogar com as questões que permanecem e, logo, não podem retornar, não podemos retornar a elas, estão sempre por vir, a nos desafiar. As questões de todas as épocas, e que gerarão as diferentes épocas quando respondidas a partir de determinados conceitos, fazendo com que tudo – o corpo e a arte – se subordine aos mesmos e, assim, toda teoria da arte e história da arte se configure. Dialogar com os mitos gregos, outrossim, com o pensamento poético grego, com o pensamento anterior ao platonismo e ao aristotelismo é, em Heidegger, a chance de libertar o corpo, o ser das armaduras entitativas, das ideias, das essências, das proposições lógicas, das bases do império da ciência e da técnica na modernidade, perpetuadas, segundo ele, na arte, com o nome de Estética. A chance, afinal, de libertar o corpo, o ser, o real do julgo objetivo e subjetivo. Do humanismo. No autocentramento do homem, agente controlador do real, seu conversor em objeto. Aí, está – justamente – o sentido de pensar como diferente de raciocinar. O pensar como instante, hora, lugar, cuidado do ser – onde e quando ele se espessa, se adensa, se compacta, se compactua, corporifica e, portanto, é experienciado. O pensar como o cuidado de tudo isto que nos permite ser o ser e não ser que somos. Isto que mora na linguagem – a força na qual ou através da qual o que é pode propriamente ser. A força na qual e através da qual o ser está, tem estada: morada: é corpo!
A dança é pensamento porque, na experiência da experiência, no pensamento como experiência, cuidado do real, morada na linguagem, roga e cumpre a possibilidade de realização e realização das possibilidades. Dançando, musicando, poetando, os corpos nem por isso deixavam de pensar (talvez, pensem até melhor, porque dão ao real mobilidade, dão ao corpo o que é do corpo). Todavia, educaram-nos a acreditar que arte e pensamento são coisas estanques e, porque pré-definido o lugar da arte como o contrário da razão na dicotomia da cultura (mundo sensível x mundo inteligível) e, sobretudo, porque pré-definida a razão como sinônimo de pensamento, então, para dançarmos ou ao dançarmos, por exemplo, temos de ter a razão. A razão da dança. A razão do corpo. A estética: lógica ou ciência do sensível. Temos de lançar, portanto, aí, mão de uma escrita que linearize, esclareça, uniformize, tire o próprio corpo da sua confusão ou caos, tire o corpo do corpo, para caber numa forma, num sinal, gráfico, num signo, num símbolo, numa simbologia ou teoria. Para que dança, por sua vez, caiba numa generalidade, num gênero. Que se dance só a partir de gêneros de dança, não fosse possível uma dança própria e não tivesse sido, toda dança genérica, específica, pela primeira vez. E como se, mesmo ao dançarmos um gênero, a vez não continuasse sempre primeira.
Em outras palavras, parece-nos legítimo o dançar (científico? pensável?) somente quando escrito – quando escrito em outras palavras! Mas o corpo é palavra: diz. A um só tempo, ouvindo-o, tentamos traduzir – com escrita, com linearidade – o sem corpo, o não linear. Por isso, tudo o que, na linguagem, toca o não escritível da experiência tem de, paradoxalmente, ser escrito para ser relevado (mas não necessariamente revelado). Pudéssemos realmente revelar uma experiência escrevendo-a depois! Ou antes! Não! Antes, uma. Depois, já é, será outra, a experiência. Aquela, passada, não pode ser escrita. Nem a futura, prescrita. A sua fala, o seu dizer, o seu modo de dizer era, e é, e será aquele acontecimento: em devir: em dança: a dança presente. Se, em alguma medida, temos, então, de escrever o que, na escrita, na crítica, na interpretação persevera co-movente, corpo, aberto, dançante, cheio de silêncios e aberturas, não analisemos, não tornemos o corpo um objeto na dança da crítica. Intentemos uma escrita poética. Mesmo na crítica literária, Baudelaire, poeta questionador do seu tempo, já havia dito: “Eu creio sinceramente que a melhor crítica é a que é divertida e poética; não aquela, fria e algébrica, que, com o pretexto de tudo explicar, não sente nem ódio nem amor, e se despoja voluntariamente de qualquer espécie de temperamento; Dessa forma, a melhor análise de um quadro poderá ser um soneto ou uma elegia”. Apenas poetizando a escrita, a palavra fará com que os significados deslizem, para que não caiam no esquematismo analítico, o qual, mesmo admitindo não passar de uma significação possível, entre outras, emite um juízo, propõe logicamente uma obra.
