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A morte do ego, a ciência, a mente, a linguagem e o Estado

vitaoma

Primórdia
Cadastrado
22/05/2012
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A seguir relato a experiência que me ocorreu após consumir dois cogumelos P. cubensis grandes e um pequeno. Estávamos na casa de minha companheira em um dia de temperatura amena. Foi minha segunda experiência com os cogumelos.

Ficamos sobre o tapete da sala, conversando, desenhando e brincando com massinha de modelar. Começavam as primeiras ideias não-convencionais. Em um dado momento, uns quarenta e cinco minutos após o consumo, sentei-me sobre o tapete com as pernas cruzadas, fechei os olhos e comecei a meditar. Vinham pensamentos sobre a dúvida, a ciência, a linguagem. Algo me orientava, em inglês, para os caminhos que minha mente deveria tomar para se enlevar: “this is the way” (“esse é o caminho”), quando eu afinava minha consciência para o estado mental adequado, e “this is not the way” (“esse não é o caminho”), quando eu tomava caminhos errantes. Fui seguindo as orientações dessa voz, que eu interpretava como o espírito do cogumelo, até que cheguei a sentir uma iminente singularidade mental. Algo como um portão, um obelisco, algo gigantesco e em que, eu sentia, estava apoiada toda a estrutura da forma cotidiana da minha mente. Eu sentia isso muito bem, sabia que estava lá, como um convite. Aceitei o convite, e sabia que para tanto, deveria abandonar qualquer outra referência, pois o tempo-espaço aqui-agora era mais importante do que tudo, e contextualizar seria comparar com o incomparável, dada a singularidade. Abandonei todas as teorias, todas as referências, que dia era, que horas eram, ou em que lugar eu estava, o que estava me acontecendo, quem eu era, minhas características físicas e psicológicas (por exemplo, eu tenho um corpo, eu posso sentir fome, sede e dor, e as coisas que se passam na minha mente não podem ser diretamente acessíveis por outras pessoas), ou seja, a noção de eu :: não-eu. Depois de sucumbida essa estrutura, fui revelado a várias epifanias.

Todo momento de nossa existência é um só, o aqui-agora, e tudo está parado, no tempo e no espaço; essa é a perfeição. Quando há entradas sensoriais, ou então, um pensamento (dado pela linguagem), esse sagrado momento único é interrompido – a linguagem é uma maneira de manipular a mente de outras pessoas, fazendo com que elas se desviem daquilo que havia em suas mentes de antemão. Se eu ordeno a outra pessoa que levante o braço, e ela levanta o braço, sou eu quem levantou o braço (pois fui a causa da ação) ou foi a pessoa? Assim, a palavra se torna profana, indesejável. Pensei que deveria então haver uma expressão que significasse “retiro o que disse e peço perdão por violar sua consciência”; pensei que o mais próximo a essa palavra seria o Om hindu (ॐ), mas ainda assim, ao dizer o Om, ainda se estaria dizendo algo e continuando a violar a consciência alheia. A resposta seria: não digas nada; pois falar sobre a coisa não é a coisa. A palavra que deve restar é a palavra “é”, pois é absoluta e refere-se ao aqui-agora e, para além do ser, tudo são teorias e representações.

A dúvida é um punhal, a dúvida incomoda, causa medo do desconhecido, como as feras da noite. Nesse contexto se erige a ciência, uma fortaleza dentro da qual se propõe ousadamente não haver dúvida. Mas então vem a epistemologia e duvida das respostas:

– como você pode ter certeza que a engenharia está correta?
– tenho certeza pois a engenharia se apoia na física.
– e como pode ter certeza de que a física está correta?
– posso ter certeza pois a física se apoia na matemática e no empiricismo.
– e como pode ter certeza de que a matemática e o empirismo são válidos?
– tenho certeza devido aos pressupostos lógicos, filosóficos de ambos.
– e como pode ter certeza de que a filosofia, ou seja lá qual meta-teoria está correta? nosso pensamento não é determinado pela biologia dos nossos cérebros e corpos, além de outros pressupostos culturais, morais, históricos, políticos...?
– bem, então a resposta haveria de estar na psicologia, ou na antropologia, ou na filosofia da mente, ou na história...
– mas você acabaria caindo novamente em um dos questionamentos anteriores.

