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A loucura é contagiosa

  • Criador do tópico Criador do tópico Ecuador
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Ecuador

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22/12/2007
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joão pereira coutinho

A loucura é contagiosa


13/01/2015 02h00


Os terroristas franceses já devem estar com as suas 72 virgens no paraíso — e o leitor, no conforto do seu lar, sente que existe uma pergunta lógica, porém desconfortável, que ocupa espaço no seu crânio ecumênico. A saber: se o jornal satírico "Charlie Hebdo" nunca tivesse publicado cartuns ofensivos para a religião muçulmana, será que o massacre teria ocorrido?

Melhor ainda: por que motivo insistimos em "blasfemar" contra a fé dos radicais? Ganhamos alguma coisa com isso?

Para o leitor benemérito, se o Ocidente apagar o mundo islâmico dos seus radares, obedecendo caninamente aos preceitos da sharia, o mundo islâmico também apagará o Ocidente das suas armas. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César – e a Alá o que é de Alá. Cada um no seu canto. Em paz e sossego.

Existem várias formas de lidar com essas perguntas ingênuas. A mais óbvia seria lembrar que o terrorismo islamita não precisa de nenhum pretexto para atacar um "modo de vida" que abomina no seu todo. Se não fossem os cartuns, seria outra coisa qualquer: aos olhos do fanatismo, os "infiéis" não pisam o risco apenas quando usam o lápis.

E, claro, silenciar a liberdade de expressão seria um suicídio civilizacional – e uma vitória para os assassinos.

Mas existe outra forma de responder às inquietações do leitor — e a história do século 20 continua sendo a melhor escola.

Daqui a uns dias, passarão 50 anos desde a morte de Winston Churchill. E um livro recente tem ocupado os meus dias: "The Literary Churchill", de Jonathan Rose (Yale University Press, US$ 25, 528 págs.), uma biografia do velho Winston lançada em 2014 que procura explicar o seu percurso político por meio dos textos que ele leu, escreveu e, naturalmente, representou como grande ator que era.

Um capítulo da obra, porém, merece atenção especial à luz do terrorismo na França: na década de 1930, com a memória da Primeira Guerra Mundial ainda fresca, a elite política (e conservadora) britânica tentava desesperadamente não embarcar em novo conflito contra a Alemanha.

E Lord Halifax, secretário de Relações Exteriores, era apenas um dos rostos dos "appeasers" (pacifistas, em português) que acreditou na possibilidade de manter a fera na sua jaula.

Halifax conheceu pessoalmente Hitler em 1937 e notou que o Führer nutria um ódio insano por dois temas em especial: o comunismo soviético (lógico) e, atenção leitor, a liberdade de expressão da imprensa britânica (ilógico?).

Para Hitler, e para o ministro da Propaganda alemã Goebbels, a imprensa britânica era o grande obstáculo para a paz. Por quê?

Ora, porque bastava ler a prosa antigermânica do "News Chronicle" ou do "Manchester Guardian" para concluir que os jornalistas britânicos não respeitavam a figura sagrada de Hitler, o "profeta" da raça ariana.

E quem diz "ler", diz "ver": no "Daily Herald" ou no "Evening Standard", Hitler não apenas era severamente criticado (por Churchill, por exemplo). Ele era igualmente ridicularizado nos cartuns de Will Dyson ou David Low (os Wolinskis da época).

Halifax, que nunca se notabilizou pela coragem, regressou à Inglaterra com a mesma ideia que o leitor ecumênico tem na cabeça: se ao menos a imprensa se comportasse"¦ Quem sabe? Talvez Hitler ficasse sossegadamente em Berlim, desenhando nas horas livres e constituindo família com Eva Braun.

Aliás, Halifax não ficou nas ideias: ele convenceu mesmo David Low a moderar os seus desenhos, coisa que o artista fez, mas só até Hitler invadir a Áustria em 1938.

Depois disso, regressaram os cartuns antinazistas (que os "appeasers" continuavam a considerar "gratuitos" e de "mau gosto").

Curioso: Hitler devorava a Europa, pedaço a pedaço, em busca do seu "espaço vital". Mas as avestruzes britânicas acreditavam que tudo seria diferente se o lunático Adolfo tivesse sido tratado com "respeito" pelos jornais.

Churchill nunca mostrou respeito. E, quando finalmente assumiu o governo, em 1940, tratou Hitler com a dureza de sempre. A besta nazista foi derrotada em 1945.

Existe uma moral na história dessa história?