Que seja a crítica da dança, desse modo, dança na crítica, dança na palavra, dança com as palavras, a dança da palavra. Apenas aí a justeza do encontro. Quando, na palavra do corpo, seja corpo a palavra; não signo, representação, sinal, lembrança de, faz de conta que, simulação de, suposição de que, em relação a, mas presença, apresentação e memória de uma já outra e nova experiência – concreta – a partir da outra. Princípio de. Princípios. Manuel de Barros, novamente, traria um verso-luz: “Uma palavra tirou o roupão para mim. Ela deseja que eu a seja”. Ou ainda:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
Mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
Existem
Nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.


Os corpos divinam: vêm a ser. Desvelam-se! Desencobrem-se! Descobrem-se! Antes de toda explicação, a unidade disto em que tudo se con-funde: um corpo. Se não o separamos em som e silêncio, luz e sombra, sentido e vertigem, superfície e fundo, para que ela seja. Ele é. Para podermos separar, dividir. Na separação, ele já foi. Nem mais é: se perdeu. Falar dele, sobre ele? Como? Por quê? Apenas falar nele, falar a partir dele, falar a partir do novo corpo – escuta, visão, palavra, sentido por vir. A mediação não é o passo primeiro do dizer, do pensar. O pensar, primeiramente, escuta, acata isto que se diz, já se disse e, como tal, é (nossa) imediação. O imediatamente dito-ouvido em nós. Uma presença, um. Sempre umi.mensamente, sem medida, sem tamanho, aberto. Daí, o conceito diz justamente o que, na história de nosso pensamento, consiste no tamanho, na medida, na forma de toda matéria, no etéreo, na abstração, no supra-sensível, no que não está mais ou ainda não em ação (em corpo!), porquanto se lhe antecipa para poder causá-la, causar a ação, ou justificar uma ação já acabada, fechá-la. O conceito, portanto, é a não ação! O conceito não dança! Mas o permitimos comandar a dança!? A dança subserviente a um conceito (!) acaba justamente com a potência de dançar o ser que não se esgotaria naquela ideia, forma (e, que também, não pretenderia chegar a outra, mas sempre ao princípio: ser – outra!).
O ser, portanto, como traço do sujeito, que o expressa (expressa uma ideia) e o representa (representa ideias do sujeito), que o predica. A arte, a dança, tudo, no Ocidente metafísico, assim, compreendido: tudo precisa chegar ao sujeito, à subjetividade, partindo do sujeito, da subjetividade através de predicados, objetivações: cultura, época, história (outros substantivos também pré-definidos, objetivados por atributos, adjetivações). O corpo como o menos importante, servo do mais importante – que já não é ele mesmo, porque ele mesmo é só ad-jetivo de toda substantivo ou substância: o eu, a essência, a alma, a mente, o deus etc.). Mas como o predica e se predica se não sabemos onde e quando termina, e quando e onde começa? Onde e quando termina sua história, a memória, uma experiência?
Tentemos fazer uma genealogia (buscar nossos pais, e depois os avós e demais ascendências infinitamente; e buscar também amigos; os inimigos; todos os interlocutores; mas também considerar aqueles que não conhecemos, porque o desconhecido, não tendo vindo ao encontro, também fez com que fôssemos o que, até aqui, somos) e não conseguiremos esgotar a experiência do que se é. Deste presença, da presença. É precisamente isto que a faz rica, inesgotável e, por isso, com este seu aqui-agora ínfimo e infinito podemos dialogar, podemos trazer à superfície, ao corpo, toda sua infinidade. Desse modo, dançamos. Sem mapa, sem suporte, sem muleta, o corpo, no labirinto de si mesmo – que é o próprio viver-morrer. Os múltiplos caminhos entre vida e morte serão e são a criação e descrição desse corpo e de tudo mais que, dele participando, e não, o incorpora, o esvazia.