Disso, vem que a única resposta possível se dá pela recursão. A dúvida é usada para questionar a própria dúvida: a serpente morde sua cauda. A verdade objetiva deve existir como um fractal, em que, ao se penetrar mais profundamente, as estruturas refletem o formato de estruturas menos ampliadas. Essa é a verdade única, e não é pensável, mas compreensível epifanicamente, conforme é registrada em mandalas.

A perfeição e equilíbrio é o círculo – e é interessante notar como o signo hindu ॐ tem como transcrição latina a palavra Om, cuja primeira letra é uma circunferência. O Estado é o projeto de linearizar tudo, partindo da submissão da consciência à linguagem. A linguagem é linear, uma palavra por vez, lida ou ouvida, enquanto a consciência abarca isso e tantas outras cosmologias. A linguagem situa e limita possibilidades, domestica. A linearização prossegue, com o método, a organização: divisão do tempo e do espaço, divisão do trabalho, divisão das pessoas. A linearização e a linguagem estão na base do poder, determinando centros e periferias, duplas nas quais um dos componentes é puro, original, idêntico a si mesmo e o outro é a negação do primeiro, uma derivação, corrupção; hierarquiza-se o que antes estava no mesmo nível, fazendo: linguagem > não-linguagem, ideal > material, deus > mortal, Estado > anarquia, língua > dialeto, ciência > crendice, teologia > mitologia, homem > mulher, branco > negro. Da linhagem, vem a família, com a família é possível a propriedade privada e o poder instituído. A atual sociedade ocidental é altamente linearizada em muitos aspectos (modo de produção, registro de tempo e espaço, cargos crescentes dentro de organizações, atribuição de características segundo uma escala linear – como a nota que um estudante recebe, ou o comprimento de uma viga).

Apesar dessa perfeição, e da tendência das coisas se organizarem em padrões circulares ou esféricos no Universo, somos levados à linearização na busca da sobrevivência. É necessário um método bem definido para uma caça, coleta ou agricultura bem sucedidas. Notei isso logo após, quando, ao ter dificuldade na viagem, pensei se dever ao estômago vazio. Na situação em que eu estava, após todas essas epifanias e desconstruções, eu não conseguia nem ao mesmo me alimentar: não fazia sentido, reunir os alimentos sobre uma mesa com pratos e talheres (uma norma social à qual eu estava totalmente indiferente, para não dizer averso), sentar ali (onde eu estava mesmo?) e me forçar a engolir (eu tenho braços e boca? o que é sentir o paladar?) a comida. Tive, pois, que linearizar e impor um método: existe essa comida, e você não levanta da cadeira enquanto não comê-la.

Mas, ao aplicar essa linearização, fui-me afastando do estado sagrado que estava. Refleti que, na verdade, qualquer interação com o mundo exterior me afastaria, em maior ou menor grau, desse estado sagrado, “the way”; pensei que seria perfeito se fosse deixado a mim próprio. Pensei que, talvez, em algum momento, os seres humanos não tivessem mais suas necessidades materiais, mas fossem mentes deixadas para si sós, talvez conectadas a algum tipo de nutrição artificial. Isso, por outro lado, me pareceu uma perspectiva egoísta e terrível, lembrando-me livros e filmes de distopias. Fiquei com essa dúvida, que não soube resolver na hora, decidi deixar para depois e até então não tenho resposta: como lidar com a questão do eu e do outro? É desejável ser altruísta, se colocar no lugar do outro, e há muito amor e energias boas no contato com outros seres. Mas colocando-me no lugar do outro, ainda assim seria eu me colocando no lugar do outro, fadado a uma perspectiva eu-cêntrica. Pensando sobre isso, cheguei à conclusão que nós não sabemos o que é uma perspectiva não-eu-cêntrica (e isso fica bem marcado pelo próprio dizer “nós”)