Existe, leitor ecumênico: não somos nós os culpados pela loucura dos outros. Imaginar o contrário, por medo ou ignorância, é simplesmente partilhar a loucura em que eles vivem.

http://www1.folha.uol.com.br/coluna.../2015/01/1574137-a-loucura-e-contagiosa.shtml
 
Continua?

contardo calligaris

Nossas futilidades

19/11/2015 02h00

Hoje à noite, viajo a Nova York para estar na entrega dos prêmios do Emmy International, que acontece na segunda (23). O seriado "Psi", que criei para o canal HBO (com equipes e colaboradores muitas vezes extraordinários), é um dos indicados ao prêmio de melhor série dramática. Emilio de Mello, o protagonista, é indicado ao prêmio de melhor ator de série dramática.

Agora mesmo, pensando na viagem, sou tomado por uma sensação de futilidade – como quando lemos, no jornal, uma notícia atroz e enxergamos, logo embaixo, a propaganda de uma bolsa, de um relógio ou de um cruzeiro. Estarei num jantar de gala, que celebra o entretenimento, enquanto, por exemplo, o Exército Islâmico escraviza as mulheres do povo yazidi do Curdistão ou, então, massacra jovens sentados num café ou numa casa de show de Paris.

Justamente, os jihadistas do Estado Islâmico nos desprezam porque, aos olhos deles, somos todos fúteis. O bizarro é que nós possamos, de uma certa forma, concordar com eles, ou seja, menosprezar nossa própria cultura e sua aparente "futilidade".

Um romance, um seriado, um namoro no bar ou um show de metal talvez sejam menos fúteis do que um ritual religioso qualquer. Mas nem deveríamos querer justificar nossas diversões, nossa liberdade e nosso prazer de viver.

No campo cristão, São Paulo (não a cidade, que é ótima, mas o autoproclamado apóstolo) é quem engajou o cristianismo numa cruzada contra a futilidade e o prazer.

Claro, Paulo fez que o cristianismo fosse uma religião universal, ótima para a diversidade do Império Romano, e ótima para a cultura moderna. O filósofo Alain Badiou, em "São Paulo – A Fundação do Universalismo" (Boitempo, 2009), é convincente: Paulo fundou uma religião que podia ser universal porque não era mais a verdade exclusiva de um povo, de uma cidade, de um território ou de uma classe social.

Mas isso não me basta para gostar dele. Fico com Nietzsche, achando que Paulo odiava o humano nele mesmo e propôs o mesmo ódio aos cristãos da época e do futuro. Vou ser irreverente (é um bom dia para o espírito de "Charlie Hebdo"): Paulo inaugurou o mecanismo projetivo quando caiu do cavalo e, para não admitir sua imperícia como cavaleiro, achou que Deus o tinha jogado no chão para convertê-lo.

Ele continuou no mecanismo projetivo: inventou um cristianismo sombrio na ilusão de que, perseguindo os "pecadores", ele conseguiria controlar seus desejos carnais.

Resultado: para nós, o prazer e a futilidade são sempre um pouco culpados, como se tivéssemos a obrigação de nos preocupar o tempo inteiro só com o divino e o absoluto. Na época, alguém deveria ter dito a São Paulo: "Get a life", vá viver sua vida, que é melhor...

No dia do enterro de meu avô, que eu adorava, voltando do cemitério, meus sobrinhos e eu (todos pré-adolescentes) fomos despachados para o cinema perto de casa. Eu hesitei. Como assim, ir ao cinema depois do funeral? Meu pai me lembrou que o avô era quem mais me levava ao cinema: assistir a um filme naquele dia talvez fosse o melhor jeito de honrar sua memória.

Pois bem, no ataque contra Paris, os lugares escolhidos foram cafés, restaurantes, um show de rock (todos num bairro boêmio) e um estádio de futebol: são lugares de prazer – de futilidade, não é?

Os jihadistas atacam em nós o que mais os seduz. O que eles odeiam são os atos e os pensamentos que eles precisam destruir dentro de si. Os mortos de Paris, para os jihadistas, não são pessoas (sequer "infiéis"): eles são os representantes de suas próprias tentações internas. Como sempre, os moralistas perseguem (e até exterminam) seus próprios desejos rebeldes.

Esse, aliás, é o ponto de partida para entender os jovens ocidentais que se alistam no Exército Islâmico. Como ocidentais, aprenderam a se odiar por serem "fúteis" e "hedonistas". Eles apenas transformam o ódio de si mesmos em ódio da gente.

O que fazer para que as coisas mudem? Talvez fosse a hora de sermos menos inimigos de nós mesmos. Ou seja, a hora de pensar que nossa grandeza está no fato de que gostamos do mundo onde vivemos. E podemos defender com orgulho não tanto nossas religiões ou grandes ideias, mas o que somos de melhor, sem ironia: uma saída para escutar uma banda legal, papo furado entre amigos à mesa de um café na rua e, às vezes, uns beijos escondidos na porta de um prédio da rua de Charonne. Ou de qualquer rua de nossas cidades.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2015/11/1708040-nossas-futilidades.shtml
 
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