Mas insistimos na proposição e na causalidade, no juízo: O que é dança? Por que se dança e como se dança? E, sob algum predicado, por exemplo, “brasileiro”, reconhecemos a ação: ora, se é dança brasileira, então ela expressa e representa a cultura brasileira; esta, por sua vez, também está conceituada, ajuizada; dessa forma, quem não participa da ideia de brasilidade não pode se afetar pela experiência; não poderá a entender; permanecerá de fora; observando o que insiste exterior, ou seja, que não incorpora naquele que, com o atributo “brasileiro”, por exemplo, não se identifique. Sabemos, todavia, que não é assim: que é possível que deixemos, no samba, de sermos turistas, de sermos de fora, para sambar, para estar ali, no acontecimento da descoberta, da arte, afetados por ela. É possível que a música de Beethoven permaneça para além de sua época e, não precisemos saber o que aconteceu naquele momento para que a música dialogue conosco; a gente não precisa ter ouvido ou lido toda a história da música para alguma música fazer sentido; a gente precisa, sim, ouvir a música! Mas, se por exemplo, na música e dança da capoeira, deixamos de jogar para analisar, para entender que tudo aquilo, em sendo brasileiro, é herança do africano, que se liga com a escravidão, remonta à luta de classes – não haverá tempo para ser afetado, só para confirmar o que já sabíamos, para tornar o visto apenas ilustração, comprovação de uma ideia. Porque, afinal, só nos afetamos pelo estranho, pelo não sabido, e não pelo familiar, pelo semelhante, pelo conhecido, pelo igual. É preciso que capoeira seja sempre surpreendente!
Desse modo, um branco, de formação cristã, também pode se emocionar num terreiro, mesmo que não seja (ele não precisa ser predicado) como candomblecista, umbandista. Ser comovido e ter uma experiência – própria – não significa obedecer aos juízos do que seja estar num terreiro. É possível que aquela experiência, misturada a outras, gere uma aberração: um cristão espírita ateu greco-romano umbandista! Ou seja, na contradição dos atributos, já não há suporte ou predicação, porque, impossível, a lógica. Há o próprio. O sem parâmetro. E, portanto, sem comparação. Por isso, concretamente diferente. Poético. E verdade. A verdade deste corpo.
Mesmo quando, na dança, seguimos um modelo, uma técnica, um meio para chegarmos, de novo, à forma pré-tendida, garantimos a reprodução? É sempre ao mesmo corpo, à mesma dança, que se chega? Todos, dançando balé, samba, valsa, salsa, dançam igualmente? Por que não? Porque todo caminho prescrito, de orientação de nossos passos, de nossos movimentos, vindo ao nosso encontro como tudo o mais que na vida nos vem, também se mistura – interfere e é interferido pelo que em nós perfaz história, memória, experiência que não começou ali, nem terminará, porque só há princípio. Princípio. Princípio. Quer dizer: a experiência, sempre sendo diferente, faz com que o diálogo, o modo de lidar com a técnica também gere diferentes danças. A ponto de, em determinado modo, transgredir a técnica, afetar o que o afetou. Questionado por ela, questiona-a. Gerando outro caminho, outra técnica.
Na valorização da arte, Heidegger está fora da lógica da salvação como promessa de síntese, de religação do caos em nome do progresso, de um mundo perfeito, um mundo melhor. Não: é a religião e a tecnociência que idealizaram um mundo melhor e perfeito. Heidegger falará, sim, em salvar no sentido originário: salvar-se como conduzir-se ao sumo, ou seja, consumar-se. Consumar o que é? O próprio. O que cada um é. A sua diferença. O seu limite e não limite: o seu perigo.
Não podendo ser dita (no sentido de ser representada, ser conceituada, seescrita – e toda escrita é razão, e não há razão sem escrita), a diferença, o perigo do corpo, o corpo a perigo só pode ser perpetuadamente vivido, experienciado, descoberta. Ou melhor: não é o homem – sujeito da realidade – que descobre a diferença. Nem a diferença lhe pertence. Na verdade, tudo o que ele é (tudo o que já veio à sua consciência ou razão) é obra, é fruto, é co-memoração de encontros e encontros, alterações, diferimentos, ferimentos, ou seja, aberturas. Isso quer dizer que a arte salvaporque coloca o humano ao encontro de sua humanidade ou humanização: na sua abertura. Não salva quando o permite integrar-se ao sistema que o exclui. Salva quando o exclui tão radicalmente do sistema, quando se torna independente, livre, dele. Que celebra o sem sistema! Salva quando não tira o humano da morte, mas, recolocando-o na sua mortalidade, o põe e o repõe na vida.