Aos poucos, a realidade cotidiana foi-me voltando. Um dos primeiros passos importantes foi reassimilar a continuidade do tempo e das ações: se em um dado momento, havia uma dada quantidade de cereal no prato, em um momento futuro haveria uma quantidade menor ou igual de cereal no prato; as coisas passadas não deixam de ter ocorrido e, apesar de não estarem acontecendo no aqui-agora, têm efeito sobre o aqui-agora. O tempo parecia durar infinitamente. Conversava com minha companheira sobre a experiência e havia grande compreensão mútua. Aos poucos fui recobrando as funcionalidades normais, recompreendendo a mim mesmo, ao ambiente e aos outros. O efeito demorou para passar completamente e demorei para dormir quando me deitei, cerca de sete horas após a ingestão. Tive sonhos confusos e um pouco amedrontadores, mas sentia que aquele era o processo de minha mente pôr a casa em ordem.

Nas semanas seguintes, permanecem algumas mudanças. Sinto-me tranquilamente feliz. Tenho vivido uma vida mais leve – mais respeito ao meu corpo, procurando observar um bom horário de sono, boa alimentação (vegetariana), menos brigas, menos vícios (como Facebook e WhatsApp). Tenho passado boa parte do tempo ocioso em estado meditativo-contemplativo. Sinto menos vontade de estudar e investigar as coisas – pois sinto que a verdade é muito simples e calma, e que as pessoas complicam tudo em seu teatro de manter as aparências sociais. Ainda não recuperei minha fluidez linguística de a priori e não estou incomodado com isso, me sinto até privilegiado e tento manter esse sentimento.

Quero usar minha experiência para ajudar outras pessoas. Seja mostrando-lhes o incrível potencial espiritual e psicoterapêutico do cogumelo, seja ajudando a elucidar a questão das substâncias psicotrópicas (que ainda são chamadas de “química”, ou consideradas perigosas para o usuário e para a sociedade tanto quanto a cocaína, embora raramente se cite o uso de álcool, tabaco e medicamentos controlados) , quebrar o tabu de falar sobre elas. Quero também ajudar a promover a consciência sobre pessoas que vivem estados mentais não-convencionais, seja por “doença” como esquizofrenia, Alzheimer ou AVC, por “loucura” (exigindo-se o fim dos manicômios) ou por modo de vida, como ocorre em outras sociedades e indivíduos. Quero ajudar a divulgar o vegetarianismo, ensinar receitas às pessoas, ajudá-las a tratarem a si próprias e ao mundo de uma forma melhor.
 
Acho legal esse lance da linguagem, sempre viajo nisso também, e o ápice sempre é o silêncio, o vazio, a eterna ausência de significados, onde tudo significa por si só, o hinduísmo se encaixa muito bem nesse momento para mim, em que experienciamos, não a ausência, mas a origem da linguagem, até que começamos novamente a tecer o complexo de signos, renovado, mas sempre impuro, afinal, a experiência humana continua.
Só toma cuidado para que esse seu "ajudar" não se torne mais um "controlar".
Excelente relato, valeu!
 
– bem, então a resposta haveria de estar na psicologia, ou na antropologia, ou na filosofia da mente, ou na história...
– mas você acabaria caindo novamente em um dos questionamentos anteriores.

nós não sabemos o que é uma perspectiva não-eu-cêntrica (e isso fica bem marcado pelo próprio dizer “nós”)

Aos poucos, a realidade cotidiana foi-me voltando.
não me inclua nessa camarada! falar "nós" pode ser mais leve do que pesado

bom relato!
 
vitaoma quando vc disse - "pois sinto que a verdade é muito simples e calma", lembrei de Moksha, quando percebemos que somos a testemunha invariável!
 
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