Contudo, a nós só nos é ensinado o tempo todo a sair da vida, do mundo, viver em função do que está além dele, viver para, por causa de uma morte, assim, conceituada, idealizada. A nós é ensinado viver para morrer enquanto morrer for vida ainda, celeste ou infernal, mas sempre etérea.
Se a questão, então, eminente é a referência entre arte e humanidade, a pergunta eminente serásempre: ser humano – o que é isto? O mundo moderno disse: um animal racional. Mas tal definição, diz Heidegger, é tradução de uma sentença grega, que diria, na verdade, que o homem é aquele ser vivo de quem a linguagem cuida e cultiva. Aquele que é na linguagem. Restaria, então, aqui, diferir o homem como quem é definido pela razão e o homem como quem só é porque na linguagem (porque é na linguagem que o éé). Mais que isso: diferir linguagem de razão, libertar a linguagem da razão, ou seja, da visão de que ela é o meio que o animal humano tem para raciocinar.
Diferir linguagem de razão é toda a tarefa de pensar a tradução do logos grego por razão e não por linguagem. É morando na linguagem, tendo-a por casa, que o homem se revela: ser em ação: ser em corpo: corpo sendo: realidade se interpretando, emergindo como sentido, imergindo, indefinindo. A arte e, mais precisamente, a dança como o lugar da experiência do corpo é, primeiramente, lugar da experiência da linguagem – a dança é onde e quando a linguagem se descobre porque desencobre o ser, o deixa estar, num próprio, na diferença de um corpo. Existência. O que não significa que Heidegger seja um existencialista, ou seja, alguém que torna o pensamento da existência como eventual, entre outros possíveis. Isso seria ainda acreditar que a existência é um dos predicados do homem, ou seja, seria pressupor ainda o sujeito e seus predicados, o sujeito e sua existência. Pressupor o ser como traço do ente! E não o ente como um traço, um limite do ser, da existência!
É o francês Jean-Paul Sartre que se aproximaria mais da noção de existencialismo: negará a essência (por não haver ideia ou fundamento prévio) e considerará que tudo é existência, ou melhor, que pela existência a essência se conquista, o vazio do sujeito se preenche na consciência: o homem, não sendo nada, permanece ainda primeiramente consciente e senhor da ação, constrói sua essência historicamente segundo seu livre-arbítrio. Aí, o paradigma de fora e dentro (que é sempre o dentro e o fora do sujeito humano, sempre ele como centro realizador da mediação!) se mantém: o fora a construir o dentro (em vez de o dentro construir o fora, como no pensamento moderno tradicional). Heidegger, na verdade, dirá que a existência não é do homem (Eu, homem, tenho uma existência: eu existo!). Reiteram-se, nessa formulação, de um lado, o homem (o sujeito) e, de outro, a existência (o depois, o que ele vem a ser, algo, uma coisa, uma objetividade). Não: o homem é quando já lançado, quer dizer, o homem – quando lançado à vida, à morte – já é, já existe, e só aí existe o existir. O humano. Ele está sempre dentro (“fora”, na realidade, constitui o ser que não ganhou ainda lugar, incorporação, humanidade; o que permanece ainda não: silêncio). Lançado, imediatamente, nas coisas, no que vem ao seu encontro, estão também elas imediatamente nele. Estão dentro? Fora do homem, as coisas? É na fronteira, no entre, que podem dentro e fora se desdobrar. Não há como haver dentro e fora sem limite, sem a dobra de onde eles se desdobram e, a um só tempo, se separam e se unem. Este limite, o do ser, é dado, se dá na e pela linguagem: daí, vivido como corpo, não no corpo, pelo corpo. Mas, simplesmente, o corpo vivido e vivível.
Dito de outro modo, se existir é estar, pôr-se para além de, para fora, aberto,insistir seria estar para dentro, isolado, ensimesmado. Existir, então, abrir-se – para a diferença. Insistir é fechar-se. Manter-se igual. Um in-divíduo: algo que não se divide, que não compartilha, não se perde. A questão, por isso, não implica trocar, tal como fez o Ocidente pós-moderno, pós-estruturalista, a crença na igualdade, sempre-igual, pelo elogio da diferença sem permanência; trocar a essência pela existência. Reportando-se aos gregos anteriores ao platonismo e ao aristotelismo, Heidegger mostra que igualdade e permanência não são sinônimas. Se só mudássemos, sem permanecer, não saberíamos que mudamos, que houve e há mudança. Seria uma coisa, e o fim dela. E outra, e o fim dela. E outra, e o fim. Separadamente. A cada instante, porém, somos diferentes, mas continuamos. Não somos abertos de tal modo, que então, coincidindo com a abertura, nela nos perdendo, corpo algum mais existiria, porque ele mesmo já o próprio sem corpo. Enquanto nos abrimos e recebemos corpos que, por sua vez, se abrem para receber o que, de nós, permanece. E permanece vazio. Quer dizer: épermanecendo corpo, como corpo, que a abertura é. Que não ser é. E o que é é (o corpo é)não ser. Vazio. Quer dizer uma vez mais: é permanecendo corpo, que o ser e o não ser fazem sentido (e, logo, silêncio) na ou como linguagem: força i-mediata e, não,mediata do pensamento, a serviço dele, como meio de/da razão, de instrumentalizar a própria corporeidade, fazendo com que o ser insista, se abstraia, se torne objeto, objetivo, perca a concretude de permanecer mudando; e, mudando, permanecer.
Tal é o desabrochamento do ser em cada e como cada próprio: alguém que não é sempre a mesma coisa, mas é sempre o mesmo se alterando. O sentido de verdade, diz Heidegger, a partir dos gregos arcaicos: revelação do que, existindo, não insiste, mas persiste. Que persistir não é insistir! Persistir traz este “per” que vem do grego “peras” e significa “limite”. Palavras como perigo, percursos, percalço, perímetro, peregrinação, perturbação, porta, porto evocam a noção de liminaridade, de fronteira e, logo, tem no corpo, nos seus desvelos e véus, a única verdade.
A COREOGRAFIA

Aonde chegamos? Ora, dissemos que a questão não é considerar que tudo o que o sujeito é vem de fora, de um mundo objetivo, de sua relação com objetividades, de seu pertencimento a um sistema; tampouco, que o mundo é objetivado por algum um sujeito prévio (e construtor dos sistemas-relações). Antes de fora e dentro, flagramos limite, somos flagrados pelo que dá limite ao ser, ao vir a ser e deixar de ser, ao infinito: pelo que dá corpo. E é no corpo e como corpo se mostrando e se ocultando que cada um será verdade. Criação. Poética. Não mais “verdade” como sinônimo de correção, de certeza, de prova e, logo, não mais admissão da mentira, do falso, da ilusão como um contraponto. Tudo o que do corpo participar será. É. Ou seja: será e é real. Se está em ação, em experiência, se corporifica, não é mentira, não é falso. A fantasia, o fantástico, o sonho, o louco – tudo isto não está fora da realidade! Tudo isto compõe, depõe o real. Outrossim, o real só muda, se altera, porque, não estando dado, provém do caos da realidade: ela é absurda. Sonha-enlouquece justamente para deixar ser tudo o que é, não era, poderá vir. E vem. E vai. Já foi.
Tudo isso soa estranho ao mundo nosso, objetivo, porque nossa sociedade, se consolidando em torno de parâmetros, eixos, normas, gera contrários excludentes, gera excluídos: o normal instaura anormalidades, anômalos, marginais, desobedientes, transgressores: os próprios artistas. Então, quando Heidegger diz que temos de nos voltar para a fala da arte, para o pensamento poético, para o pensamento do corpo, parece, para quem reduz o real a algo objetivo, um absurdo, uma loucura, um falta de cabimento: parece que, então, entregaríamos o poder aos loucos, aos sonhadores, aos desajustados! Trata-se de entender, sim, que o poder do homem não é do homem, se dá ao homem – a natureza, a vida lhe dá todo poder ser um poder ser. Desse modo, não se elogia à perda de todo limite, o livre-arbítrio de fazer qualquer coisa, de qualquer jeito, pois – se dissemos que o limite é sempre a morte – a questão é afirmar não só a nossa vida, mas também a da outro, respeitar o limite entre nós e os outros. Não fazer com o que nosso desejo de vida seja o aniquilamento do alheio.
Quando a ciência se depara com a falta de objetividade do mundo – quando a razão entra em colapso, quando as próprias disciplinas, como campos, compartimentações da realidade, já não podem ficar separadas, mas pensar conjuntamente, interdisciplinarmente, transdisciplinarmente – ela acaba, inevitavelmente, buscando um diálogo com a arte – pois, afinal, a própria arte teve se tornar umadisciplina, uma área de conhecimento entre outras (mas, porque, irracional, ou seja, tratando do que não é razão, da outra parte, a não científica, se sagrou menos importante como estudo, nas academias, escolas, universidades). Começa-se, aí, a buscar ouvir a arte quando, então, a ciência entende que o não científico (o não objetivo, o não claro) também é importante, é preciso incluí-lo no sistema. E, então, a arte, o que não cabe em sistema – enquanto o obscuro dele – se subjuga ao pólo inventado pelo próprio sistema, o da razão: à contraparte do subjetivo. Valora-se a arte, como mais um meio, ou seja, mais um modo de servir, de relevá-la na medida em que serve para. A arte, então, a te rum papel, uma utilidade para os sujeitos, na medida em que a resolver, agora, a dualidade objetivo x subjetivo, ou seja, na medida em que mantém o próprio espírito epistemológico, científico. Só que, mantendo-se a divisão objetivo x subjetivo, claro x obscuro, o pensamento não se liberta da razão para a arte, não se liberta doanimal racional para o ser vivo na linguagem (porque é preciso, afinal, esclarecer o obscuro, é preciso fazer com que a arte tenha e seja razão, tenha e seja ciência da arte – a lógica ou análise da obscuridade, ou seja, um complemento para a ciência e já ciência. E, não, arte. Então, vemos aqui e ali, a dança como terapia, como contribuição à saúde mental, na psicologia. A dança como reabilitação. A dança-educação. Dança como lugar de reconhecimento sociocultural do feminino. A dança como inclusão social. A dança como representação da luta de classes. Enfim, a dança tentando responder não às questões do ser do humano (morte, vida, tempo...), mas a problemas situacionais, criados por um determino modo de mundo que alijou a arte, que não acreditou na arte e que, agora, acredita, sim, desde que ela ocupe o lugar que a ciência lhe conceda.
Dizer, enfim, que o pensamento poético não traz salvação (para os problemas do mundo moderno, para a pobreza, para o gênero feminino) está, sobretudo, a reiterar que a arte não parte de problemas. Logo, nada tem de resolver. Problemas pressupõem soluções. Quem soluciona é religião (com fé), ciência (com provas), filosofia moderna (com teorias). Solução quer dizer: fórmula. Para o progresso, para a felicidade. O que é a plena felicidade? Basta pensarmos o que é a plena infelicidade. Morrer. Perder alguém. Cogitar a ausência. Nada nos deixa mais infeliz que a iminência e a eminência da morte. Para acabar com a morte, em nome da imortalidade do homem, o pensamento que ora se critica. Ao buscar o poético, ao buscar o nada, Heidegger nos coloca de novo na morte, no princípio do ser, no apelo da vida, para a vida, no apelo da nossa humanidade, de nossa voracidade pelo presente. Colocar o humano na morte não é, aí, pessimismo. Não é considerar a morte como algo no fim da vida e que, quem sabe, religiosamente, cientificamente, podemos negar, adiar, romper, desfazer. É acatando a morte aqui e agora, enquanto se vive, que vivemos, e podemos, e devemos viver o aqui-agora ínfimo e infinitamente.
Afirmar a vida não é camuflá-la na garantia, pela arte, do acesso a informação (se o sistema continua); afirmar a vida antes de ajudar o louco (se o sistema continua); afirmar a vida antes de representar o preconceito racional (se o sistema continua). Continuar o sistema está a dizer: deixar o mundo, assim, objetivo. Apenas o re-arrumar. Afirmar a vida, por outro lado, na arte, como arte, quer dizer bagunçar um mundo, para, partindo do i.mundo, advir um novo.
Na objetivação e subjetivação compulsivas, assistimos uma dança e então não dançamos, deixamos de dançar para ficar procurando a ideia da dança, o motivo, o objetivo, a finalidade. Ou seja, tudo é mais importante do que aquilo que está em ação (não mais na arte como objeto, mas em ação entre o que se obra e nós mesmo como parte do obrar). O importante tem sido sempre o que provocou a ação e não a compreensão de que a ação é a provocação possível. Assim, entendemos, por exemplo, que alguém dança para expressar um sentimento. Já, então, partimos de uma ideia (de sentimento!), para, então, depois dançar. E dançar será nada mais que representar o conceito. Expressar uma razão, um sentimento (porque aí o sentimento, como conceito prévio, é razão). Quando não é? Amar, por exemplo, se aprende amando. Não podemos saber o que é o amor e cogitar um juízo sobre o amar sem que já não houvesse corpo amado-amante. Logo, é no corpo, como dança que amor – sentimento! – se funda e afunda, afunda e funda, sem conceito prévio, apenas como sentido, e não semântica: corpo, dança, descoberta e encobrimento. Mas na dança, na música, na literatura, buscamos o dentro. A causa. O autor. Ao buscar, o que é o autor, tentamos, também vemos o que, nele, no seu corpo, na sua história, também tem causa. Ele pertence a uma época. A uma cultura. Então, a dança é expressão deste autor, representação de uma cultura, de uma época. Enfim, tudo está dado, está abstraído: o autor, a cultura, a época, o tempo, o espaço. Ficamos relacionando coisas dadas, quando, na verdade, a dança está, naquele momento, já fundando o ainda não dado, na cultura, na época, no tempo, no espaço, naquele homem, e por isso, como as demais artes, fundação de mundo novo, e não representação de mundo dado.
Por vezes, costuma-se, na constatação de que as coisas, não estando dadas, não havendo essência, não têm autor, apelar para o leitor, ou espectador, ou ouvinte, como o único autor possível. Vazia de significado, como puro significante, o espectador dá a significação: preenche a lacuna. Mas este sujeito também não é, neste raciocínio, vazio, sem essência? Como ele constrói o sentido do que não tem essência, se ele também, essência, não tem. O autor, sem essência. A obra, como um objeto, sem essência. O leitor, sem essência. E um se relaciona com outro. Como, se cada um pelo outro é feito, desfeito, refeito. Então, não o leitor, o ouvinte, o espectador que, a seu bel-prazer, constrói a razão da obra, na medida em que nenhum dos dois têm alguma pré-definida. Ele, leitor, é construído pela obra, na mesma medida que a obra também é o que inventa o artista. Este, não sendo a origem da obra, tem nela a sua origem. Deixar, então, a obra falar – e não o homem – é, neste pensamento, deixar que no humano em obra fale primeiramente a linguagem. O homem não constrói a obra, ele se constrói na medida em que ela, construindo-se na linguagem, pronuncia o humano. Este é, na arte, em arte, a cada vez, obra. O novo desafio, dirá Heidegger, será, então, não mais supor linguagem como meio de expressão, de comunicação entre sujeitos, ou entre sujeitos e objetos. A linguagem como o que deixa tudo estar em tudo, reunido e, a um só tempo, distinguível: um. A linguagem como o que deixa cada um ser cada um.
Por fim, quando Fernando Pessoa diz, em outro momento, “o quem em mim sente está pensando”, detona toda a ocasião de um pensamento encarnado. Não de uma razão simultânea à emoção, como se, na hora de dançar, estivéssemos, a todo tempo, na razão, no controle. Ensaiando uma coregorafia, ou seja, aprendendo a dominar ou controlar os movimentos, a dança, em verdade, só acontecerá quando tudo deixar de ser degrau e procura, obediência a, a fim de que, porque – incorporado, assimilado – parte de nós, irreversível. Quando não mais procuramos a dança, porquanto já não somos procurados pelo e no dançar. Sermos procurados por: ouvir a voz do ser: a linguagem. Isso, a vida da arte na arte de todo viver. E, talvez o poeta, um Manoel de Barros, ainda nos ouvidos, revele o que, em Heidegger, em Guimarães Rosa, em Alberto Caeiro, é o nada acontecendo na palavra (e, oxalá, na crítica, na interpretação, por vir, de alguma dança...):

O que não sei fazer desmancho em frases
Eu fiz o nada aparecer
(Represente que o homem é um poço escuro
Aqui de cima não se vê nada
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada)
Perder o nada é um empobrecimento

http://pensarcorpo.blogspot.com.br/2012/09/normal-0-21-false-false-false_21.html

 
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